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márcio-andré


uma tarde em Chernobyl

(ou, como me tornei o primeiro poeta radioativo do Brasil)

 

 

 

Conforme minha Poética das casas se desdobrava em ensaios para a revista Confraria e a questão da cidade tomava cada vez mais espaço na reflexão sobre a celestialidade das habitações humanas, desenvolvia-se em mim o desejo de visitar Pripyat, a cidade onde, em 1986, ocorreu o acidente nuclear de Chernobyl. Profundamente interessado pela emanação quase mística da experiência com a urbe, fascinava-me, antes de tudo, o fato desta ser uma cidade fantasma, onde é proibido morar devido aos altos índices de radiação. E não se tratava de uma cidade qualquer, ordinária, perdida no mapa, mas de uma cidade modelo, que chegou a ter quarenta mil habitantes, considerada pelos então entusiastas do bloco comunista a cidade do futuro. Não só Pripyat permanece vazia, mas uma área de 30 km à volta dela, evacuada na época do acidente, a chamada Zona de Exclusão. Esta inclui centenas de vilarejos mortos e mesmo um trecho da Bielorússia, ao norte da Ucrânia.

Uma oportunidade providencial revelou-se quando, ao planejar uma leitura de poesia em Londres, soube através de Marcin Piersiak, amigo polonês que iria hospedar-me em sua casa, de um sujeito que já havia estado lá. Com apenas uma troca de emails cheguei a Ivan, ucraniano de Kiev que por uns 130 euros organizava uma espécie de excursão guiada pela cidade fantasma, incluindo a burocracia exigida para entrar na Zona de Exclusão. Já estava planejado então um “desvio” pela Ucrânia, antes de embarcar em Lisboa, de volta para o Brasil.

Vindo de Paris, em um cansativo vôo de sete horas, com escala em Frankfurt, cheguei a Kiev às onze da noite do dia 22 de junho de 2007. Ivan, o guia, apanhou-me de carro no aeroporto. Havíamos combinado um extra, caso ele pudesse hospedar-me em sua casa. O seu inglês era tão horrendo quanto o meu e dificilmente poderíamos recorrer ao ucraniano para desambigüizar qualquer coisa – era uma das línguas mais estranhas que já ouvi mais de uma pessoa falando. Como não havia muito tempo para ele me mostrar a cidade, paramos para uma bebida rápida no bar, onde pude ver um pouco da juventude ucraniana, e logo fomos para o seu apartamento em um bairro afastado.

Ivan tinha 26 anos e morava com os pais do outro lado do rio. Estes não sabiam de suas viagens e ele pediu para que não comentasse (como se fosse possível ao menos dar-lhes boa noite). Já era a quarta vez que ele guiava pessoas pela Zona de Exclusão. Esperava até juntar um grupo de três ou quatro pessoas e o levava em seu carro. Muitos amigos estavam fazendo o mesmo. Pripyat havia se tornado o maior ponto turístico da Ucrânia e era possível tirar uns 500 euros por viagem. A proximidade entre Kiev e Chernobyl (metade da distância entre São Paulo e Rio) também ajudava bastante. O mais difícil era conseguir a autorização para entrar na Zona de Exclusão. A dele viera de um amigo que estudava física na Universidade de Kiev. Perguntei se ele não tinha medo de alguma seqüela. Respondeu-me que o único efeito colateral da radiação foi o aumento no sucesso com as meninas.

Acordamos às seis da manhã sob um frio de morrer. Enquanto arrumava minhas coisas, Ivan disse que eu deveria levar somente o que, caso necessário, pudesse descartar, incluindo roupas e acessórios. Quando saíssemos da Zona de Exclusão, nós e o carro seríamos submetidos a uma leitura de níveis de radiação e, caso algum objeto apresentasse um valor muito elevado de contaminação, este poderia ser confiscado para ser destruído. Disse que nunca havia acontecido com ele, mas que já tinha ouvido histórias de guardas que usavam essa desculpa para ficar com os pertences dos visitantes.

