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márcio-andré
uma tarde em Chernobyl
(ou, como me tornei o primeiro
poeta radioativo do Brasil)
Conforme minha Poética das
casas se desdobrava em ensaios para a revista Confraria e a questão da
cidade tomava cada vez mais espaço na reflexão sobre a celestialidade das
habitações humanas, desenvolvia-se em mim o desejo de visitar Pripyat, a
cidade onde, em 1986, ocorreu o acidente nuclear de Chernobyl.
Profundamente interessado pela emanação quase mística da experiência com a
urbe, fascinava-me, antes de tudo, o fato desta ser uma cidade fantasma,
onde é proibido morar devido aos altos índices de radiação. E não se
tratava de uma cidade qualquer, ordinária, perdida no mapa, mas de uma
cidade modelo, que chegou a ter quarenta mil habitantes, considerada pelos
então entusiastas do bloco comunista a cidade do futuro. Não só Pripyat
permanece vazia, mas uma área de 30 km à volta dela, evacuada na época do
acidente, a chamada Zona de Exclusão. Esta inclui centenas de vilarejos
mortos e mesmo um trecho da Bielorússia, ao norte da Ucrânia.
Uma oportunidade providencial revelou-se quando, ao planejar uma leitura
de poesia em Londres, soube através de Marcin Piersiak, amigo polonês que
iria hospedar-me em sua casa, de um sujeito que já havia estado lá. Com
apenas uma troca de emails cheguei a Ivan, ucraniano de Kiev que por uns
130 euros organizava uma espécie de excursão guiada pela cidade fantasma,
incluindo a burocracia exigida para entrar na Zona de Exclusão. Já estava
planejado então um “desvio” pela Ucrânia, antes de embarcar em Lisboa, de
volta para o Brasil.
Vindo de Paris, em um cansativo vôo de sete horas, com escala em
Frankfurt, cheguei a Kiev às onze da noite do dia 22 de junho de 2007.
Ivan, o guia, apanhou-me de carro no aeroporto. Havíamos combinado um
extra, caso ele pudesse hospedar-me em sua casa. O seu inglês era tão
horrendo quanto o meu e dificilmente poderíamos recorrer ao ucraniano para
desambigüizar qualquer coisa – era uma das línguas mais estranhas que já
ouvi mais de uma pessoa falando. Como não havia muito tempo para ele me
mostrar a cidade, paramos para uma bebida rápida no bar, onde pude ver um
pouco da juventude ucraniana, e logo fomos para o seu apartamento em um
bairro afastado.
Ivan tinha 26 anos e morava com os pais do outro lado do rio. Estes não
sabiam de suas viagens e ele pediu para que não comentasse (como se fosse
possível ao menos dar-lhes boa noite). Já era a quarta vez que ele guiava
pessoas pela Zona de Exclusão. Esperava até juntar um grupo de três ou
quatro pessoas e o levava em seu carro. Muitos amigos estavam fazendo o
mesmo. Pripyat havia se tornado o maior ponto turístico da Ucrânia e era
possível tirar uns 500 euros por viagem. A proximidade entre Kiev e
Chernobyl (metade da distância entre São Paulo e Rio) também ajudava
bastante. O mais difícil era conseguir a autorização para entrar na Zona
de Exclusão. A dele viera de um amigo que estudava física na Universidade
de Kiev. Perguntei se ele não tinha medo de alguma seqüela. Respondeu-me
que o único efeito colateral da radiação foi o aumento no sucesso com as
meninas.
Acordamos às seis da manhã sob um frio de morrer. Enquanto arrumava minhas
coisas, Ivan disse que eu deveria levar somente o que, caso necessário,
pudesse descartar, incluindo roupas e acessórios. Quando saíssemos da Zona
de Exclusão, nós e o carro seríamos submetidos a uma leitura de níveis de
radiação e, caso algum objeto apresentasse um valor muito elevado de
contaminação, este poderia ser confiscado para ser destruído. Disse que
nunca havia acontecido com ele, mas que já tinha ouvido histórias de
guardas que usavam essa desculpa para ficar com os pertences dos
visitantes.
