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cláudio oliveira
Cabíria
As noites são das prostitutas,
das dançarinas e das adolescentes apaixonadas que se negam a dormir. Um
homem faz um filme e põe uma pitada de horror. Sem essa pitada, o belo
seria sublime.
Sempre se vê algo que não se tinha visto da primeira vez. É como a cena de
um encontro que pode ser o último. Alguém que não se sabe bem quem é, com
um nome falso, inventado pela ocasião, e uma sensação de hipnotismo. Um
mágico faz o papel do adivinho, dizendo a verdade, porque a antecipa e
provoca: dá-se um nome e o resto acontece.
Um golpista pode ser o homem que se espera, que já sempre se amou, sem
nunca ter sido visto, como numa canção de jazz. Num instante, ele se torna
estranhamente belo. Mesmo que, de início, ele tenha o aspecto de um
simples homem comum, ainda que encantadoramente comum. Mesmo que ele não
tenha nada de especial, nada de sedutor. Mesmo que não se dê, a princípio,
muita atenção a ele. Ele é um homem qualquer, com seus supostos bons
sentimentos, seu cavalheirismo, sua seriedade: tudo isso que as amigas
consideram tão estranho. Esse homem não quer nada. Quando parte para o
casamento com um homem desses, uma puta parte virgem. O que a encanta não
é ser ele um homem, mas um marido, que vai tirá-la da vida, que vai
redimi-la.
Há essa puta que se quer santa. Isso atravessa a sua vida: nas festas à
virgem Maria, nos encontros com os padres franciscanos, com os solitários
que ajudam os mendigos da cidade durante a noite. Quando um grupo de
católicos atravessa em procissão a rua em que faz a vida, em meio às
outras putas, ela os vai seguindo, até que um cliente, num caminhão, a
chama, interrompendo seu sonho de redenção e trazendo-a de novo para a sua
realidade pagã.
Já perto do fim do sonho, agora com o golpista, ela o toca pela primeira
vez, numa carícia. Mas logo em seguida, é conduzida, através de um bosque,
para a morte: ela acha que ele a está conduzindo para o sexo. O caminho
para o sexo é o caminho para a morte. Ao deparar-se com isso, ela – como
todos nós, inclusive o golpista – se paralisa de horror. Ela entende e
pede que ele a mate.
Desde o início do fim – quando os vemos almoçando numa varanda, ao som de
uma canção romântica, diante de uma paisagem cinematográfica, recortada
pela luz do pôr-do-sol – ele já está diferente: os cabelos, sempre
impecavelmente penteados, encontram-se desgrenhados; o rigor do nó da
gravata, agora desatado, se desfez; o colarinho mostra-se largamente
aberto. Ele bebe e fuma, como jamais fizera antes, e tem o olhar perdido
na paisagem, evitando o dela. É o fim antes do fim. E é nesse momento,
entre os dois fins, que ele se torna estranhamente belo. Ele fica em
silêncio. Ele, que não é belo, nem sedutor, e loquaz. Eles trocam aqui de
papel. Ela fala sem parar (sobre justiça, felicidade e amor – os temas
habituais dele nas conversas anteriores), enquanto ele permanece calado.
Ele já pensa no que falta fazer e adia: seu rosto tem, aí, um misto de
melancolia e desespero, em contraponto à felicidade quase em agonia dela.
É nesse momento, e a partir de então, até o fim, quando foge, que ele se
torna estranhamente belo, tão belo quanto – embora inversamente – ela,
quando pede para morrer. No auge de tudo, é esse horror que vemos nos seus
olhos, enquanto a bolsa com dinheiro cai das mãos dela para os seus pés
sem que ele consiga se mover. Esse par de olhos são os mais difíceis de
serem vistos, porque vêem a coisa mais difícil de ser vista.
Uma prostituta, um golpista. No encontro de ambos, um com o outro, lhes
está reservado algo com o qual não contavam. Algo neles impede que o
truque do outro funcione.
E mesmo que não se saiba se ela é a primeira mulher em quem ele dá um
golpe, sabemos que ele não é o primeiro homem que a passa pra trás. Há
sempre uma cena igual à última e no entanto...
É a mesma puta, sendo conduzida para a beira de um rio, onde será lançada,
após ser-lhe roubada a bolsa com dinheiro. É a mesma cena, mas diferente.
Ele não tem a crueldade, objetividade e distância daquele que, antes, lhe
dera o golpe. Não o vemos de longe, numa só tomada, sem detalhes, sem
drama, sem emoção. Não se pode dar à coisa ares de comédia, deixando que
ela seja salva por populares. Ele não pode empurrá-la sem hesitação.
Agora ela ganha um coadjuvante à altura. Ele é um personagem tão denso e
elaborado quanto ela. Mas ainda mais enigmático, porque dele nada sabemos
além do suor em seu rosto e do desespero em seus olhos.
É apenas um homem que corre na noite, com uma bolsa de dinheiro nas mãos.
Enquanto isso, ela redescobre o eterno recomeço que é viver ao se misturar
a um grupo de jovens que cantam pela estrada.
CLÁUDIO OLIVEIRA é
doutor em filosofia pela UFRJ e professor do Departamento de Filosofia da
UFF, onde também coordena o Curso de Especialização em Psicanálise e Laço
Social. Com um trabalho que passeia entre o narrativo, o poético e o
ensaístico, participou recentemente do livro 10 x Freud (Ed. Azougue), com
um texto sobre Freud, Marx e a Weltansschauung, e foi um dos organizadores
do livro Clínica Psicanalítica das Psicoses (EdUFF).
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