Esperamos a chegada de um outro “turista” chamado Dima, que vinha da República Tcheca, e saímos. Por conta do problema da possível contaminação dos objetos, resolvi não levar a minha máquina de fotografia (que na verdade era emprestada), até porque Dima revelou-se fotógrafo. Lanchamos em um café no próprio bairro de Ivan e depois apanhamos uma senhora inglesa chamada Elisa em um Albergue da Juventude, onde, em verdade, parecia haver somente idosos. O dia surgia nublado, revelando uma cidade, ainda que monocórdia, relativamente multicolor. O pouco que pude ver de Kiev através da janela do carro parecia se repetir em blocos sucessivos com pouquíssimas variações. Ora me lembrava São Paulo, ora os condomínios da COHAB, ora a Barra da Tijuca (mas com menos vidro). Os prédios duros, na maioria de arquitetura modernista, pesavam com seus altíssimos andares em espaço tão vazio horizontalmente. Paramos uma última vez em um mini-mercado para comprar comida e seguimos de carro para fora de Kiev, em direção ao norte.

Comecei a pensar na infância que eu teria caso tivesse nascido ali, sob o regime soviético (e por um instante me senti dentro dos filmes sobre a cortina de ferro que assistia na década de 80, aquele universo misterioso, excessivamente cinza, onde só havia espiões, burocratas tristes e comida em conserva). Essa sensação, a de que poderíamos ter nascido em outro lugar, é incômoda, traz nostalgias fictícias e psicodramas existenciais que pressupõem um outro destino para nossos antepassados, antes que o nosso próprio sequer fosse traçado.

Já havíamos rodado umas duas horas, quando Ivan propôs que parássemos para lanchar (já que seria bom evitarmos fazê-lo enquanto estivéssemos dentro da Zona de Exclusão). Enquanto comíamos sanduíches no capô do carro, nosso guia dava instruções de como agir depois que estivéssemos lá dentro. Aconselhou-nos a evitar tocar nas coisas e a não sair do asfalto. A floresta, a água e a terra detinham mais radiação, portanto deveríamos evitá-las. A rigor, o aconselhável era ficar apenas duas horas dentro de Pripyat, mas essa recomendação, segundo Ivan, não era assim tão rigorosa, caso soubéssemos por onde andar e como contabilizar o tempo em relação ao nível de radiação. É preciso explicar ao leitor que, na Zona de Exclusão, a radiação não pairava uniforme, variando radicalmente metro a metro. Por último, entregou um contador geiger a cada um de nós (em Kiev, isso se vende nas farmácias) e ensinou como usar. O nível médio de radiação na Europa, dizia ele, é de 9 microroentgens por hora (µR/hr), enquanto em Kiev, pela proximidade de Chernobyl, era de 20 µR/hr. Ligamos os aparelhos e, no mesmo instante, o medidor marcou 55 µR/hr. Ivan disse para não nos alarmarmos, já que a tendência era piorar. O aparelhinho vinha com um conselho valioso: nunca avançar pelos lugares, sem antes consultá-lo.

A estrada, à medida que nos aproximávamos da Zona Morta, tornava-se ainda mais vazia, até que chegamos a um ponto onde não se via mais absolutamente nenhum outro carro, além do nosso. Depois de passarmos pela bizarra escultura de um ovo gigante, chegamos finalmente à fronteira da Zona de Exclusão. Paramos em uma guarita com uma cancela dupla bloqueando a estrada e tivemos que esperar uns dez minutos até o guarda aparecer. No chão, em letras grandes, havia um СТОП (“stop” em caracteres russos). Quando um guardinha mirrado apareceu, mal olhou o documento que Ivan trazia e liberou a passagem. Fez apenas questão de ver se levávamos o contador geiger.

A partir daquele ponto, pude entender o real sentido da expressão “fim de mundo”. Atravessar aquela fronteira entre o mundo real e aquela zona do crepúsculo era entrar em uma região apocalíptica, onde as pessoas tivessem sido substituídas por sombras. Tudo pelo caminho permanecia abandonado e quieto – até o tempo parecia quieto. A floresta invadia a estrada e tornava-se cada vez mais difícil andar em alta velocidade. À beira da estrada, os vilarejos em ruínas, as choupanas sem teto servindo de viveiro de espécies vegetais. Dava dó ver casas com portas abertas e quintais vazios, barcos semi-submersos na água ferruginosa do lago ou enormes construções e complexos industriais largados ao acaso, espaços em branco na vida de alguém que passou muito tempo a construí-los. Ainda assim nada daquilo me parecia tão trágico. Aqueles lugares tinham um aspecto melhor que o do subúrbio do Rio – a diferença talvez esteja no fato de que já não há arvores na minha cidade e de que as fábricas desativadas, ao invés de vazias, sejam favelas viradas para dentro, depósitos da rebarba populacional. Mas ainda não era ali, falava Ivan. Ali era só o começo. Faltavam ainda alguns quilômetros até Pripyat, nosso destino.

