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pedro süssekind


o filósofo Hamlet

   

 

 

Se, em vez de falar sozinho em algum recanto do palácio de Elsinore, Hamlet decidisse escrever um ensaio filosófico sobre as questões que o inquietavam, começaria exatamente como O mito de Sísifo, de Albert Camus: “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio”. Reflexivo, melancólico, marcado por dúvidas sobre como agir, paralisado pelo conhecimento de uma verdade profunda, oculta aos olhos dos outros, Hamlet é o mais filosófico dos personagens de Shakespeare. E, como filósofo, ele seria uma espécie de protótipo ou precursor do Existencialismo, um pensador diante do seguinte dilema: melhor suportar esta vida que se mostra absurda ou, reconhecendo a falta de sentido da existência, dar cabo dela? Em outras palavras, o mais nobre é “sofrer as estocadas e as flechadas de uma sorte ultrajante” ou “levantar armas contra esse mar de problemas” que é a vida e, com um único golpe de punhal, acabar com eles?


No suposto ensaio do filósofo Hamlet haveria, em lugar dessas imagens poéticas, como a das lanças e flechas, ou a dos sonhos do sono da morte, a tese de Camus: a questão fundamental da filosofia é julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida. Saber se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, se o sol gira em torno da Terra ou a Terra gira em torno do sol – para mencionar os exemplos do escritor francês em seu “Ensaio sobre o absurdo” –, tudo isso é secundário, irrelevante. Então, o príncipe da Dinamarca poderia acrescentar, eis a única questão: ser ou não ser.


Na peça de Shakespeare, é um fantasma quem revela a verdade, narrando o crime hediondo, infame e monstruoso executado por Cláudio, o irmão que envenenou o rei para conquistar o trono e a rainha. Se não fosse proibido contar os segredos de seu cárcere sobrenatural, afirma o espectro ao se identificar como o falecido rei, narraria uma outra história, capaz de dilacerar a alma de seu filho, gelar o sangue de sua juventude e fazer os seus olhos saltarem das órbitas. Em vez disso, ele apenas conta o que ocorreu, os fatos da vida anterior aos tormentos fantasmagóricos, ou seja, como ele foi assassinado e não morto por uma picada de serpente. Assim, a verdade revelada é tão dilacerante para Hamlet, que torna difícil imaginar a suposta história das profundezas do além-túmulo. E, ao revelar o crime, o fantasma impõe o dever de vingá-lo, obrigação que será o tormento, a obsessão e a realização do príncipe ao longo dos atos seguintes.


Portanto, a verdade terrível que constitui o ponto central da trama surge na boca de uma aparição sobrenatural, num evento “espantosamente estranho”, como classifica o sóbrio e ponderado Horácio (que tentara impedir o príncipe de acompanhar o fantasma). É essa maneira de classificar o acontecimento espantoso que suscita a famosa frase de Hamlet: “Há mais coisas no céu e na Terra, Horácio, do que as sonhadas por tua filosofia” (Ato I, Cena 5), responde o príncipe, diante do estranhamento de seu amigo. Seria possível, então, opor ao conhecimento restrito de Horácio, que se mantém nos limites da razão e do bom senso, a filosofia de Hamlet, que conhece a verdade proveniente das trevas, que sabe das reais motivações das quais resulta a situação atual do reino?


Logo no primeiro monólogo do protagonista, na segunda cena da peça, ele lamenta que haja um mandamento contra aqueles que se suicidam, pois desejaria que essa “carne sólida demais” derretesse, dissolvendo-se em orvalho. Em seguida, declara enfadonhas e sem proveito todas as práticas do mundo, que só lhe causam tédio e nojo. Quanto a esse mundo, um “jardim abandonado que degenera, cheio de ervas daninhas, tomado apenas pelas coisas que são corruptas e vulgares na natureza”, maldito seja! (Nesse caso, o mesmo leitor que o associou a Camus poderia imaginar Hamlet usando em seus escritos o título do também dinamarquês Kierkegaard: “O desespero humano”.)


O famoso monólogo do terceiro ato, no qual o protagonista volta ao tema do suicídio, pode ser considerado como um momento extremo, em que aquele plano de fundo da morte que o rondava desde o início da peça ganha uma expressão direta e ameaça vir à tona, como atitude real. Após expressar a questão (Ser ou não ser?), Hamlet enumera as práticas dignas de nojo e causadoras de tédio: “o açoite e os escárnios do tempo, a afronta do opressor, o desprezo do arrogante, as dores do amor não correspondido, a demora da justiça, a insolência de quem tem poder e os deboches que o mérito paciente recebe dos indignos”. (Ato III, Cena 1). Práticas suportadas em vão, por alguém que poderia encontrar a paz com um simples golpe de punhal.


