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jacob rogozinski


é preciso a verdade

 

 

Et lex tua veritas, et veritas tu.

“E a tua lei é a verdade e tu és a verdade.”

 

Santo Agostinho, Confissões

(citado por Derrida, Circonfession)

 

 

Um nome maldito?

“A verdade, é em seu nome maldito que nos perdemos, somente em seu nome, não pela verdade mesma, se isso houvesse, mas pelo desejo de verdade que nos arrancou as “confissões” mais aterrorizantes, após as quais fomos mais distanciados de nós mesmos do que nunca, sem nos aproximarmos um passo sequer de qualquer verdade que seja” (La Carte postale). Trata-se certamente de uma ficção, da apresentação fictícia da “verdade” em um de seus Envois, desses cartões postais possivelmente apócrifos, endereçados a uma (ou várias) destinatária(s) anônima(s) e atribuídos a um certo “Jacques Derrida”. Mas de qual gênero de ficção tratamos? De uma ficção conceitual, comparável aos diálogos de Platão, que estaria colocando uma tese filosófica sobre a verdade – ou antes um requisitório contra a verdade? Ou então uma espécie de autoficção literária, de um romance epistolar evocando as peripécias de uma ligação amorosa? Ou talvez tudo isso ao mesmo tempo? Os Envois tratam, entre outras coisas, da remessa da carta, do seu caráter ilocalizável, improvável, do “desvio de destinação” em que ela corre sempre o risco de se perder, da impossibilidade de assinalar-lhe com certeza um autor, um destinatário e um sentido. Nem classicamente filosóficos, nem propriamente literários, eles se subtraem a qualquer enquadramento em um gênero particular, e seu caráter de inclassificável deveria nos prevenir contra qualquer julgamento apressado sobre a “verdade” ou a “falsidade” de seus enunciados – e principalmente sobre aqueles que se apóiam na verdade, no desejo e no nome maldito de verdade. Imaginemos de fato que uma ou outra de suas presumidas destinatárias – ou qualquer um de seus leitores – se pergunte sobre a estranha maldição que esse texto profere e decida, muito classicamente, responder em nome da verdade: “tu que maldizes a verdade, que a descreves como uma máquina de tortura, será que dizes a verdade quando a denuncias como uma ilusão que nos cega e que nos distancia de nós mesmos? Se dizes a verdade, então o que afirmas participa também dessa maquinação infernal, e como acreditar em ti? Se não me dizes a verdade, tudo vira ao avesso: “verdade” não é mais um nome maldito, a verdade existe, é preciso a verdade.” O pseudo-destinatário dos Envois lhe responderia com facilidade que ele não responsabiliza aqui a verdade em si, mas somente o nome “verdade” e o desejo ligado a ele, e que reclama deles exatamente o fato de não nos dar acesso à “verdade menor que seja”. Eu nunca escrevi nada contra a verdade, protestará, e aliás é impossível, desde os gregos sabe-se disso. Tens razão, é preciso a verdade, e eu sempre disse: é nossa maldição, quer dizer também nossa sorte...


Que poderíamos responder-lhe? Isto, por exemplo: que essa distinção entre a verdade “ela mesma” e a palavra verdade é talvez insustentável: que ele mesmo nos ensinou a desconfiar de tais demarcações; que a determinação de uma verdade em si, dissociada do nome que a designa e do desejo que a visa – absolutamente fora do contexto e do jogo – poderia bem ser apenas uma ilusão metafísica. Falando de outro modo, a palavra verdade seria a verdade como tal, se houvesse uma; seria a maldita verdade da verdade. “Estou totalmente de acordo”, ele teria possivelmente respondido: a “verdade” que eu invoco nesse contexto é fictícia; é uma verdade em ficção (no sentido em que falei, com Cézanne, da verdade em pintura). Trata-se apenas de uma verdade fingida, como qualquer verdade. Aliás, eu os havia prevenido, reportem-se às páginas seguintes de meus Envois: “Eu escreveria, eu lhes escreveria a mim mesmo as cartas as mais fictícias, as mais improváveis que fossem, eles não saberiam mais com que objetivo eu finjo dizer a verdade fingindo fingir. A perder de vista [...] e eles se perderiam nisso como nos perdemos de vista, num belo dia, todos os dois”. Ei-nos caindo de novo na armadilha, leitores ingênuos demais que somos: enganados por essa confissão fictícia de um fingimento, que se expõe às claras, por esse vertiginoso jogo de espelhos que imita o paradoxo do Mentiroso para melhor o desarmar, na suspensão indecidível do falar a verdade e da ficção. Que pensar desse jogo duplo derridiano, dessa estratégia que consiste ao mesmo tempo em afirmar a verdade, em parecer afirmá-la (isto é, em negá-la ou, ao menos, em colocá-la em suspenso) e em fingir parecer (o que significa afirmá-la, de novo)? Simples provocação narcisística e gratuita? Vejo nisso antes o indício de uma aporia que obriga o pensamento a oscilar constantemente entre a reafirmação e a revogação da verdade. Que significa uma tal oscilação? Há, sim ou não, uma tese (uma a-tese) de Derrida sobre a verdade? E se ele sempre se recusou a se posicionar contra a verdade, essa colocação em cena de uma verdade fictícia, de uma “verdade sem verdade da verdade”, não coloca o risco, afinal das contas, de levar à dissolução de qualquer verdade?