Mas antes ele queria nos mostrar uma coisa e propôs um desvio pela estrada. Logo surgiu diante de nós um cemitério de veículos do exército. Paramos o carro, e a primeira coisa que Ivan fez foi medir o nível de radiação. O dosímetro marcava 80 µR/hr. Caminhamos por entre a sucata bélica, confiando cegamente na destreza de nosso guia e na mediunidade de seu aparelho. Era algo impressionante, e, por mais que eu descreva em detalhes, nunca poderia passar a dimensão da grandiosidade e melancolia de centenas de tanques, carros de guerra, ônibus e helicópteros de seis hélices enfileirados a perder de vista. Veículos usados para evacuar a cidade e limpar os destroços da usina depois do acidente. Inutilizados pela radiação, aguardavam ali pela sua decomposição, que talvez levasse tanto tempo quanto a meia-vida do césio. Da maioria só restava a carcaça, a lataria desdentada, os painéis de controle obsoletos ou as hélices curvas e o metal branco com inscrições em russo. Num impulso toquei a lataria de um dos helicópteros e, ingenuamente, lavei a mão com a água que levava para beber. Dima me alertou rindo: água não tira radiação.

De volta a nossa rota, avistamos a usina ao longe – seu reator sepultado nas 300 mil toneladas de aço, betão, chumbo e cimento do “sarcófago” que o recobre, impedindo que a maior parte da radiação escape e o mundo acabe. Ivan parou o carro para nos mostrar como era elevado o nível de radiação no mato ali perto – era um dos pontos mais altos já registrados. À beira da estrada, o dosímetro indicava 500 µR/hr e, três passos mato adentro, vimos o marcador pular para 4.000 µR/hr e então, um passo depois, começar a apitar por estar fora de escala. No mesmo instante entramos no carro e partimos. Aquele trecho de terra, segundo nosso guia, apelidado na época do acidente de Floresta Mágica (isso porque o mato efetivamente brilhava durante a noite), estava bem diante da usina. Por isso os altos índices – tal nível de radiação durante meia hora era o suficiente para matar em dois dias. Parecia haver uma alegria mórbida em todos quando ele falava esse tipo de coisa – mas aquilo de fato não me interessava para além da mera curiosidade. Nem aquilo, nem as histórias de mutação, nem o orfanato das crianças com seqüelas que se divulga na internet.

Qual não foi minha surpresa, entretanto, ao encontrar outras pessoas no portão da Central Nuclear. Um outro grupo de jovens “turistas” que se divertia filmando a elevação do marcador do dosímetro, conforme se aproximava dos portões do reator. Ivan falou que aquilo não era raro e que Chernobyl era muito visitada na primavera – havia até agências especializadas em “turismo ecológico”. O lugar era principalmente freqüentado por técnicos, ambientalistas, jovens bêbados e artistas (eu, entretanto, acho que fui o primeiro poeta brasileiro a estar lá). Falou também que, além dos turistas, havia alguns velhos morando nos vilarejos em volta, pelo menos uns trinta, e que a paróquia local tinha missa regular. Contou-nos que pelo menos mil e duzentas pessoas trabalhavam na Zona de Exclusão (entre vigias e operários que precisavam manter o maquinário da usina e de outras estações funcionando) e que a usina trabalhou até 2000, gerando boa parte da energia elétrica do país (apesar da explosão ter destruído o reator 4, os outros três ainda tinham capacidade para funcionar até 2011, caso necessário). Pela primeira vez estava perplexo com os dados apresentados por nosso guia e aquilo aguçou ainda mais a minha curiosidade sobre aquele lugar, cuja exclusão atraía. É fascinante a idéia de que se possa viver nos estados mais precários.

