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alberto pucheu nietzsche: este e outros de seus apelidos
Não conheço seu nome, apenas
seu apelido: friedrich nietzsche. Na lombada de um livro, pode ser ele,
ou, então, simplesmente: nietzsche. Mas não conheço seu nome, apenas seus
apelidos. Olho para a estante; no dorso de outro livro, leio: friedrich
wilhelm nietzsche. Não conheço mesmo seu nome, apenas seus apelidos.
Lembro-me que, uma vez, tive um livro, assinado: frederico nietzsche. Deve
ser ele também, mais um de seus apelidos. Vejo que só conheço seus
apelidos; mesmo assim, alguns poucos. Há muitos apelidos seus que não
conheço; frederico guilherme, por exemplo, que acabo de ler em uma página
qualquer. Há muitos de seus apelidos que desconheço, que jamais
conhecerei. Como Lou deve tê-lo chamado na hora do único beijo? Com que
apelido? Não, não conheço nem mesmo seus apelidos. Há muitos que
desconheço. Como o cocheiro deve tê-lo imaginado, com que apelido? Não
conheço nem mesmo a maioria de seus apelidos. Muito menos um nome próprio
que assegure para ele uma pausa, um nome próprio que assegure um ele. Não
conheço seu nome próprio, não conheço um ele, o ele é mais um de seus
apelidos: nietzsche. Mas conheço outros de seus apelidos, conheço alguns
de seus apelidos. Como um outro, também ele sou um outro, todos os outros
e ninguém. Ele é todo mundo e ninguém, ele é qualquer um, traçado pela
escrita dos vários apelidos. Conheço outros de seus apelidos, e,
contrariamente aos nomes próprios, os apelidos não se iniciam por
maiúsculas. Conheço outros de seus apelidos, todos começados por
minúsculas: o crucificado, o animal, a grande besta, f., o coisa antiga,
dionísio, o artilheiro montado com as armas mais pesadas, f.n., um
monstro, um semicego, o atirador prussiano, n., o bombardeiro, o
professor, fritz, o fugitivo errante... Sim, conheço alguns de seus
apelidos, não todos, mas não conheço seu nome próprio, e há muitos de seus
apelidos que nem conheço. Penso que ele não tenha nome próprio, que o
suposto nome próprio já seja um apelido: friedrich nietzsche. O nome
próprio não existe; sua existência já é a do apelido. Quando muito, o nome
próprio insiste. Mas o que insiste do nome próprio é justamente o que lhe
é impróprio, o que insiste do nome próprio é sua impossibilidade, que,
tornando-se possível, existe: apelido. Apelidos. Apelidos de apelidos. O
nome próprio: um apelido que, barrado em sua intensidade, não consegue
mais se desdobrar. O nome próprio: um onomacentrismo. O nome próprio: um
estereótipo. O nome próprio: uma apropriação, e, sendo apropriação, todo
nome próprio é um proprietário. O nome próprio: um embuste superior. O
nome próprio: um ideal. O nome próprio: uma ficção reguladora criada pela
poesia; uma ficção cuja regulagem, estanque, esquecida de sua
ficcionalidade, deixa de ser poetizada, deixa de ser uma metamorfose de
verbos, de movimentos, de devires, de forças, transformando em maiúsculas
o que é só apelido. O nome próprio – uma maneira de tornar o apelido
regular, regrado, legislado, certificado, conceituado... Não importa;
mesmo habitual e necessário, o nome próprio: uma proteção. O nome próprio:
uma ficção, mais um poema, mais um apelido. Apelidos, apelidos de
apelidos, apelidos. O nome próprio, a crença no nome próprio, a mais
invisível das crenças, a crença na trindade gramatical, na causalidade do
sujeito/verbo/predicado. O nome próprio – das últimas crenças, talvez, que
ainda persistem. Dinamitar o nome próprio; dinamitar a gramática. Aliás,
dinamite – mais um de seus apelidos. O nome próprio: o impoetizado do
conhecimento, o fundo da representação, seu sustentáculo. Eis o homem:
apelidos, apelidos, apelidos de apelidos, apelidos sem fundo. Apelidos, o
à deriva de qualquer nome. Apelidos: metáforas de potências flagradas em
suas realizações. Não a gramática, portanto, ele habita, nem mesmo a
linguagem ele habita, ele percorre o movimento indizível de seus
interstícios, como quem, por inindividualmente precedê-las, precisa
recriá-las, inventando constantemente novos deslocamentos, novos arranjos
multiformes. Ou será esse movimento indizível de seus interstícios o que
se chama de linguagem? Ou precedê-la será propriamente habitá-la? Ou será
que os apelidos indicam apenas esse abismo precedente, o indiferenciado
que nunca lhe larga? O abismo precedente, jamais um nome próprio, mais um
apelido, mais um apelido que nunca abandona sua superfície, um apelido que
torna sua superfície ainda mais superfície, uma superfície abissal, mas
superfície. O indiferenciado que nunca lhe larga, outro apelido, outro
apelido que nunca larga sua diferença, outro apelido que torna sua
diferença ainda mais diferença, uma diferença indiferenciada, mas
diferença. Apelidos, apelidos. Apelidos dados pelo movimento indizível dos
interstícios da linguagem. Apelidos dados pelo abismo, pelo
indiferenciado. Apelidos. Apelidos: nomes de empréstimos, já disseram.