É dessa forma que seus adversários costumam manifestar seu pensamento: como uma variante sutil do velho sofisma que afirma que nada é verdade e que se refuta assim a si mesmo; como uma doutrina “niilista”, uma “impostura intelectual” subsidiada pelo projeto “obscurantista” de acabar com os ideais do Iluminismo, a racionalidade científica e a busca da verdade. Na maior parte das vezes sua virtuosa indignação dispensa-os de uma análise rigorosa de seu trabalho. Regra geral, eles a apreendem apenas de fora, a partir de sua própria posição, das seguras evidências da filosofia analítica, do marxismo e da hermenêutica, e a simples evocação dessas “evidências” que a desconstrução transgrediria lhes serve de refutação. Dessa forma Searle alega que “os autores que se interessam pela descoberta da verdade se interessam pela evidência e seus argumentos, [...] pela adequação explicativa, a verificação, a testabilidade. Mas tudo isso faz parte do dispositivo desse mesmo "logocentrismo” que a desconstrução procura arruinar.” Que possa haver um outro conceito de verdade, que não a reduza à evidência e à adequação representativa, que seja possível separar esta outra verdade sem, por outro lado, anular seu conceito lógico-científico, eis uma idéia que não aflora em nenhum momento. Mas como compreender o que quer que seja da desconstrução derridiana da verdade sem confrontá-la a Heidegger, à demarcação da verdade como adequação e da verdade como alèthéia?


O que acontece então com a verdade? É verdade que existe verdade, que é preciso a verdade? Pergunta que se impõe sempre mais numa época marcada por uma crise da verdade. Deixamos de acreditar nas “grandes discursos” da modernidade, nas ideologias que se faziam passar por Única Verdade, e eis que assistimos ao retorno dos céticos, de todos aqueles que sustentam que verdade não quer dizer nada. Para uns, que invocam a seu favor a filosofia analítica, o significado dessa palavra seria “inefável” ou simplesmente “redundante”: o enunciado, isto é, verdade, seria apenas um efeito de retórica, num “cumprimento” que gratifica nossas asserções, e seu sentido variaria indefinidamente de acordo com os contextos em que é aplicado. Para os outros, que se inspiram em Nietzsche, trata-se de denunciar a vontade de verdade “como prodigiosa maquinaria destinada a excluir”, desmascarando as estratégias de desejo e as redes de poder que a fundamentam e que ela justifica. Com raras exceções – entre as quais aquela de Badiou – é essa perspectiva que a maior parte dos pensadores franceses contemporâneos adota. Aliás, eles reservam a mesma sorte ao ego, e a dissolução niilista da verdade se entende bem como egicida. Em todos os casos, que pertença à filosofia “continental” ou à sua rival anglo-saxônica, tende-se a identificar a verdade como tal, com o nome de “verdade”, com enunciados que a designam ou com o desejo de poder que vem com ela. A essa ofensiva geral, já é hora de resistir. Não chegou o momento, diante da tirania da Opinião e do Espetáculo, de reatar a antiga aliança que a filosofia nascente havia feito com a verdade?