Como não tínhamos autorização para entrar, fomos conhecer o campo por trás da usina. Os níveis de radiação por ali variavam entre 130 e 500 µR/hr, o que limitava bastante nosso tempo de permanência. Dima e eu deixamos a leitura de dosímetro para Ivan e Elisa e fomos vasculhar o campo que se estendia, com seus geradores, transformadores, coolers, tambores, carretéis e torres de alta tensão, entre canais de água que desembocavam num enorme lago artificial. Todas aquelas estruturas, distribuídas em um terreno coberto de brita, dava-nos a sensação feérica de andar sobre uma placa de circuito. À beira do lago, nos voltamos para aquela paisagem elétrica onde a usina era só um detalhe em meio as seqüências intermináveis de torres e subestações. O céu tomado por uma malha de fios de alta tensão até onde pudéssemos enxergar e o silêncio de deus vibrando em baixa voltagem. Ao sul, um reator cuja construção havia sido interrompida pelo acidente em 86, os guindastes quietos como cavalos sonhando. Seguíamos já por um estreito caminho, espécie de banco de terra, que avançava sobre o lago, quando ouvimos Ivan e Elisa gritando ao longe. Voltamos contrariados e Ivan reclamou do nosso afastamento, mais preocupado com ele do que conosco. Andar sem conferir o contador, disse, é o mesmo que fazer roleta russa. Ainda que conscientes do risco, aquele jardim de cimento e arame entrelaçado, criado tão meticulosamente com blocos de montar, era de um lúdico embriagante e nosso desejo era ficar horas, desvendando seus mistérios.

Entramos no carro e seguimos para Pripyat. A cidade, construída para abrigar os trabalhadores da Central Nuclear, ficava a apenas três quilômetros da usina e era possível enxergá-la de lá. Os edifícios se erguiam altos atrás do bosque, como os de uma grande capital, e de longe esta poderia muito bem se passar por uma cidade a pleno vapor, com o fôlego e a vida das metrópoles. Na entrada, sob o nome da cidade ПРИПЯТБ esculpido no concreto em traços construtivistas, sua data de nascença: 1970. Dali, era só uma reta até entrar no centro da cidade e, por motivo obscuro, eu me encontrava tenso. A sensação era a de que eu retornava.

A primeira impressão que tive de Pripyat é que lembrava Brasília ou a Cidade Universitária da Ilha do Fundão, no Rio – o ranço modernista dos lugares planejados para serem “máquinas de viver”. Os condomínios soviéticos, alguns elegantes, outros sisudos, geometricamente organizados, dividindo espaço com uma roda gigante solitária. Fazia sol, apesar das nuvens à espreita, o que dava à cidade um ar estranhamente agradável. Ivan disse que Pripyat era um lugar florido antes do acidente. Imagino que morar lá devesse ser como habitar um parque residencial com pólos recreativos, uma comunidade utópica de pessoas felizes.

Mas de perto Pripyat era uma cidade encaixada precisamente nela mesma. Largada às pressas, depredada, as janelas escuras, a radiação colada nas coisas como um fantasma. Pripyat era ainda mais triste e chocante que aquela usina assustadora. Uma cidade com tantos prédios monumentais, tão quieta e vazia. Os postes vergados pelo vento, apontando para ruas sem nome, e a morte pairando em forma de césio 137, iodo 131 e estrôncio 90 – só o nome das substâncias já causava medo.

Nossa primeira parada foi a praça central, onde ficava o pólo de compras, o Palácio da Cultura, o hotel Polissya e, um pouco mais afastado, o Gorispolkom, repartição do governo soviético. Ali se ouvia o eco do lugar mais movimentado da cidade, das mulheres com seus afazeres, dos adolescentes começando a se apaixonar pelo traçado das ruas. Como entrar nos prédios era mais arriscado e perigoso, resolvemos deixar para depois. Preferimos conhecer o cinema Prometeu, no final da rua à direita – a construção mais exótica da cidade, talvez porque fosse o único prédio forçosamente não modernista. Depois contornamos o quarteirão e conhecemos o parque de diversões. A roda-gigante monumental, erguendo-se acima dos prédios, enferrujada, as cabines balançando suavemente. A auto-pista de carrinhos emborcados. O carrossel de cavalos quebrados e ocos. Tudo altamente radioativo e cruel. Nosso guia seguia na frente com o dosímetro em punho. Às vezes parava e fazia uma curva ou dava a volta por outro caminho. Às vezes pedia para acelerar o passo ou, simplesmente, aconselhava voltar. Pelo chão, objetos abandonados (que iam desde brinquedos a discos de vinil), presos no asfalto, fossilizados como se já fossem também Pripyat. À volta, nas fachadas ou no interior das lojas, propaganda comunista, fotos de Stalin e líderes do partidão, brasões, bustos, bandeiras vermelhas, a foice e o martelo.