Esperamos a chegada de um outro “turista” chamado Dima, que vinha da
República Tcheca, e saímos. Por conta do problema da possível contaminação
dos objetos, resolvi não levar a minha máquina de fotografia (que na
verdade era emprestada), até porque Dima revelou-se fotógrafo. Lanchamos
em um café no próprio bairro de Ivan e depois apanhamos uma senhora
inglesa chamada Elisa em um Albergue da Juventude, onde, em verdade,
parecia haver somente idosos. O dia surgia nublado, revelando uma cidade,
ainda que monocórdia, relativamente multicolor. O pouco que pude ver de
Kiev através da janela do carro parecia se repetir em blocos sucessivos
com pouquíssimas variações. Ora me lembrava São Paulo, ora os condomínios
da COHAB, ora a Barra da Tijuca (mas com menos vidro). Os prédios duros,
na maioria de arquitetura modernista, pesavam com seus altíssimos andares
em espaço tão vazio horizontalmente. Paramos uma última vez em um
mini-mercado para comprar comida e seguimos de carro para fora de Kiev, em
direção ao norte.
Comecei a pensar na infância que eu teria caso tivesse nascido ali, sob o
regime soviético (e por um instante me senti dentro dos filmes sobre a
cortina de ferro que assistia na década de 80, aquele universo misterioso,
excessivamente cinza, onde só havia espiões, burocratas tristes e comida
em conserva). Essa sensação, a de que poderíamos ter nascido em outro
lugar, é incômoda, traz nostalgias fictícias e psicodramas existenciais
que pressupõem um outro destino para nossos antepassados, antes que o
nosso próprio sequer fosse traçado.
Já havíamos rodado umas duas horas, quando Ivan propôs que parássemos para
lanchar (já que seria bom evitarmos fazê-lo enquanto estivéssemos dentro
da Zona de Exclusão). Enquanto comíamos sanduíches no capô do carro, nosso
guia dava instruções de como agir depois que estivéssemos lá dentro.
Aconselhou-nos a evitar tocar nas coisas e a não sair do asfalto. A
floresta, a água e a terra detinham mais radiação, portanto deveríamos
evitá-las. A rigor, o aconselhável era ficar apenas duas horas dentro de
Pripyat, mas essa recomendação, segundo Ivan, não era assim tão rigorosa,
caso soubéssemos por onde andar e como contabilizar o tempo em relação ao
nível de radiação. É preciso explicar ao leitor que, na Zona de Exclusão,
a radiação não pairava uniforme, variando radicalmente metro a metro. Por
último, entregou um contador geiger a cada um de nós (em Kiev, isso se
vende nas farmácias) e ensinou como usar. O nível médio de radiação na
Europa, dizia ele, é de 9 microroentgens por hora (µR/hr), enquanto em
Kiev, pela proximidade de Chernobyl, era de 20 µR/hr. Ligamos os aparelhos
e, no mesmo instante, o medidor marcou 55 µR/hr. Ivan disse para não nos
alarmarmos, já que a tendência era piorar. O aparelhinho vinha com um
conselho valioso: nunca avançar pelos lugares, sem antes consultá-lo.
A estrada, à medida que nos aproximávamos da Zona Morta, tornava-se ainda
mais vazia, até que chegamos a um ponto onde não se via mais absolutamente
nenhum outro carro, além do nosso. Depois de passarmos pela bizarra
escultura de um ovo gigante, chegamos finalmente à fronteira da Zona de
Exclusão. Paramos em uma guarita com uma cancela dupla bloqueando a
estrada e tivemos que esperar uns dez minutos até o guarda aparecer. No
chão, em letras grandes, havia um СТОП (“stop” em caracteres russos).
