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paloma vidal
la canción de las ciudades
La canción de las ciudades (1999) compartilha com o romance “o
desenvolvimento de uma aprendizagem”, afirma a autora, Matilde Sánchez, no
prólogo. Que aprendizagem seria essa? O livro narra uma série de viagens.
A primeira delas é para Amsterdã e está datada de 1979. Para fugir do
lugar-comum, a narradora e seu namorado, C, em sua primeira viagem à
Europa, escolhem como destino a Holanda, “um país insignificante e
periférico que um dia dominara o mundo”. É uma viagem de três meses feita
por jovens privilegiados, que sob ditadura, saindo de uma cidade sitiada,
não viajam exilados. Eles pretendem peregrinar no sentido contrário dos
imigrantes que foram para a América, mas na verdade se aproximam mais dos
tantos intelectuais argentinos viajantes que buscaram a iluminação na
Europa. Como afirma Beatriz Sarlo, “as viagens de Sánchez se encaixariam
com as da elite deste século, mas, como certamente a autora leu Victoria
Ocampo, decide admirar menos”. O texto são as impressões de uma viajante
que quer escapar tanto do esnobismo do intelectual quanto da
superficialidade do turista.
Sua narrativa tem a marca da melancolia, em contraste com o entusiasmo de
C, que se inflama ao falar da situação política na Argentina. Em Amsterdã
conhecem exilados de seu país. “Cultivavam a identidade como só se faz no
desterro, instalados plenamente no patetismo”, conta a narradora. O
discurso exaltado de C inicialmente encontra nesse grupo uma platéia
receptiva. Mas tudo termina num forte desentendimento quando ele menciona
a morte de Roberto Mario Santucho, exaltando o militante político
assassinado num enfrentamento com o exército em 1976. Entre seus
espectadores está um dos líderes da organização guerrilheira Montoneros,
Vaca Narvaja, que expulsa os dois jovens do galpão onde mora o grupo. “Os
outros guardavam silêncio. O estouro os havia colocado em evidência, já
não os apresentava como simples exilados, que de fato eram por outro lado,
que talvez fossem, mas nós não sabíamos bem, porque tudo era confuso
nesses anos”, conclui a narradora.
Ela está em busca de uma “percepção excepcional de situações triviais”, à
qual dará o nome de “série de impressões”: “Há um ir e vir da recordação”,
descreve, “um lugar onde o passado e o presente intercambiam seus
materiais e produzem o que se poderia chamar de iluminação. Esse momento
não está marcado pela alegria do achado, mas todo o contrário, pela
tristeza de uma comprovação íntima, às vezes irreparável”. É justamente
essa tristeza que diferencia a “série de impressões” da experiência
proustiana, como a própria narradora observa. Benjamin identificou o
“dilacerante e explosivo impulso de felicidade que atravessa toda a obra
de Proust”. Existe uma “dialética da felicidade”, defende Benjamin: uma
felicidade sem precedentes, original, e uma felicidade que retorna, como
restauração da felicidade original. Das longas frases proustianas surge a
recordação como recuperação dessa felicidade que rompe com o tédio. Já o
que une a “série de impressões” em Sánchez é a desolação. Assim, as
“impressões holandesas”, por exemplo, têm a ver com mudanças de luz, com o
claro-escuro, com a passagem da luz à sombra, que invocam a sensação de
ameaça ou de falsa segurança. Elas são o contrário da experiência da
madeleine, dotando a lembrança de uma opacidade melancólica.
Em 1993, quase quinze anos depois da viagem à Holanda, as “impressões
holandesas” seriam recuperadas quando, numa noite no hospital, tendo dado
à luz à filha, o quarto na penumbra, dominado por um retrato da madona de
Delft, lhe traz de volta imagens de sua viagem. “Era Buenos Aires”,
recorda a narradora, “o hemisfério sul e, além disso, era primavera, mas
de todos modos voltavam os carvalhos de Breda com seus pingentes de gelo,
a tarde na catedral, o chão de lápides, tudo o que devia continuar
exatamente em seu lugar como nos últimos séculos”. A chegada do bebê
interrompe o fluxo da memória e, deitada com ele ao seu lado, numa “última
pulsão da vigília”, vem-lhe à lembrança a tristeza dos exilados que
conheceu em Amsterdã. As “séries de impressões” organizam desse modo as
lembranças em torno de algo que não é totalmente nomeável, uma sensação ou
uma percepção que retornam e trazem de volta uma inquietude. Elas são uma
forma de apreensão do passado, que não o redime ou o ilumina, mas o deixa
como uma pulsação perturbadora.
