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paul valéry
última visita a mallarmé
Quando comecei a freqüentar
Mallarmé em pessoa, a literatura não me era quase mais nada. Ler e
escrever pesavam-me, e confesso que me resta ainda alguma coisa desse
enfado. A consciência do meu próprio eu por ela própria, a elucidação
dessa atenção, e o cuidado de desenhar em detalhes minha existência não
me deixavam quase nada. Esse mal secreto nos afasta das Letras, nas
quais tem, entretanto, sua origem.
Mallarmé, todavia, figurava em meu sistema íntimo como o símbolo de arte
sábia e como o supremo estado da mais elevada ambição literária. Eu
tinha feito de seu espírito uma profunda companhia, e esperava que a
despeito da diferença de nossas idades e da imensa discrepância de
nossos méritos, chegasse o dia em que eu não temeria em lhe expor minhas
dificuldades e minhas opiniões particulares. Nem era isso o que me
intimidava, pois ninguém me foi mais doce nem mais deliciosamente
simples que ele; mas me parecia então que existia alguma discordância
entre o exercício da literatura e perseguição de certo rigor e a inteira
sinceridade do pensamento. A questão é infinitamente sutil. Eu deveria
ocupar Mallarmé com isso? Eu o estimava e o colocava acima de tudo; mas
eu tinha renunciado àquilo a que ele adorou durante toda sua vida, e ao
qual ele tinha oferecido tudo, e não encontrava mais a coragem de
fazer-lhe escutar.
Não via, entretanto, forma mais verdadeira de lhe render homenagem que
confiar-lhe meu pensamento, e mostrar o quanto suas pesquisas, e as
análises mais finas e mais preciosas que delas procedem, tinham a meus
olhos transformado o problema literário, me levando a abandonar a
partida. É que os esforços de Mallarmé, bem contrários às doutrinas e às
preocupações de seus contemporâneos, tendiam a ordenar todo a esfera das
Letras segundo a consideração geral das formas. É extremamente notável
que ele tenha chegado, pelo estudo aprofundado de sua arte, e sem
conhecimentos científicos, a uma concepção tão abstrata e tão próxima
das especulações mais elevadas de certas ciências. Ele jamais falava, na
verdade, de suas idéias senão por figuras. O ensinamento explícito o
repugnava estranhamente. Seu ofício, o qual abominava, tinha algo a ver
com essa aversão. Mas, tentando resumir para mim suas tendências, eu me
permitia interiormente designá-las à minha maneira. A literatura
ordinária me parecia comparável a uma aritmética, isto é, a busca de
resultados particulares, nos quais mal se distingue o preceito do
exemplo; aquela que ele concebia me parecia análoga a uma álgebra, pois
supunha a vontade de colocar em evidencia, de conservar através dos
pensamentos e de desenvolver por elas mesmas, as formas da linguagem.
“Mas no momento em que um princípio foi reconhecido e entendido por
alguns, é inútil perder tempo na sua aplicação”, me dizia ele.
O dia que eu aguardava jamais chegaria.
*
Vi Stéphane Mallarmé pela última vez em 14 de julho de 1898 em Valvins.
Terminado o almoço, conduziu-me a seu “gabinete de trabalho”. Quatro
passos curtos, dois longos; a janela aberta ao Sena e à floresta por uma
folhagem toda rasgada de luz, e os mínimos estremecimentos do rio
luzidio escassamente repetidos pelos tabiques/ paredes do canal.
Mallarmé inquietava-se com os detalhes supremos da fabricação do
Lance de dados. O inventor considerava e retocava a lápis este
engenho totalmente novo que a imprensa Lahure tinha aceitado construir.
Nada havia sido empreendido ainda, nem sonho de empreender, de dar a
figura de um texto uma significação e uma ação comparáveis àquelas
do próprio texto. Como o uso ordinário de nossos membros nos faz
esquecer sua existência e negligenciar a variedade de seus recursos, e
como por vezes é possível que um artista do corpo humano nos faça ver
nele todas as suas flexibilidades, ao preço da sua vida, que ele consome
em exercícios e expõe aos riscos de seu desejo, assim o uso habitual da
palavra, a prática da leitura cursiva e aquela da expressão imediata
debilitam a consciência desses atos por demais familiares e suprimem a
idéia de suas potências e de suas perfeições possíveis, – a menos que
sobrevenha e se consagre alguma pessoa estranhamente desdenhosa das
facilidades de seu espírito, e singularmente atenciosa àquilo que ele
pode produzir de mais inesperado e de mais perspicaz.
Eu estava diante desta pessoa. Nada me dizia que eu nunca mais o veria
novamente. Não havia, no ouro do dia, corvo qualquer encarregado de
pressagiar.
Tudo estava calmo e seguro... Mas enquanto Mallarmé falava-me, o dedo
sobre a página, lembro-me que meu pensamento se colocou a sonhar este
exato momento. Tal pensamento dava distraidamente a esse momento um
valor absoluto. Eu sonhava, ao lado dele vivo, o seu destino como
encerrado. Nascido para a delícia de uns, para o escândalo de outros, e
maravilha de todos: para esses, maravilha de demência e absurdo; para os
seus, de orgulho, de elegância e de pudor intelectual, bastara-lhe
alguns poemas para recolocar em questão o objeto próprio da literatura.
Sua obra difícil de entender, impossível de negligenciar, dividia o povo
letrado. Pobre e sem honrarias, a nudez de sua condição aviltava todas
as vantagens dos outros; mas estava-lhe assegurado, sem que procurasse,
fidelidades extraordinárias. Quanto a ele, cujo sorriso de sábio, de
vítima superior, esmagaria suavemente o universo, jamais tinha pedido ao
mundo aquilo que contém de mais raro e de mais precioso. Ele o
encontrava em si.
*
Fomos ao campo. O poeta “artificial” colhia as flores mais ingênuas.
Acianos e papoulas ocupavam nossos braços. O ar era clama; o esplendor
absoluto; o silêncio pleno das vertigens e das trocas; a morte
impossível ou indiferente; tudo formidavelmente belo, abrasador e
dormente; e as imagens do sol tremiam.
Ao sol, na imensa forma do céu puro, eu sonhava com um recinto
incandescente onde nada de distinto subsiste, onde nada permanece, mas
onde nada cessa; como se a destruição a si mesma se destruísse aos
poucos. Eu perdia o sentimento da diferença entre o ser e o não ser. A
música por vezes nos impõe essa impressão, que está além de todas as
outras. A poesia, imaginava, não é ela também o jogo supremo da
transmutação das idéias?
Mallarmé me mostrou a planície que o verão precoce começava a dourar: “veja,
diz ele, é o primeiro toque de címbalo do outono sobre a terra”
Quando veio o outono, ele não estava mais.
Traduzido por Márcio Freire e Márcio-André
PAUL VALÉRY
é
filósofo, ensaísta, escritor e poeta francês. Suas obras também incluem
interesses em matemática, filosofia e música. Depois da Primeira Guerra
Mundial se dedicou inteiramente à literatura e foi aceito pela Academia
Francesa em 1925. Suas obras mais destacadas são Introduction à la méthode
de Léonard de Vinci (1895), La soirée avec monsieur Teste
(1896), La jeune parque (1917), Album de vers anciens
(1920), Charmes (1922), Regards sur
le monde actuel (1931), Degas, danse, dessin (1938), Variétés I, II, III,
IV, V (1936–1944). Esta é uma tradução inédita em português.
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