Quando um guardinha mirrado apareceu, mal olhou o documento que Ivan
trazia e liberou a passagem. Fez apenas questão de ver se levávamos o
contador geiger.
A partir daquele ponto, pude entender o real sentido da expressão “fim de
mundo”. Atravessar aquela fronteira entre o mundo real e aquela zona do
crepúsculo era entrar em uma região apocalíptica, onde as pessoas tivessem
sido substituídas por sombras. Tudo pelo caminho permanecia abandonado e
quieto – até o tempo parecia quieto. A floresta invadia a estrada e
tornava-se cada vez mais difícil andar em alta velocidade. À beira da
estrada, os vilarejos em ruínas, as choupanas sem teto servindo de viveiro
de espécies vegetais. Dava dó ver casas com portas abertas e quintais
vazios, barcos semi-submersos na água ferruginosa do lago ou enormes
construções e complexos industriais largados ao acaso, espaços em branco
na vida de alguém que passou muito tempo a construí-los. Ainda assim nada
daquilo me parecia tão trágico. Aqueles lugares tinham um aspecto melhor
que o do subúrbio do Rio – a diferença talvez esteja no fato de que já não
há arvores na minha cidade e de que as fábricas desativadas, ao invés de
vazias, sejam favelas viradas para dentro, depósitos da rebarba
populacional. Mas ainda não era ali, falava Ivan. Ali era só o começo.
Faltavam ainda alguns quilômetros até Pripyat, nosso destino.
Mas antes ele queria nos mostrar uma coisa e propôs um desvio pela
estrada. Logo surgiu diante de nós um cemitério de veículos do exército.
Paramos o carro, e a primeira coisa que Ivan fez foi medir o nível de
radiação. O dosímetro marcava 80 µR/hr. Caminhamos por entre a sucata
bélica, confiando cegamente na destreza de nosso guia e na mediunidade de
seu aparelho. Era algo impressionante, e, por mais que eu descreva em
detalhes, nunca poderia passar a dimensão da grandiosidade e melancolia de
centenas de tanques, carros de guerra, ônibus e helicópteros de seis
hélices enfileirados a perder de vista. Veículos usados para evacuar a
cidade e limpar os destroços da usina depois do acidente. Inutilizados
pela radiação, aguardavam ali pela sua decomposição, que talvez levasse
tanto tempo quanto a meia-vida do césio. Da maioria só restava a carcaça,
a lataria desdentada, os painéis de controle obsoletos ou as hélices
curvas e o metal branco com inscrições em russo. Num impulso toquei a
lataria de um dos helicópteros e, ingenuamente, lavei a mão com a água que
levava para beber. Dima me alertou rindo: água não tira radiação.
De volta a nossa rota, avistamos a usina ao longe – seu reator sepultado
nas 300 mil toneladas de aço, betão, chumbo e cimento do “sarcófago” que o
recobre, impedindo que a maior parte da radiação escape e o mundo acabe.
Ivan parou o carro para nos mostrar como era elevado o nível de radiação
no mato ali perto – era um dos pontos mais altos já registrados. À beira
da estrada, o dosímetro indicava 500 µR/hr e, três passos mato adentro,
vimos o marcador pular para 4.000 µR/hr e então, um passo depois, começar
a apitar por estar fora de escala. No mesmo instante entramos no carro e
partimos. Aquele trecho de terra, segundo nosso guia, apelidado na época
do acidente de Floresta Mágica (isso porque o mato efetivamente brilhava
durante a noite), estava bem diante da usina. Por isso os altos índices –
tal nível de radiação durante meia hora era o suficiente para matar em
dois dias. Parecia haver uma alegria mórbida em todos quando ele falava
esse tipo de coisa – mas aquilo de fato não me interessava para além da
mera curiosidade. Nem aquilo, nem as histórias de mutação, nem o orfanato
das crianças com seqüelas que se divulga na internet.
