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nilson oliveira


do lugar ao fora do lugar: uma fisionomia-outra da escrita literária
 

 

 

E somos só esta vã escrita
nosso riso-risco contra um espelho, praia
que nos inverte e descreve
dissolVENDO-NOS

[Max Martins]
 


 

Um panorama

É sempre interessante perceber a fisionomia da cena literária do presente; é um movimento que sempre nos surpreende, não tanto pelas oscilações, mas pelo grau de estabilidade em que as coisas parecem seguir. A cena se move em uma quase harmonia. Boa parte das escritas do presente, segundo vemos, segue virada a uma espécie de projeto da identidade. Projeto ao que se atravessam os interesses da unidade, da representação, erigido por uma vontade da preservação, num culto ao mesmo anterior, quase sempre impermeável. Com efeito, vemos a cada instante novos entusiastas tangenciarem essa questão, partindo sempre da justificativa de que é preciso valorizar o que é nosso, valendo-se, para isso, dos meios da legalidade, reivindicando uma política de proteção, assegurando o direito de fazer imperar a totalidade da sua identidade, seja em matéria de literatura ou do que for. Nada mais natural, afinal, trata-se da atração pelas coisas da memória, de uma vontade de preservação, executada não sem uma recusa ao fora do lugar, numa ação que sempre restringe, pois não existe identidade sem fronteira delimitada ao estranho, forasteiro, diferente. Afinal, o estranho é sempre incômodo, ele é para o enraizado alguém ameaçador, pois expõe a fragilidade do lar sagrado. Partindo dessa perspectiva, é inconcebível uma literatura paraense escrita pelo outro. Sobre maneira, sendo esse outro a expressão radical do além do Ele. Aquele que trafega do Lugar ao Fora do Lugar, movimento que origina em Rimbaud a partir da formula Eu sou o Outro. Mas que também cabe a Dalcidio Jurandir que através da sua escrita desejosa fez do lugar um arquipélago, trafegando por todas as paragens do possível, num movimento nômade, que desenhou o Marajo como uma paisagem outra, da multiplicidade. Gerando uma escrita que por si, é do movimento, visto que foi encadeada numa intensa proliferação, paisagem de muitos romances, ciclo do extremo norte, que numa perspectiva literária, segundo vemos, pode evidenciar a busca de um possível, norte: evidências de possibilidades outras para a escrita literária.



As Marcas da Diferença

Na literatura, a escrita da identidade acontece num plano alhures ao espaço da diferença. Almeja a unidade dos diferentes, pela lógica do fazer-se representar em prol da ‘minha memória’, do ‘meu lugar’, da ‘minha escrita’ da ‘minha cultura’, gerando com isso uma estrutura fechada, devidamente protegida, na qual o dessemelhante, o órfão, o nômade, o diferente estão fora, pois não se deixam enlaçar pelas malhas dessas estruturas; correm pelas margens, por linhas de fuga, sempre inusitadas, por vezes imperceptíveis. Na identidade a escrita é sempre a expressão de um registro, é sempre histórica, a serviço de uma identificação, como uma marca imutável, que se envereda pelos contornos do referente, reproduzindo o seu significante, mantendo a sua herança, com o objetivo claro de perpetuar. Mas em outra medida, a partir dos escritores modernos, o tema da diferença atravessa a cena, cruza a ribalta, a tela, a página branca, e faz soar ecos de multiplicidades numa produção de saberes diversos, de encontros variados, de composições caóticas, de disseminações perigosas, de contágios incontroláveis, de acontecimentos insuspeitados. Eles roubam a Cena, pois enquanto os entusiastas da identidade querem transformar a diversidade num elemento comum, os poetas da diferença querem a variação, a multiplicação. Isso porque a diferença não é da ordem da representação; não é um produto e nem resultado. Segundo Deleuze, é “a diferença interna à própria coisa”, o “diferenciar-se em si da coisa”. Com efeito, a escrita literária nasce sempre das bandas da diferença, pois cada livro é a expressão do que pode o seu traço, e a sua força nasce exatamente dessa execução, da peculiaridade do estilo que a obra faz transparecer. E aquele que está por trás da obra é por certo um artista, ele chama-se Paul Valéry, Max Martins, Ismael Nery, é uma figura ativa, que combate pela criação de coisas novas sempre superando as estruturas do estabelecido. Portanto, esse artista é sempre injusto visto que ignora deliberadamente as verdades estabelecidas (...). Toda Criação é injusta. Criar é estuprar: a folha branca, a tela virgem, imaculada – toda criação supõe um desvirginamento. Não existe criação sem dor, sem cortes, sem combate, entre pregas e estruturas, linhas de fuga e nomeação. Toda a criação começa por violar o nada. Pois tanto a tela quanto a folha, mesmo em branco, já estão demarcadas pelos clichês “preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão”. Criar é estar sempre diante desta questão: superar o nada e alcança o limiar da criação. No caso da literatura, para criar, cada escritor combate o seu próprio combate, essa é sua força, entrar para literatura a partir do que consegue engendrar, movendo a linguagem para um estado de variação contínua no qual se escreve, se cria, se escuta com estilo, virando a cena para as bandas do devir. E devir é transformar, brincar com a língua, tornando-a viva.