Seguimos por um bosque entre os prédios – as árvores ali já tomavam quase tudo, como se a cidade já não fosse cidade, mas floresta (e, ainda assim, cidade). Ivan já havia desistido de trabalhar com o dosímetro, preocupando-se agora em caminhar rápido. Resolvemos entrar em um edifício residencial e nosso guia logo apontou o seu contador em direção a porta. A entrada do prédio estava cheia de entulho e precisamos pular alguns móveis quebrados até chegar na escada. No meio do lixo, entre fendas no cimento, cresciam arbustos e plantas e a poeira era tanta e o cheiro de mofo tão forte, que a radiação já não era a maior das preocupações. Os apartamentos tinham plantas departamentais – um corredor que, da porta, levava diretamente aos cômodos (ao contrário daqui, onde é preciso passar pela sala para acessar a cozinha e os quartos). As paredes e o teto cobertos de infiltrações e sujeira, dezenas de fotos e documentos espalhados pelo chão. Pianos, mesas de jantar, sofás, camas, tudo o que não havia sido saqueado restava depredado. Do terraço, pudemos avistar a cidade-floresta estender-se frondosa, a usina ao fundo. Era primavera e as árvores floriam entre os edifícios com seus genes defeituosos. O sol que fazia quando chegamos começava a dar lugar a nuvens pesadas.

Visitamos outros prédios e, num dos quartos do Hotel Polissya, encontramos, deitado sobre uma cama, o fóssil ressecado de um cão de duas cabeças. A janela do cômodo estava coberta com tapumes, o que diluía a luz no ambiente. Isso, além de aumentar o ar fantasmagórico de nossa visão, dificultava perceber o que de fato seria aquilo. Estávamos bastante tensos e não tínhamos coragem de chegar muito perto, até Ivan nos revelar que se tratava de uma intervenção. Uma das inúmeras esculturas deixadas pelos artistas que freqüentavam a cidade.

Visitamos um armazém, lojas comunitárias e um café que dava uma bela visão para o lago. Na arquitetura, muito vidro e espaço vazio, o que devia dar aos moradores da cidade uma ótima sensação de liberdade. Depois de subirmos até o terraço do Palácio da Cultura, eles decidiram visitar o outro lado da cidade. Eu avisei que não iria com eles, que desejava ficar sozinho ali, para meditar e realizar minha conferência literária. Eles se entreolharam, como se pressentissem em mim algo de loucura.

Esperei que se afastassem, fechei os olhos, respirei fundo e iniciei ali, na frente do Palácio da Cultura, a 1a Conferência Poético-radioativa de Pripyat. A abertura solene contou com a execução imaginária do hino da Ucrânia (questão de respeitar o clássico conceito das soberanias nacionais) e a leitura de uma carta, onde propunha e declarava aberta a Conferência. Obviamente, o fato de não haver ninguém além de mim, e nem de contar com o respaldo de qualquer instituição oficial, não eram motivos para desconsiderar o evento, ainda que, para efeitos técnicos, eu pudesse admiti-la como performance. O recital teve início com a leitura deste poema de Paul Dehn:
 

O nuclear wind, when wilt

       thou blow

      That the small rain down

       can rain?

Christ, that my love were in

may arms

       And I had my arms again.

 

Depois li este, do mesmo autor:

 

Ring-a-ring o’neutrons.

A pocket full of positrons,

A fisson! A fission!

We all fall down.

 

Estes poemas estão em uma compilação de John Murray lançada no Reino Unido e foram escritos na década de 60, dez anos antes da fundação da cidade. Logo depois fiz uma série de considerações sobre a questão da exclusão urbana e da relação entre as casas e o céu, entre as cidades e os sonhos – teoria que denuncia, entre outras coisas, a assepsia das cidades proposta pelo projeto global e na qual Le Corbusier representa uma arquitetura afastada das estrelas, tentativa grosseira de regrar o firmamento (isso explicaria em parte, o destino de Pripyat e sua vontade de tornar-se una com os citadinos, através da radiação).