Outra das viagens, à Espanha, em 1984, é o retorno de imigrantes que foram
para a Argentina depois da Segunda Guerra Mundial. São os pais da
narradora, que nunca haviam voltado a seu país desde a partida. A viagem
promete um resgate da experiência através das vivências alheias, mas o
confronto da memória, “ornamentada por décadas de afastamento”, com a
Espanha real, globalizada, desloca os imigrantes de sua própria história.
A distância entre a lembrança e a realidade os leva à constatação de que
já não eram mais espanhóis, fato que nenhum dos dois jamais havia colocado
em dúvida, e transforma a viagem numa sucessão de choques que frustra
todas as expectativas e acaba inserindo-a na “série de impressões” da
morte do pai da narradora. “Poucos anos depois, quando ele morreu, pensei
que nunca deveria tê-lo levado”, ela conta na primeira frase do relato.
Seu pai evitara o retorno durante muitos anos, mas cedendo à insistência
da filha e do genro acaba aceitando viajar. A viagem o coloca cara a cara
com a passagem do tempo. Coincidência ou não, exatamente no dia em que
decide comprar uma passagem para visitar de novo a Espanha, quatro anos
depois, ele sofre um derrame mortal.
Poderíamos dizer que nessa série se incluem também as imagens de desamparo
que atravessam o romance La ingratitud, de 1990, em que a narradora
escreve de Berlim cartas para seu pai, que acaba morrendo enquanto ela
está fora. “O que é que pode esperar de mim meu pai?”, ela pergunta. Num
“estado crônico de indigência”, que é material mas também subjetivo, a
narradora se sente presa à palavra desse homem ausente, cuja voz nunca
escutaremos, embora em torno dela se desenvolva a narrativa. Num artigo
publicado na revista Punto de vista, Maria Teresa Gramuglio
assinala a “alta exigência reflexiva” e a “densidade da matéria narrativa”
que se conjugam neste romance; a tensão entre a necessidade de se
comunicar com seu pai e de realizar a separação que a distância impõe se
materializa nessa forma reflexiva e densa. A lucidez diante dos pequenos
sofrimentos cotidianos no país estrangeiro não elimina o peso da
experiência de estranhamento, que torna a escrita um exercício obsessivo
para se liberar da angústia.
A viagem da narradora de La canción de las ciudades com seus pais à
Espanha compartilha a acidez do luto de La ingratitud. A viagem se
torna uma despedida. Ao voltarem a uma origem que não existe mais, ao
invés de recuperarem sua história, os pais se deparam com um tempo
definitivamente perdido. A primeira parada é Barcelona, que “não lhes
poupou nenhuma faceta da frustração”. Diante das transformações provocadas
pela modernização e pela imigração, os dois velhos se refugiam no
preconceito: tudo lhes parece sujo, deteriorado, sem classe. Num carro
alugado, vão em direção ao sul. No trajeto, a mãe escreve suas memórias,
como uma última tentativa de resguardar um passado que se apaga diante dos
seus olhos, mas que talvez seja possível manter vivo na escrita, na
caligrafia mesma, testemunho da passagem do campo à cidade, e também da
pobreza à ascensão social num país estrangeiro, uma história que parece
apagada na Espanha modernizada. “Diante de seus vizinhos, eles ponderavam
a acelerada modernização da Espanha”, escreve a narradora. “Mas eu sabia
que sua pátria não era essa mas o apartamento na avenida Callao, alto e de
fundos, que os abstraía de todas as vicissitudes, suspendido em regiões da
lembrança. A Espanha tinha deixado de lhes pertencer. A origem já era um
lugar desconhecido”. Transformados em “cartógrafos de uma memória alheia”,
como ela diz, a narradora e C. testemunham a última viagem dos que não
podem mais voltar.