A escrita literária por vezes tem o rosto de Eutanázio, traz a sua inquietude, expressa seu riso demoníaco. É uma verdadeira vitalidade do precário, portanto da vida, a vida como máquina de reinvenção. A literatura é uma saúde, força que se expressa através dos conceitos. Escrever é criar conceitos, como Ahab, Como Ulrics, como Bouvard e Pécuchet. Na literatura cada personagem é uma abertura para pensar o pensamento da literatura, e também da vida. Assim fez Dalcídio com Alfredo, Eutanázio e outros, criando personagens que carregam as marcas do intempestivo. Personagem estas que nascem do tempo da escrita, que sobrepujam a imagem do histórico, alimentando uma intensa relação com o presente, no domínio da virtualidade e da potência, tal como as forças que se ativam a cada vez em que são mobilizadas, acontecendo como um eterno devir. A literatura acontece nessa direção, com a singularidade de um Haroldo Maranhão, de um Paulo Plínio Abreu, que atravessaram o espaço literário com o intenso das suas diferenças, pela intensidade criativa de suas escritas, numa produção máquina que se efetuou por tudo que fizeram engendrar em termos de escrita literária. Por certo essas escritas vieram de um lugar que passa por fora do muro da identidade, num fora total, de onde fizeram cintilar a sua diferença enquanto acontecimento. Com efeito, é interessante notar que, a partir desses autores [e de alguns outros], nem sempre a identidade foi o mote que moveu os interesses da cena literária. Fato este que numa rápida virada de tempo, podemos encontrar, num período próximo, o vigor de numa cena viva, movida por várias investidas, revistas, jornais, crítica, pensamento, um ambiente com aroma de modernidade. Via-se de um lado Cauby Cruz envolto no que viria a ser os Elementos do Verbo; Mario Faustino no exercício de uma atividade que ensejava o coração da crítica criativa, mas a um só tempo, de uma poesia severa; Robert Stock, estrangeiro, exílio, vindo de uma outra comunidade, vivendo aqui, no ambiente desses modernos, o afeto de um saber aberto a outras expressões, sobretudo ao saber desse estrangeiro. Paulo Plínio Abreu e seu exílio interior, vida doada ao intenso da Poesia, aberta às experiências que a escrita pode oferecer, na leitura de Rilke, Hölderlin, Rimbaud. Mas, sobretudo, no projeto da sua própria escrita. Max Martins afiando as malhas do estranhamento, desconfiando, pensando, tecendo a imagem do seu Estranho. Haroldo Maranhão nas voltas do suplemento literário da folha do norte [1949-51], publicando os seus próximos e os outros, aqueles do dorso da alta modernidade brasileira, inglesa, francesa, gerando novas referências e, com isso, um ambiente de intensa difusão da escrita literária e muitos outros acontecimentos. A Cena se ambientava realmente como uma Cena ativa. Imagem decisiva para o entendimento das forças que renovaram a escrita literária, visto que tais movimentações foram agenciadas pela vontade de um fazer outro, ligado a novas experimentações. E é exatamente por essas movimentações que essas escritas permanecem atuais, pois foram esculpidas por forças ativas, ligadas a vários processos de criação, numa ação de combate contra o estabelecido em favor de um devir futuro. Força ativa caracterizada por sua potência transformadora, ou como diz Nietzsche: pelo poder dionisíaco de transformar, de combater o passado, inscrevendo-se num tempo sempre presente. Com isso toda a produção movida por essa ‘comunidade’ ainda persevera e por certo muito ainda tem a nos deixar, pois em cada livro, poema, personagem [criado], desloca-se um imenso de forças que se atam a um pensamento que ainda insiste.


O Presente da Cena na Cena do Presente

É difícil desenhar uma fisionomia da cena literária no presente, no entanto sabemos que as coisas estão em movimento, por vezes fora do limite da fronteira ou na outra margem do rio, mas sempre acontecendo. Essas movimentações se dão sempre pelo meio – nunca pelo começo ou fim – nas dobras, em circunstâncias quase imperceptíveis, fora dos centros e dos holofotes, dentro de uma exigência que avança alargando o pensamento da literatura.

Numa perspectiva subterrânea aos interesses que consagram o autor mais vendido da vez, “o escritor se encontra cada vez mais na cômica situação de não ter mais nada a escrever, de não possuir nenhum meio para escrevê-lo e”, no entanto, “de ser obrigado pela extrema necessidade de continuar escrevendo-o”, pois escrever [fala-se no sentido da literatura] é mobilizar forças que estão intimamente ligadas à vida, imanente a um processo de criação, e a uma necessidade ruidosa que só se contém quando rompe o branco do papel. Escrever é romper o branco do papel. Viagem irreconciliável a qualquer destino estabelecido, executada com avidez por uma Escrita Menor: Menor no sentido de uma vontade que escapa às determinações, aos roteiros ou às ‘cafetinas’ do mercado. Menor no âmbito de uma Literatura Menor, que navega por linhas de fuga, lançando-se à selvageria dos combates, compondo novos axiomas, atravessando o horizonte do qual tão bem nos falou Proust a partir da “fórmula”: os belos livros são escritos em uma língua estrangeira. É nessa jornada que pulsam os acontecimentos, denunciando a força de um estilo, ou revelando experiências inusitadas que nos assombram a cada vez.


 

 

 

NILSON OLIVEIRA é editor da revista Polichinello, autor de A Outra Morte de Haroldo Maranhão (edições IAP 2006)


 

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