 

Encerrei a Conferência com este meu poema, chamado Música Cuântica:

 

 

sonhos-faróis

cristalinos como dois leões de louça

 

azul      [

            de miosótis

a plantação de arroz

 

e no horizonte a romaria elétrica dos gigantes de alta tensão

seus corpos extraterrestres de arame

            entre

cordames de galáxias —

 

as coisas inanimadas têm mais chance de despertar

            no silêncio das tempestades

 

            terratempo

            terratempo

 

o olho é o invólucro do ver

            na

estrela atrofiada

o negro — impronunciável ausência

            chamada buraco

            [

 

alémterra — no ventre da fotosfera

           

            ]

 

em 1919 dirigíveis de louça e fuligem vieram fotografar Sobral

Einstein e Dumont se encontraram pela última vez

 


Por último, abandonei alguns livros no chão da praça. Entre eles, Cidades Invisíveis, do Calvino, A Poética do espaço, de Bachelard, Avalovara, de Osman Lins, A Cidade antiga, de Fustel de Coulanges, Escrita INKZ, do Boaventura e o meu Intradoxos (além dos de outros contemporâneos meus), juntamente com uma carta em português a um futuro visitante lusófono. A conferência durou cerca de quinze minutos, ao fim dos quais, registrei a “performance” com a câmera digital que Dima emprestou-me (a foto foi posteriormente publicada na edição de 17 de novembro do Jornal do Brasil).

Aguardei ainda cinco minutos sentado ali, na escadaria da praça, pela volta dos meus companheiros. Impaciente, fui em direção ao Gorispolkom – havia sido tomado pelo medo súbito de não reencontrá-los e ficar preso naquele deserto radioativo, abandonado junto com os livros. Mas foi só virar a esquina, que os avistei vindo em minha direção. Riam de alguma coisa que não consegui entender. Tinha algo a ver com uma manada de cavalos correndo livre.

Quando nos preparávamos para sair da cidade, todos ficaram perplexos com o que parecia ser o canto de uma baleia ecoando ao longe. Naquele instante, tivemos a certeza de que pensar a existência em Pripyat é pensar uma outra possibilidade de existência. Não ficaria surpreso se encontrássemos essa baleia encalhada no meio do estádio olímpico ou emparedada, fundida com as ferragens do reator.

Segundo uma amiga, eu fui a Chernobyl curar o câncer que havia adquirido lendo Heidegger (talvez tenha sido Deleuze que diagnosticou que ler Heidegger dá câncer). Mas nenhum câncer me levaria até lá, como também nunca havia me comovido a tragédia de 1986 e os milhares de mortos e desterrados. O que me levou até lá foi a cidade impraticável, isto sim, uma incoerência da realidade. Pripyat é a realização, em nosso mundo prático, das abstrações quânticas. As formas possíveis e poéticas propostas pelo comportamento das partículas, as de uma realidade absurda e não-linear, seus entes coexistíveis simultâneos em diferentes estados, materializados naquele mundo com defeito chamado Chernobyl, sua beleza terrível, suas criaturas invisíveis geradas do pesadelo quântico. Não foi a física que revelou Pripyat ao mundo, mas o mundo, enquanto possibilidade de mundos, é que o reivindicou da ciência. Pripyat é o legado de todas as crianças bizarras nascidas em sua rua. Se elas habitassem a cidade, esta estaria hoje repleta de homens de urânio enriquecido, levando seus tumores sob o braço e os cérebros pendurados em membranas do lado de fora do crânio – ali, onde até o tempo foi alterado geneticamente. Pripyat é a cidade real mais inventada de todas.

E ela já era um bloco de prédios ocos à distância, quando o sol reapareceu pintando sua face de laranja. De tão cansado, cochilei no banco de trás do carro, ainda na Zona de Exclusão, mas acordei num sobressalto – temia sonhar e ter meus sonhos contaminados com césio. Agora, restava apenas o caminho de volta, sem paradas, à exceção do ponto de checagem, onde fariam a leitura do nível de radiação do carro e, caso necessário, lhe dariam um banho químico. Ainda naquela noite, eu pegaria o avião para Lisboa, para, no dia seguinte, embarcar de volta ao Brasil. Ninguém conversou durante a viagem de retorno e eu, olhando a paisagem, experimentava o estranho sentimento de que havia esse tempo todo enganado deus e vivido num outro corpo – eu já não retornava, nem ia embora. Nada era casa, pois nada era centro – mas sempre margem, da qual estávamos sempre partindo. Foi em meio a esse sentimento que vi, à distância, uma manada de cavalos atravessar a estrada.

 

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MÁRCIO-ANDRÉ
é poeta, ensaísta e editor, autor dos livros Movimento Perpétuo e Intradoxos e coordenador do projeto Arranjos para Assobio, de texturas poéticas e realidades experimentais (http://arranjos.confrariadovento.com). Trabalha na tradução de poesia de Serge Pey, Ghérasim Luca e Bernard Heidsieck. Sua página é www.marcioandre.com

 


 

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