Qual não foi minha surpresa, entretanto, ao encontrar outras pessoas no
portão da Central Nuclear. Um outro grupo de jovens “turistas” que se
divertia filmando a elevação do marcador do dosímetro, conforme se
aproximava dos portões do reator. Ivan falou que aquilo não era raro e que
Chernobyl era muito visitada na primavera – havia até agências
especializadas em “turismo ecológico”. O lugar era principalmente
freqüentado por técnicos, ambientalistas, jovens bêbados e artistas (eu,
entretanto, acho que fui o primeiro poeta brasileiro a estar lá). Falou
também que, além dos turistas, havia alguns velhos morando nos vilarejos
em volta, pelo menos uns trinta, e que a paróquia local tinha missa
regular. Contou-nos que pelo menos mil e duzentas pessoas trabalhavam na
Zona de Exclusão (entre vigias e operários que precisavam manter o
maquinário da usina e de outras estações funcionando) e que a usina
trabalhou até 2000, gerando boa parte da energia elétrica do país (apesar
da explosão ter destruído o reator 4, os outros três ainda tinham
capacidade para funcionar até 2011, caso necessário). Pela primeira vez
estava perplexo com os dados apresentados por nosso guia e aquilo aguçou
ainda mais a minha curiosidade sobre aquele lugar, cuja exclusão atraía. É
fascinante a idéia de que se possa viver nos estados mais precários.
Como não tínhamos autorização para entrar, fomos conhecer o campo por trás
da usina. Os níveis de radiação por ali variavam entre 130 e 500 µR/hr, o
que limitava bastante nosso tempo de permanência. Dima e eu deixamos a
leitura de dosímetro para Ivan e Elisa e fomos vasculhar o campo que se
estendia, com seus geradores, transformadores, coolers, tambores,
carretéis e torres de alta tensão, entre canais de água que desembocavam
num enorme lago artificial. Todas aquelas estruturas, distribuídas em um
terreno coberto de brita, dava-nos a sensação feérica de andar sobre uma
placa de circuito. À beira do lago, nos voltamos para aquela paisagem
elétrica onde a usina era só um detalhe em meio as seqüências
intermináveis de torres e subestações. O céu tomado por uma malha de fios
de alta tensão até onde pudéssemos enxergar e o silêncio de deus vibrando
em baixa voltagem. Ao sul, um reator cuja construção havia sido
interrompida pelo acidente em 86, os guindastes quietos como cavalos
sonhando. Seguíamos já por um estreito caminho, espécie de banco de terra,
que avançava sobre o lago, quando ouvimos Ivan e Elisa gritando ao longe.
Voltamos contrariados e Ivan reclamou do nosso afastamento, mais
preocupado com ele do que conosco. Andar sem conferir o contador, disse, é
o mesmo que fazer roleta russa. Ainda que conscientes do risco, aquele
jardim de cimento e arame entrelaçado, criado tão meticulosamente com
blocos de montar, era de um lúdico embriagante e nosso desejo era ficar
horas, desvendando seus mistérios.
Entramos no carro e seguimos para Pripyat. A cidade, construída para
abrigar os trabalhadores da Central Nuclear, ficava a apenas três
quilômetros da usina e era possível enxergá-la de lá. Os edifícios se
erguiam altos atrás do bosque, como os de uma grande capital, e de longe
esta poderia muito bem se passar por uma cidade a pleno vapor, com o
fôlego e a vida das metrópoles. Na entrada, sob o nome da cidade ПРИПЯТБ
esculpido no concreto em traços construtivistas, sua data de nascença:
1970. Dali, era só uma reta até entrar no centro da cidade e, por motivo
obscuro, eu me encontrava tenso. A sensação era a de que eu retornava.