Apelidos: uma expropriação, já escreveram. Apelidos: uma desapropriação.
Apelidos: uma dispersão. Apelidos: nomes que saem do corpo, somatônomas.
Apelidos, codinomes, nomes de guerra, heterônimos, alcunhas, pseudônimos,
onomatóposes, criptônimos... todos desancorados. Apelidos, para escapar
dos poderes. Enquanto o nome próprio é dado pela mãe, pelo pai, pelos
cartórios com suas certidões, pelas carteiras de identidade, pelos CPFs,
pelos bancos, pelo governo, pelas instituições, por aqueles que, de alguma
maneira querem manter o controle, enquanto o nome próprio está submetido
ao Código Cível e ao Código Penal, os apelidos quem os emprestam são os
amantes, os amigos, os irmãos, os vizinhos, a galera do futebol, até mesmo
os pais, mas apenas quando horizontalmente com os filhos, quando abdicaram
de qualquer verticalização, de qualquer hierarquização, quando descobriram
que pais e filhos são apenas mais dois apelidos. O patrão não apelida seus
empregados. O patrão não acredita que seus empregados tenham apelidos, o
patrão acredita que os apelidos de seus empregados já sejam nomes
próprios. O patrão acredita no nome próprio. O patrão acredita que não
tenha apelido, que seu apelido já seja nome próprio. O patrão e seus
empregados. O empregado do patrão tampouco apelida seu patrão. O empregado
acredita que seu patrão não tenha apelido, que o apelido de seu patrão já
seja nome próprio. O empregado acredita no nome próprio. O empregado
acredita que não tenha apelido, que seu apelido já seja nome próprio. O
empregado e o patrão. O patrão e o empregado: dois crentes, crentes do
nome próprio. Apelidos. Apelidos. Apelidos de apelidos. Os apelidos são
sempre dado pelo instantâneo. Os apelidos são sempre dado pela perdição.
Um apelido: uma horizontalização deslizante. Um dia, chamaram-me de Seu
Beto, outro dia, de Senhor Beto; mas ao contrário dos nomes próprios, os
apelidos não comportam axiônimos, nem maiúsculas. Portanto, apenas: beto,
com minúscula, ou qualquer outro. Os apelidos são imagens de devires,
metáforas solitárias a partir dos nervos dos devires, algumas de suas
iluminações, ejaculações da alegria. Um apelido: um gozo, um regozijo, uma
fruição. Os apelidos: criações de devires, fluxos que se iniciam. Os
apelidos: quando, de alguma maneira, a solidão ainda consegue ser
compartilhada, quando a solidão ainda consegue ganhar convivências.
Apelidos, apelidos. Quando se soletra um apelido, abre-se sempre em uma
gargalhada, ou o apelido já deriva de uma risada ruidosa e prolongada. Um
apelido – uma descompressão. Um apelido – um destensivo. Não, não conheço
seu nome próprio, apenas seus apelidos. O nome próprio: poético: apelido:
apelidos: apelidos de apelidos. Apelidos. Penso que ele não tenha nome
próprio, mas que apelidos impróprios nos façam lembrar dele, nos façam
acreditar que há um ele, apelidos que o indeterminam. Um de seus apelidos:
tal e tal, eu sou tal e tal, ele falou, mais um de seus apelidos, traçado
pela escrita dos vários apelidos. Apelidos dos quais ele precisa para se
diferenciar, de todos e dele mesmo, apelidos que ele precisa para se
diferenciar até mesmo de ninguém, logo ele, o indiferenciado, o qualquer,
o ninguém. Nas capas dos livros, nos livros de outros escritores, seus
apelidos: assinaturas das intensidades de vida, vidas que se querem
fenômenos de vida: apelidos, apelidos, apelidos de vida. Um dos apelidos
de vida: nietzsche. E outros. Apelidos, apelidos, apelidos de vida. *
ALBERTO PUCHEU nasceu no Rio de Janeiro, em 1966. É escritor e professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor dos livros Na cidade aberta, Escritos da freqüentação, A Fronteira desguarnecida, Ecometria do silêncio, A vida é assim e Escritos da Indiscernibilidade. Sua página é www.albertopucheu.com.br
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