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motokiyio - ernest fenolosa - ezra pound


nishikigi, uma peça em dois atos

 

Nishikigi é uma das peças clássicas do repertório do Teatro Nô japonês. Contando apenas com a estrutura fundamental das peças Nô, dois atores, um Waki, o herói, e um coro, consegue articular de forma excepcionalmente bela e complexa algumas das emoções mais básicas e delicadas do ser humano, como o desejo e o desprezo, a carência e o prazer, a fragilidade e a generosidade, enfim, o amor. A metáfora do tear e do tecido como imagens para a relação amorosa e para a própria realidade, que estruturam a peça, é atual para nós embora tenha sido concebida há mais de 700 anos, talvez um índice da qualidade poética de Nishikigi, e do teatro Nô em geral, o que talvez se relacione ao fato de por trás destes textos existir a preocupação constante com uma arte total.

O texto original, de Motokiyo, ator-dramaturgo-nobre japonês, foi traduzido para o inglês no final do século XIX por Ernest Fenollosa. Após sua morte, a viúva do especialista entrega os manuscritos para Ezra Pound, que edita sua versão fragmentária. A presente tradução, feita por Ricardo Pinto, é a primeira para o português.

 

***

 

 

Os "Nishikigi" são bastões usados como talismãs amorosos. "Hosonuno" é o nome de um tecido local que a mulher tece.
 

Personae


O WAKI Um sacerdote

O SHITE, O HERÓI, 1º Ator Fantasma do amante
TSURE, O 2º ATOR Fantasma da mulher; ambos estão mortos há muito, e ainda não foram casados.
CORO
 

 

Parte primeira

WAKI
 

Nunca soube de ninguém que tenha ouvido falar do Monte Shinobu e que tenha simpatia pelo lugar. Assim, eu, como qualquer outro sacerdote que queira saber um nadinha sobre cada uma das províncias, posso do mesmo modo andar por aqui ao longo da já muito viajada estrada.

Eu ainda não fui à terra oriental, mas agora pus na cabeça de ir tão longe quanto a terra vai. E por que não, afinal? visto que não sigo com meu coração preso a nenhum lugar em especial, e com o sinal de nenhum outro homem nas mãos, não mais que uma nuvem. Vejo um signo da noite surgindo sobre mim. Imagino se o mar seria desse jeito, ou o lugarzinho Kofu que dizem estar fincado nele?

SHITE (para TSURE)

Por um tempo que a mente não abraça estou sentado aqui neste galho luzente, esta madeira sedosa com os quebrantos pintados tão finos como a teia que você obtém do tecido de relva de Shinobu, e eles ainda te seguram nesta montanha.

SHITE e TSURE

Uma trama, nós estamos entramados. Foi culpa de quem, querida? Enredados como as tramas de relva são tramadas naquele tecido tosco, ou como o pequeno Mushi que vive e estrila na alga marinha seca. Não sabemos onde estão agora nossas lágrimas no estéril deste sertão eterno. Nós nem despertamos nem dormimos, passando nossas noites em uma dor que é, no final, uma visão. O que são estas cenas de primavera para nós? Este pensar adormecido de alguém que não tem pensamento por ti, é lá mais que um sonho? E ainda assim certamente é o caminho natural do amor. Em nossos corações há muito e em nossos corpos nada, e não fazemos nada, enfim, e só as águas do rio de lágrimas fluem ágeis.

CORO

Estreito é o tecido de Kofu, mas selvagem é seu rio, esta torrente das montanhas, entre o amado e a noiva.

O tecido que ela tramou está gasto, as mil e cem noites são noites clandestinas cuidadas em vão.

WAKI (não reconhecendo a natureza dos falantes)

Estranho de verdade ver estes aldeões por cá
Eles parecem mulher e marido.
A moça parece segurar alguma coisa
Como um tecido de penas tramado
E ele tem um cajado ou bastão de madeira
Belamente ornado.
Ambas estas coisas não são corriqueiras.
Imagino como as chamam, em todo caso.

TSURE
 

Este tecido estreito Honosuno você pode chamar,
Ele é tão extenso quanto o tear.

SHITE
 

E é tingido com a madeira, meramente
E mesmo assim o lugar é por estas coisas famoso
Você compraria algum conosco?

WAKI

Sim, eu sei que o tecido deste lugar e seus laqueadores são célebres. Eu já ouvi de sua glória, e mesmo assim eu me pergunto por que eles têm tamanha reputação.