A primeira impressão que tive de Pripyat é que lembrava Brasília ou a
Cidade Universitária da Ilha do Fundão, no Rio – o ranço modernista dos
lugares planejados para serem “máquinas de viver”. Os condomínios
soviéticos, alguns elegantes, outros sisudos, geometricamente organizados,
dividindo espaço com uma roda gigante solitária. Fazia sol, apesar das
nuvens à espreita, o que dava à cidade um ar estranhamente agradável. Ivan
disse que Pripyat era um lugar florido antes do acidente. Imagino que
morar lá devesse ser como habitar um parque residencial com pólos
recreativos, uma comunidade utópica de pessoas felizes.
Mas de perto Pripyat era uma cidade encaixada precisamente nela mesma.
Largada às pressas, depredada, as janelas escuras, a radiação colada nas
coisas como um fantasma. Pripyat era ainda mais triste e chocante que
aquela usina assustadora. Uma cidade com tantos prédios monumentais, tão
quieta e vazia. Os postes vergados pelo vento, apontando para ruas sem
nome, e a morte pairando em forma de césio 137, iodo 131 e estrôncio 90 –
só o nome das substâncias já causava medo.
Nossa primeira parada foi a praça central, onde ficava o pólo de compras,
o Palácio da Cultura, o hotel Polissya e, um pouco mais afastado, o
Gorispolkom, repartição do governo soviético. Ali se ouvia o eco do lugar
mais movimentado da cidade, das mulheres com seus afazeres, dos
adolescentes começando a se apaixonar pelo traçado das ruas. Como entrar
nos prédios era mais arriscado e perigoso, resolvemos deixar para depois.
Preferimos conhecer o cinema Prometeu, no final da rua à direita – a
construção mais exótica da cidade, talvez porque fosse o único prédio
forçosamente não modernista. Depois contornamos o quarteirão e conhecemos
o parque de diversões. A roda-gigante monumental, erguendo-se acima dos
prédios, enferrujada, as cabines balançando suavemente. A auto-pista de
carrinhos emborcados. O carrossel de cavalos quebrados e ocos. Tudo
altamente radioativo e cruel. Nosso guia seguia na frente com o dosímetro
em punho. Às vezes parava e fazia uma curva ou dava a volta por outro
caminho. Às vezes pedia para acelerar o passo ou, simplesmente,
aconselhava voltar. Pelo chão, objetos abandonados (que iam desde
brinquedos a discos de vinil), presos no asfalto, fossilizados como se já
fossem também Pripyat. À volta, nas fachadas ou no interior das lojas,
propaganda comunista, fotos de Stalin e líderes do partidão, brasões,
bustos, bandeiras vermelhas, a foice e o martelo.
Seguimos por um bosque entre os prédios – as árvores ali já tomavam quase
tudo, como se a cidade já não fosse cidade, mas floresta (e, ainda assim,
cidade). Ivan já havia desistido de trabalhar com o dosímetro,
preocupando-se agora em caminhar rápido. Resolvemos entrar em um edifício
residencial e nosso guia logo apontou o seu contador em direção a porta. A
entrada do prédio estava cheia de entulho e precisamos pular alguns móveis
quebrados até chegar na escada. No meio do lixo, entre fendas no cimento,
cresciam arbustos e plantas e a poeira era tanta e o cheiro de mofo tão
forte, que a radiação já não era a maior das preocupações. Os apartamentos
tinham plantas departamentais – um corredor que, da porta, levava
diretamente aos cômodos (ao contrário daqui, onde é preciso passar pela
sala para acessar a cozinha e os quartos). As paredes e o teto cobertos de
infiltrações e sujeira, dezenas de fotos e documentos espalhados pelo
chão. Pianos, mesas de jantar, sofás, camas, tudo o que não havia sido
saqueado restava depredado. Do terraço, pudemos avistar a cidade-floresta
estender-se frondosa, a usina ao fundo. Era primavera e as árvores floriam
entre os edifícios com seus genes defeituosos. O sol que fazia quando
chegamos começava a dar lugar a nuvens pesadas.