Sobre essa linha de frente, qual é então a opinião de Derrida? Mais ainda que Deleuze e Foucault, ele parece recusar qualquer recurso à verdade, denunciá-la como uma ameaça aterrorizante, cegante e mortal (Éperons), como uma palavra mestra da metafísica, um alvo maior de sua desconstrução. Nada de desconstrução sem desconstruir a verdade: é uma das decisões mais constantemente reafirmadas ao longo de seu trajeto. Que ele se esforce em La double séance de subtrair a mímesis à autoridade de alèthéia; que ele se remeta a ela em Éperons com a “colocação entre aspas” nietzschiana da “verdade”; ou que critique em La carte postale a “busca da verdade” determinando o “falogocentrismo” lacaniano, cada vez seu pensamento se afirma contra a verdade, ou melhor – porque a lógica da oposição decidível deve ser ela também desconstruída – afirma-se em excesso sobre a verdade. Ele escreve portanto que a diferença “ultrapassa [...] de maneira regulada a ordem da verdade”, que ela faz “aparecer/desaparecer o traço daquilo que ultrapassa a verdade do ser” (Marges); e isso vale por cada um dos motivos desconstrutores que ele coloca antes, a arqui-escrita, o traço e o hímen, o parergon, o suplemento, o pharmakon etc. Se o conceito de verdade só tem sentido dentro do fechamento logocêntrico da metafísica da presença (De la grammatologie), parece fora de questão fazer uma retomada desse conceito, uma reinscrição que o faria escapar à sua determinação tradicional – e talvez seja essa impossibilidade que define o “nome maldito” de verdade. Como interpretar esse estranho privilégio negativo? Seria uma necessidade de princípio que o excluiria como se houvesse ao menos um conceito metafísico em si? Ele nos ensinou: o pensamento mais astuto e mais inexpugnável não evita excretar um “elemento excluído do sistema”, um resto inassimilável que não pode “ser recebido, formado, terminado em alguma [de suas] categorias interiores” (Glas.). A verdade ocuparia para ele essa posição, aquela de resto ruim excluído? Seria ela o vômito, a cripta da desconstrução?


Dever-se-ia então reconhecer que a desconstrução nada tem de verdadeiro, não há nada a ver com a realidade, a não ser exatamente para desconstruí-la e esgotá-la radicalmente: um tal pensamento não tem “mais, por conseguinte, de ser verdadeiro”, porque “o sentido e o valor de verdade são (aí) discutidos como jamais nenhum momento intrafilosófico pôde fazê-lo” (Marges). É essa discussão que, por sua vez, convém questionar. A fidelidade infiel poderia tomar aqui a forma de uma pergunta: seria necessário se perguntar se esse gesto derridiano continua ele próprio fiel a seus pressupostos; se a desconstrução da verdade não requer necessariamente essa verdade que ele desconstrói. Pergunta que se divide em várias outras perguntas. Uma vez que não haveria mais desconstrução sem desconstruir a verdade, trata-se de apagá-la sem deixar vestígio, de descartar esse conceito sem lhe dar nenhuma chance, – não somente seu conceito tradicional como também sua determinação mais inicial como “alèthéia”? Se ele se limitasse a declarar “que não há verdade, que a verdade não tem lugar” (Éperons), seria difícil distinguir a desconstrução do argumento do Mentiroso, de um sofisma que se nega a si mesmo (“tu dizes que tu mentes: se dizes a verdade, tu mentes e o que dizes não é verdade; então é falso que tu mentes; então dizes a verdade, então tu mentes” etc). Nada disso. Sustentando que não há a verdade, ele afirma também, simultaneamente, que é preciso a verdade. De onde procede a secreta necessidade, a lei desse “é preciso”? Ele lembra em Positions “que não se trata em nenhum caso de manter um discurso contra a verdade ou contra a ciência (é impossível ou absurdo, como toda acusação exaltada a propósito disso [...]. Repetirei então, deixando a esta proposição e à forma deste verbo todos os seus poderes disseminadores: é preciso a verdade [...]. É a lei” A desconstrução será então exercida em nome da verdade, no desejo de salvar a verdade. Ela se contentará em deslocá-la do registro constatativo para o registro prescritivo, de apostar nela uma necessidade ética, um imperativo (ou, se quiser, um performativo). Assim, na promessa de Cézanne – “eu vos devo a verdade na pintura” – ele acha conveniente “colocar o acento sobre a dívida e sobre o dever, verdade sem verdade da verdade” (A verdade em pintura) Essa prescrição tornar-se-á então a verdade da “verdade”, e é a lei, é um imperativo incondicionado que nos obriga à verdade, uma exigência arqui-ética que comanda toda desconstrução, assim como todo pensamento.