TSURE

Bom, aí você me desaponta. Aqui eles chamam o bosque "Nishikigi" e os tecidos "Hosonuno", e mesmo assim você chega dizendo que nunca soube por que, e nunca ouviu a história. Isto é razoável?

SHITE
 

Não, não, é justo. Como se espera que as pessoas conheçam deste assunto quando é mais do que elas podem fazer para saberem além do seu próprio mundo?

AMBOS (para o sacerdote)
 

Bem, você parece uma pessoa que abandonou o mundo, é razoável que você não saiba o valor de bastões e tecidos com símbolos de amor pintados neles, com símbolos de amor pintados e ressecados.

WAKI
 

É uma ótima resposta. E vocês iam me dizer que Nishikigi e Hosonuno são nomes unidos pelo amor.

SHITE
 

Eles são nomes na lista do amor, sem dúvida. Todo dia por um ano, durante três anos ao fim, os bastões Nishikigi foram feitos, até que houvesse mil ao todo. E eles estão na música em nosso tempo, e estarão. Chidzuka, os chamam.

TSURE
 

Estes nomes são certamente um epíteto
Como o tecido Hosonuno é apertado de trama
Mais apertado que os seios
Nós chamamos por este nome qualquer mulher
Cujos seios são difíceis de estar perto.
É um nome em livros de amor.

SHITE
 

É um triste nome, em retrospecto.

TSURE
 

Mil cetros, por nada.
Um triste nome, em uma história contada.

SHITE
 

Uma vagem vazia de semente,
Nossa conjunção não tivemos.

TSURE
 

Deixe-o ler a história.

CORO
 

I
 

Finalmente esqueceram, esqueceram.
Os bastões não são mais ofertados
O costume está terminado.
De Kefu a estreita trama
Não se encontrará sobre o seio.
Esta é a história de Hosonuno
Este é seu enredo:
Estes corpos, tendo tecido nenhum
Mesmo agora não estão reunidos.
Realmente uma história de vergonha
Um conto para trazer sobre os deuses desonra.

II
 

Nomes de amor,
Mas por um pequeno feitiço,
Por um talismã sem viço
Por um talismã tão leve como a cadeia
Das espigas de pinheiro em Iwashiro
E para fazer um pedido ao ocaso por eles
Retornamos, e retornamos para a cidade.
Deixa uma sombra o sol da tarde.

WAKI
 

Vai, conta a história.

SHITE
 

Há um costume antigo deste país. Nós cortamos bastões de meditação, e os cobrimos com símbolos, e os colocamos diante de um portão quando fazemos a corte.

TSURE
 

E nós mulheres acolhemos um bastão do homem com que vamos nos encontrar, e deixamos os outros caídos, embora um homem possa vir por cem noites, pode ser, ou por mil noites em três anos, até que estivessem mil bastões aqui à sombra da montanha. Nós conhecemos a cova funerária de tal homem, um que vigiou por mil noites. Uma cova iluminada, pois o enterraram com todos os seus bastões. Chamam-na "cova dos muitos talismãs".

WAKI
 

Eu irei para aquela caverna do amor
Será uma história para levar para minha vila, na volta.
O caminho, um de vocês me mostra?

SHITE
 

Assim seja, eu te mostrarei o caminho.

TSURE
 

Diz para ele vir por aqui.

AMBOS
 

Eis o casal andando
Antes do viajante.

CORO
 

Gastamos o dia inteiro até crepúsculo
Tirando da estrada a relva
abandonada da estrada para Kefu
E ainda não chegamos à caverna.
Oh, você aí, cortando mato no monte
Por favor preste atenção aqui.
Enquanto você pergunta onde está o orvalho
o gelo já se assentou aqui no caminho.
Quem te diria isto?
Muito bem, então, não nos conte
Mas esteja certo que chegaremos à caverna.

SHITE
 

Há uma impressão de frio no outono
A noite vem...

CORO
 

E ventania; árvores abandonando suas folhas
Manchadas da súbita chuvarada.
Outono! nossos pés estão afundados
Nas folhas entramadas, encharcadas de orvalho.
A sombra perpétua é solitária,
A sombra da montanha resta só.
A coruja grita das folhas de hera
Que arrastam seu peso sobre o pinheiro.
Entre as orquídeas e os crisântemos
A raposa fujona é agora senhora
daquela cova de amor,
Nishidzuka,
Que é seca como a folha de bordo.
Deixaram-nos isto como uma história.
Aquele par entrou na cova.
(Sinal para a saída de Shite e Tsure)


Parte segunda


(O Waki assume a postura de dormir. Sua visita respeitosa à cova está começando a ter efeito.)