Ora, naquele momento evidentemente parece a Hamlet muito melhor o “país não descoberto do qual nenhum viajante retornou” do que o reino da Dinamarca, onde um usurpador fratricida ocupa o trono, ao lado de uma mulher dissimulada, a mais inconstante de todas as mulheres, a mãe infiel. Situação completamente absurda, terrível, inaceitável, ainda mais porque o príncipe não só é sobrinho do rei criminoso e filho da rainha que traiu o pai amado, como também é o único que conhece a verdade, enquanto o resto do reino festeja despreocupadamente.


É verdade que aquele Hamlet existencialista, provável autor de reflexões iguais às de Camus, só pode ser concebido segundo a perspectiva de leitores do século XX em diante. Contudo, a leitura “filosófica” de Hamlet possui uma tradição muito rica, que ressalta seu saber, seu conhecimento de uma verdade profunda por trás das aparências e das condições que iludem os demais personagens. Mesmo antes de ouvir o fantasma, na primeira cena em que o protagonista se manifesta, de olhos baixos e com nuvens sombrias em seu semblante, de luto em meio à celebração geral, ele diferencia ser e parecer. “Não conheço o parece”, afirma, quando responder à Rainha, que fizera uma pergunta sobre a morte, algo natural, parecer-lhe tão singular. Como um metafísico, Hamlet quer saber o que é, não o que parece ser.


Por trás das condições exteriores do reino da Dinamarca, por trás da ilusão, por trás da beleza e da ordem, esconde-se “algo podre”: o lado terrível da existência, as motivações violentas e avassaladoras que sustentam o mundo das aparências. Hamlet é quem conhece essa verdade mais profunda e, por isso, encara com enfado ou horror a situação à sua volta e, como um filósofo pessimista, corre o risco de sucumbir ao niilismo. Como diz o príncipe, após ouvir as revelações desconcertantes e aterradoras do fantasma de seu pai assassinado, o tempo está “fora de eixo”. Agora, por saber a verdade sobre o crime, Hamlet lamenta sua sina de “ter nascido para endireitá-lo”. A verdade o ameaça como uma negação do sentido da vida, uma gesto tão aterrador de negação, que toda e qualquer ação parece vã. Mas o personagem reconhece que o conhecimento da verdade impõe um dever. Por isso, não é mais possível apenas entregar-se à melancolia, como faz o príncipe em sua primeira participação na peça. Não é mais possível, como o mais profundo dos críticos, apenas condenar os atos vis dos poderosos, a morte imerecida e suspeita do rei amado, o coroamento e o casamento apressado em seguida.


Esse personagem-filósofo precisa dizer o que só ele sabe. Há algo de podre no reino da Dinamarca, há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a vã filosofia de Horácio, o tempo está fora de eixo e é preciso endireitá-lo. A situação trágica de Hamlet simboliza o conflito fundamental do indivíduo moderno, entre a liberdade das suas decisões e a necessidade imposta pelas circunstâncias históricas e pelas escolhas dos outros indivíduos. Cabe à filosofia, como cabe ao príncipe, encontrar o modo de superar esse conflito. Mas a dificuldade da tarefa é de tal ordem, que Hamlet, como um filósofo existencialista, diante do absurdo que salta a seus olhos, pensa no sentido do suicídio, por instantes considerado a única e melhor saída.


Segundo uma outra perspectiva, ou seja, encarado como um pensador da vida e da vontade, diante do lado mais aterrador que se oculta por trás da ilusão de felicidade, Hamlet se torna um bufão ou um ator que se equilibra entre a negação radical do pessimismo e as conseqüências de trazer à tona aquilo que só ele conhece. A visão aguçada de uma moralidade distorcida exige, no lugar do exercício da crítica meramente destrutiva, uma atitude afirmativa, por mais caro que custe a realização do dever. No momento decisivo, o príncipe age, assumindo o destino trágico que lhe cabe, porque a verdade precisa ser revelada. A própria tragicidade de Hamlet tem uma dimensão filosófica.

 


 

PEDRO SÜSSEKIND é poeta, romancista, contista, ensaísta e tradutor. Nascido no Rio de Janeiro em 1973, é doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em literatura comparada pela Universidade Livre de Berlim. Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto. Além de seu vasto trabalho como tradutor – vertendo autores como Goethe, Rilke, Paul Klee, Nietzsche e Schopenhauer –, é autor de Shakespeare, o gênio original (Zahar) e do livro de contos Litoral (7letras).

 


 

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