Visitamos outros prédios e, num dos quartos do Hotel Polissya,
encontramos, deitado sobre uma cama, o fóssil ressecado de um cão de duas
cabeças. A janela do cômodo estava coberta com tapumes, o que diluía a luz
no ambiente. Isso, além de aumentar o ar fantasmagórico de nossa visão,
dificultava perceber o que de fato seria aquilo. Estávamos bastante tensos
e não tínhamos coragem de chegar muito perto, até Ivan nos revelar que se
tratava de uma intervenção. Uma das inúmeras esculturas deixadas pelos
artistas que freqüentavam a cidade.
Visitamos um armazém, lojas comunitárias e um café que dava uma bela visão
para o lago. Na arquitetura, muito vidro e espaço vazio, o que devia dar
aos moradores da cidade uma ótima sensação de liberdade. Depois de
subirmos até o terraço do Palácio da Cultura, eles decidiram visitar o
outro lado da cidade. Eu avisei que não iria com eles, que desejava ficar
sozinho ali, para meditar e realizar minha conferência literária. Eles se
entreolharam, como se pressentissem em mim algo de loucura.
Esperei que se afastassem, fechei os olhos, respirei fundo e iniciei ali,
na frente do Palácio da Cultura, a 1a Conferência Poético-radioativa de
Pripyat. A abertura solene contou com a execução imaginária do hino da
Ucrânia (questão de respeitar o clássico conceito das soberanias
nacionais) e a leitura de uma carta, onde propunha e declarava aberta a
Conferência. Obviamente, o fato de não haver ninguém além de mim, e nem de
contar com o respaldo de qualquer instituição oficial, não eram motivos
para desconsiderar o evento, ainda que, para efeitos técnicos, eu pudesse
admiti-la como performance. O recital teve início com a leitura deste
poema de Paul Dehn:
O nuclear wind, when wilt
thou blow
That the small rain
down
can rain?
Christ, that my love were
in
may arms
And I had my arms
again.
Depois li este, do mesmo autor:
Ring-a-ring o’neutrons.
A pocket full of
positrons,
A fisson! A fission!
We all fall down.
Estes poemas estão em uma compilação de John
Murray lançada no Reino Unido e foram escritos na década de 60, dez anos
antes da fundação da cidade. Logo depois fiz uma série de considerações
sobre a questão da exclusão urbana e da relação entre as casas e o céu,
entre as cidades e os sonhos – teoria que denuncia, entre outras coisas, a
assepsia das cidades proposta pelo projeto global e na qual Le Corbusier
representa uma arquitetura afastada das estrelas, tentativa grosseira de
regrar o firmamento (isso explicaria em parte, o destino de Pripyat e sua
vontade de tornar-se una com os citadinos, através da radiação).
Encerrei a Conferência com este meu poema,
chamado Música Cuântica:
sonhos-faróis
cristalinos como dois leões de louça
azul [
de miosótis
a plantação de arroz
e no horizonte a romaria elétrica dos
gigantes de alta tensão
seus corpos extraterrestres de arame
entre
cordames de galáxias —
as coisas inanimadas têm mais chance de
despertar
no silêncio das tempestades
terratempo
terratempo
o olho é o invólucro do ver
na
estrela atrofiada
o negro — impronunciável ausência
chamada buraco
[
alémterra
— no ventre da fotosfera
]
em 1919 dirigíveis de louça e fuligem vieram
fotografar Sobral
Einstein e Dumont se encontraram pela última
vez
Por último, abandonei alguns livros no chão da praça. Entre eles, Cidades
Invisíveis, do Calvino, A Poética do espaço, de Bachelard, Avalovara, de
Osman Lins, A Cidade antiga, de Fustel de Coulanges, Escrita INKZ, do
Boaventura e o meu Intradoxos (além dos de outros contemporâneos meus),
juntamente com uma carta em português a um futuro visitante lusófono. A
conferência durou cerca de quinze minutos, ao fim dos quais, registrei a
“performance” com a câmera digital que Dima emprestou-me (a foto foi
posteriormente publicada na edição de 17 de novembro do Jornal do Brasil).