WAKI (inquieto)
 

Parece que não posso dormir
Por mais que a extensão de um chifre de veado.
Sob o vento de outono, sob os pinheiros, sob a noite!
Eu prestarei serviço a Butsu.
(ele realiza os gestos de um ritual.)

TSURE
 

Ai! honrado padre!
Você não mergulha duas vezes no rio
Sob a mesma sombra da mesma árvore
Sem laços com alguma outra vida.
Ouvir as profecias,
Agora há enlace entre nós,
Entre nós até agora
Mantidos separados em vida e após.
Uma ponte de sonho sobre relva selvagem,
sobre a relva em que eu moro.
Oh, honrado! não me acorde à força.
Eu vejo que a lei é perfeita.

SHITE (supostamente invisível)
 

É um bom rito o que fez, senhor,
Um rito que avança sobre dois mundos,
E liga um amor antigo
Que foi esgarçado entre os dois.
Eu vigiei por mil anos.
Aceite meus agradecimentos,
Pois este enlace está sob uma difícil lei.
E agora eu vou me mostrar na forma de Nishikigi.
Eu aparecerei agora pela primeira vez em cores.
(Os personagens anunciam ou explicam seus atos, já que a maioria destes são simbólicos. Assim aqui o Shite, ou Sh´te, anuncia sua mudança de vestimenta, e depois a dança.)

CORO
 

Os três anos são passados e acabados:
Isso tudo não é mais que uma antiga história.

SHITE
 

Para sonho por sob sonho nós retornamos
Três anos... e o enlace chega agora!
Esta noite aconteceu de novo e de novo
E só agora chega o encontro.

CORO
 

Olha lá na caverna
Sob os troncos do Suzuki.
De sob as sombras da relva de amor,
Olha, olha como eles avançam e surgem
Por um instante... ilusão!

SHITE
 

Há na raiz do inferno
Distinção alguma entre príncipes e plebeus;
Pior para mim! diz o ditado.

WAKI
 

Estranho, o que parecia uma caverna tão velha
Está toda luz-luzente por dentro,
Igual o ondear do fogo.
É como o interior de uma casa.
Eles estão preparando um tear,
E juntando talismãs. Não,
Os fios são lá de um tempo antigo.
É uma ilusão; ilusão?

TSURE
 

Nossos corações estiveram
Na escuridão da neve que cai,
Nos perdemos na nevasca.
Vocês devem distinguir melhor que nós
O quanto é ilusão,
Vocês que estão no mundo.
Nós estivemos no redemoinho
daqueles que se esfumam.

SHITE
 

De fato, antigamente Narihiria disse
— e desapareceu com os anos —
"Que um homem que está no mundo narre o feito."
É tua parte, viajante,
Dizer o quanto é ilusão.

WAKI
 

Que seja um sonho ou ilusão
Ou o que queira, não me importa.
Apenas mostrem-me a outrora
Tão passada e soterrada na neve –
Agora, rápido, enquanto ainda é noite.

SHITE
 

Olha, então, outrora se mostra
Frágil como a flor-da-sombra
Surgindo na relva que a sustenta.
E você não tem mais que uma lua por lanterna.

TSURE
 

A mulher entrou na caverna.
Ela arruma seu tear
Para tecer o Hosonuno,
Fino como o coração do Outono.

SHITE
 

De sua parte, aquele que pode vesti-lo
Segurando seus talismãs
Bate em um portal que foi fechado.

TSURE
 

Outrora ele não teve resposta
Nem um som de segredo
A não ser...

SHITE
 

O som do tear.

TSURE
 

Era um som doce como de esperanças e grilos,
Um som fino como o Outono.

SHITE
 

Era o que se ouviria a qualquer noite.

TSURE
 

Kiri

SHITE
 

Hatari

TSURE
 

Cho.

SHITE
 

Cho.

CORO (imitando o som de grilos)
 

Kiri, Hatari, cho, cho,
Kiri, Hatari, cho, cho.
O grilo costura seus velhos trapos
Com a relva nova do campo; cho,
Churr, icho, como o fuso de um tear: churr.