Ao narrar a viagem a Berlim, em 1986, a narradora fará mais um exercício
de cartografia. Aurore e Erika serão suas Trümmerfrauen, mulheres
de escombros, que viveram o trauma coletivo da guerra. “Aurore media o
mundo através dos objetos”. Não se tratava de avareza, mas de uma medida
adquirida no cotidiano do estado de exceção. “Elas viviam num universo
doméstico, no qual depositavam a tranqüilidade e a inquietude, os objetos
eram sua segunda natureza. Sair em conta, dar resultado, eram varas que
dividiam o campo humano entre o útil e o inútil, como a brecha que
distinguia saúde e doença. Eram as medidas com que uma geração de mulheres
havia regido sua vida”. Erika compartilha com Aurore essa aprendizagem da
guerra assim como uma dificuldade de se situar numa cidade definitivamente
transformada por ela. Ao lhe dar as indicações para chegar à sua casa, ela
diz: “Você encontrará uma loja de aluguel de roupa de gala, aí é onde deve
dobrar, continue, sem atravessar nunca a rua, até o mecânico de
bicicletas, ali, sim, atravesse, bem em frente está nossa casa, no quarto
andar”. Como era de se esperar a loja e o mecânico haviam desaparecido.
“As Trümmerfrauen se confrontavam com uma cidade que já não lhes
obedeciam”, conta a narradora. “A Berlim real se afastava, evoluía em
direção a novas formas prescindindo delas”. Através de suas “velhas
berlinenses”, ela verá os efeitos da guerra na organização da vida
cotidiana e no mapa urbano, que continuará evoluindo até se tornar
irreconhecível para elas.
A guerra reaparecerá na viagem a Auschwitz, também em 1986. Acompanhada de
uma amiga finlandesa que conheceu em Berlim, a narradora visita o museu em
que se transformou o campo onde os nazistas assassinaram milhares de
pessoas durante a Segunda Guerra. Ela se depara com o problema de como
fazer um registro desse lugar que não seja um “memorial do esquecimento”,
já que dele parecem ter se apagado todas as marcas do horror. Ela e sua
amiga buscam recuperar uma experiência: “Quero voltar a ser aqueles olhos,
quero olhar pela primeira vez”, diz a finlandesa. Por isso acabam diante
do auditório de cinema, onde conseguem assistir a um documentário da
liberação do campo, comprando todos os bilhetes da função por menos de
vinte dólares. Na sala vazia, o peso dos mortos que povoaram o campo. Na
tela, as imagens petrificadoras dos sobreviventes incrédulos, que não
sabem o que fazer com sua nova liberdade. Entre os corpos esquálidos, a
narradora busca reconhecer algumas de suas conhecidas judias que estiveram
em Auschwitz, Fanny e Ethel, buscando um ponto de contato com essas
histórias que “se desvaneciam de imediato para ceder passagem ao
esquecimento por simples auto-preservação da memória”.
De volta à estação que as levará a Cracóvia, as duas amigas vomitam nos
trilhos do trem as almôndegas que haviam almoçado. Assim termina esse
episódio que é o ápice de La canción de las ciudades. O passado não
se digere. O livro é o duro exercício de sua apreensão. Duro como o
aprendizado que a narradora faz do alemão, ao qual se dedicará
obsessivamente durante sua estadia em Berlim. Dele depende seu futuro de
escritora – se conseguir aprender essa língua estrangeira, conseguirá
escrever. “Quais eram as dobras íntimas dessa língua, por onde se
quebrava?”, ela se pergunta. Assim como no aprendizado do alemão, escrever
poderia ter a ver com descobrir as falhas da língua que tornam possível
transformá-la numa língua própria. É um trabalho de tradução, que “nos
permite apoderar-nos do jogo alheio”. A aprendizagem de La canción de
las ciudades se dá nesse exercício de apropriação: “Com o alemão eu
poderia esquecer de mim mesma, perder toda vaidade. Não era essa uma
grande aprendizagem a ser agradecida?”.
PALOMA VIDAL nasceu
em Buenos Aires, em 1975, e atualmente mora em São Paulo. Além de tradutora e editora
da Revista Grumo, é escritora, tendo publicado o livro de contos A duas
mãos, em 2003, e participado das antologias 25 mulheres que estão
fazendo a nova literatura brasileira (2004), Paralelos: 17 contos
da nova literatura (2004) e A visita (2005).
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