Aguardei ainda cinco minutos sentado ali, na escadaria da praça, pela
volta dos meus companheiros. Impaciente, fui em direção ao Gorispolkom –
havia sido tomado pelo medo súbito de não reencontrá-los e ficar preso
naquele deserto radioativo, abandonado junto com os livros. Mas foi só
virar a esquina, que os avistei vindo em minha direção. Riam de alguma
coisa que não consegui entender. Tinha algo a ver com uma manada de
cavalos correndo livre.
Quando nos preparávamos para sair da cidade, todos ficaram perplexos com o
que parecia ser o canto de uma baleia ecoando ao longe. Naquele instante,
tivemos a certeza de que pensar a existência em Pripyat é pensar uma outra
possibilidade de existência. Não ficaria surpreso se encontrássemos essa
baleia encalhada no meio do estádio olímpico ou emparedada, fundida com as
ferragens do reator.
Segundo uma amiga, eu fui a Chernobyl curar o câncer que havia adquirido
lendo Heidegger (talvez tenha sido Deleuze que diagnosticou que ler
Heidegger dá câncer). Mas nenhum câncer me levaria até lá, como também
nunca havia me comovido a tragédia de 1986 e os milhares de mortos e
desterrados. O que me levou até lá foi a cidade impraticável, isto sim,
uma incoerência da realidade. Pripyat é a realização, em nosso mundo
prático, das abstrações quânticas. As formas possíveis e poéticas
propostas pelo comportamento das partículas, as de uma realidade absurda e
não-linear, seus entes coexistíveis simultâneos em diferentes estados,
materializados naquele mundo com defeito chamado Chernobyl, sua beleza
terrível, suas criaturas invisíveis geradas do pesadelo quântico. Não foi
a física que revelou Pripyat ao mundo, mas o mundo, enquanto possibilidade
de mundos, é que o reivindicou da ciência. Pripyat é o legado de todas as
crianças bizarras nascidas em sua rua. Se elas habitassem a cidade, esta
estaria hoje repleta de homens de urânio enriquecido, levando seus tumores
sob o braço e os cérebros pendurados em membranas do lado de fora do
crânio – ali, onde até o tempo foi alterado geneticamente. Pripyat é a
cidade real mais inventada de todas.
E ela já era um bloco de prédios ocos à distância, quando o sol reapareceu
pintando sua face de laranja. De tão cansado, cochilei no banco de trás do
carro, ainda na Zona de Exclusão, mas acordei num sobressalto – temia
sonhar e ter meus sonhos contaminados com césio. Agora, restava apenas o
caminho de volta, sem paradas, à exceção do ponto de checagem, onde fariam
a leitura do nível de radiação do carro e, caso necessário, lhe dariam um
banho químico. Ainda naquela noite, eu pegaria o avião para Lisboa, para,
no dia seguinte, embarcar de volta ao Brasil. Ninguém conversou durante a
viagem de retorno e eu, olhando a paisagem, experimentava o estranho
sentimento de que havia esse tempo todo enganado deus e vivido num outro
corpo – eu já não retornava, nem ia embora. Nada era casa, pois nada era
centro – mas sempre margem, da qual estávamos sempre partindo. Foi em meio
a esse sentimento que vi, à distância, uma manada de cavalos atravessar a
estrada.
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MÁRCIO-ANDRÉ é
poeta, ensaísta e editor, autor dos livros Movimento Perpétuo e Intradoxos
e coordenador do projeto Arranjos para Assobio, de texturas poéticas e realidades experimentais (http://arranjos.confrariadovento.com).
Trabalha na tradução de poesia de Serge Pey,
Ghérasim Luca e Bernard Heidsieck. Sua página é
www.marcioandre.com
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