CORO (antístrofe)
 

Que assim seja, faz-se tecido de relva em Kefu,
Kefu, o fim da terra, inigualável no mundo.

SHITE
 

É um antigo costume, realmente,
Mas este sacerdote olharia para o passado.

CORO
 

O próprio bom padre diria:
Mesmo que nós tecêssemos o tecido Hosonuno
E preparássemos os talismãs
Por mil, por cem noites,
Mesmo assim nosso belíssimo desejo não passará,
Nem evanescerá, nem morrerá.

SHITE
 

Mesmo hoje a dificuldade de nosso enlace é lembrada
E é lembrada em canção.

CORO
 

Dá que nós cheguemos a poder,
Mesmo com nossa escassa substância,
Mostrar, mesmo agora,
Embora o façamos em um mero sonho,
Nossa forma de repetição.
(explicando o movimento de SHITE e TSURE)
Ali ele está, carregando bastões,
E ela não precisa ser interpelada.
Vejam-na dentro da caverna,
Com o som do tecer parelho ao grilo.
Os portais de relva e a sebe estão entre eles.
Isto é um símbolo.
A noite já chegou.
(agora explicando os pensamentos no espírito do homem)
Os pensamentos de amor estão nele em alta pilha,
Tão alta quanto a dos talismãs,
Tão alto quanto os talismãs, uma vez coloridos,
Agora pálidos, se amontoam na caverna.
E ele sabe de seu palor. Diz:
Eu, um corpo, desconhecido para qualquer outro homem,
Como madeira velha enterrada no musgo.
Era adequado
Que eu parasse de pensar os pensamentos de amor.
Os talismãs se desfazem e decaem,
E mesmo assim
O rumor de nosso amor
Põe-se a caminhar e se move pelo mundo.
Não tivemos enlace
Mas lágrimas, parece, trouxeram um brilhante broto
Para a árvore ressecada do amor.

SHITE
 

Diz, eu poderia ter previsto
Ou sabido que uma pilha de minhas cartas
Estaria no canto do banco dela?

CORO
 

Por cem noites e além
De sono confuso, obtuso
E agora tornam tudo uma balada,
Não para durar um ou dois anos apenas
Mas para até que os dias durmam
No fundo das areias de Kefu,
Até que o fim do ano
esteja vermelho com o Outono,
Vermelho como estes bastões de amor.
Mil noites são em vão.
E posto-me ao lado do portão.
Não me permite a entrada, não se mostra
Até que eu e minhas mangas percam a cor.
Em nome do brocado de lágrimas
Que orvalha minhas mangas,
Por que você não me permite a entrada?
E estamos todos fadados a passar.
Você, e minhas mangas, e minhas lágrimas.
E você não soube ao menos
Quando três anos se findaram.
Cruel, ai, cruel!
Os talismãs...

SHITE
 

...Foram deitados mil vezes
Então, agora e para sempre.

CORO
 

Verei ao menos o quarto dela
Que nenhuma outra vista atravessou?

SHITE
 

Feliz finalmente e bem avistada
Chega agora a noite das núpcias:
Nos encontramos para o cálice de vinho.

CORO
 

Quão gloriosas as mangas da dança,
Que são como os volteios da neve!

SHITE
 

Tece a dança.

CORO
 

Tece a dança e traz a música.
Esta dança é para Nishikigi.

SHITE
 

Esta dança é para os brinquedos noturnos,
E para o tecer.

CORO
 

Para os dons entre amante e amante:
É um reflexo no cálice de vinho

CORO
 

Ari-aki,
O sol sai!
Vamos embora antes que a luz chegue.
(para o Waki)
Pedimos a você, não desperte,
Todos vamos nos desfazer,
Os bastões e este tecido de um sonho.
Agora sai do sono,
Tece a fronteira, nada
Espera por você:
Não, tudo isso desaparecerá.
Não há nada aqui a não ser
Esta caverna por entre o campo.
O vento do dia se move entre os pinheiros;
Uma terra selvagem, sem luz, sem gente.

Fim de Nishikigi


 

RICARDO PINTO (tradutor) é poeta e escritor, ou quase. Atua como professor, edita a revista Confraria e é sócio da editora Confraria do Vento. É mestre em Literatura Comparada e teve alguns artigos e poemas publicados em sites e revistas, assim como um livro de poemas Amar-o-mar e Outros Poemas (2000). ricardo@confrariadovento.com
 


 

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