 

Mas essa exigência de que é preciso a verdade é suficiente para que haja a verdade? Como ela se combina com esses numerosos textos já citados em que ele afirma que não há verdade? Não é arriscado que um tal imperativo se encaminhe para a “verdade sem verdade” de uma prescrição fictícia? O final da nota de Positions nos dá a resposta: “parafraseando Freud, que diz do pênis presente/ausente, é preciso reconhecer na verdade “o protótipo normal do fetiche”. Como se abster disso?” Reduzindo a necessidade da “verdade” à de uma ilusão inevitável, de um fetiche ou de um fantasma – “a verdade é o próprio fantasma” (Glas.) – torna-se possível sustentar, ao mesmo tempo, que é preciso referir-se à “verdade” (como é preciso um pênis na mãe para que se constitua o fetiche) e que não há verdadeiramente verdade (não mais do que a mãe não tem pênis). E se reconhecemos nessa exigência um caráter histórico – aquela de uma ilusão tomada nos “domínio da metafísica” – então todo equívoco se dissipa: embora não houvesse verdade, era preciso noutros tempos invocar a “verdade”, era uma fase necessária na história de uma longa ilusão. Era mesmo preciso a verdade, mas não será mais preciso, não será nunca mais. O verbo “precisar” provém do antepositivo “ces-” do latim caĕdere – cujo significado original é “talhar”, “podar” ou “cortar árvores” – e daí precīsĭus – exato, supérfluo, cortado, suprimido, ou “o que já não está”, “o que está em falta. “Falta”, por sua vez, vem do latim fallere. Com esses dois significados decorrentes é possível deixar inferir da oração é preciso “poderes disseminadores”: é preciso que isso falte, a verdade, que isto esteja em falta; é preciso, embora haja; é faltosa, é falsa (também de fallere) essa história de verdade; ci falt, está acabado. No final das contas, se é “preciso” a verdade, é porque não há (e, consequentemente, não é preciso que haja...) Encontra-se de novo a tese do niilismo com as aporias que ela provoca. Tão brutal seja ela, não dá para imaginar como seria diminuir o efeito desse gênero de objeção, uma vez que ele deprecia a verdade colocando-a na classe de fantasma ou de engodo, que ele se alinha com esses “discursos contra a verdade”, esquecendo-se de que é impossível ou absurdo, e que é preciso a verdade, é a lei – como se abster disso?

 

O que a autoriza, a lei dessa verdade? Trata-se de um mandamento ético? Mas acabamos de ver que um tal imperativo supõe a afirmação originária de que a verdade existe. Não terá ela um único significado lógico, o do argumento tradicional que condena toda negação da verdade se contradizendo ela mesma? Pergunto-me se o é preciso da verdade não possui um sentido mais radical: se ele não é semelhante a este outro é preciso que direciona nossa relação com a língua. É preciso falar, é preciso escrever, porque não podemos não fazê-lo, mesmo que seja para dizer que é preciso calar-se. É o que ele designa às vezes como a anterioridade do traço (Psyché): ele quer dizer com isso que há sempre traço, que “a linguagem começou sem nós”, que seu é preciso se dirige a nós como “uma injunção passada, sempre já passada” que é uma promessa sempre para vir. É preciso um Sim arquiprimitivo, um Amém, um consentimento primordial ao dizer, para tornar possível toda interrogação sobre os limites do dizer, quer ela se referencie na teologia negativa, na ontologia heideggeriana, no Tractatus ou na desconstrução, da mesma forma que é preciso a verdade, que sempre foi preciso dizer sim à verdade para poder desconstruir, inclusive (e sobretudo) quando se pretende desconstruir a verdade. Esse outro “sim”, ele nunca permitiu que fosse pronunciado, como se recusava a reconhecer a anterioridade da verdade, a admitir que a desconstrução implica a verdade. Porque enfim, que sentido ou que interesse haveria em “desconstruir a metafísica”, se o nome “metafísica” não designasse uma ilusão, um modo fundamental da não-verdade? E por que seria preciso desconstruí-la, por que não estabelecer o contrário, tentar consolidá-la, refundamentá-la, por que não se declarar “solidário com a metafísica no instante de sua queda” – se não se estava decidido antes contra a ilusão metafísica, isto é, em favor da verdade, segundo a decisão a mais necessária, a mais idiomática, uma decisão absolutamente incontornável? Se há desconstrução, há, é preciso a verdade. Cada vez que ela ocorre, a desconstrução invoca uma decisão em favor da verdade, se exercita em vista da verdade – e esse nome maldito de verdade é a sua bênção, sua promessa, sua oportunidade. Poderia mesmo ser que “verdade” não designasse somente sua lei, sua norma arqui-ética, sua condição de possibilidade, mas coincidisse com o próprio acontecimento da desconstrução. Poderia ser que, em um sentido ainda inédito, a desconstrução fosse um emprego, um uso da verdade, e vai ser preciso tentar elucidar o que é a verdade da desconstrução – e nos confrontar com esta questão: se ela usa a verdade, se ela é verdade, de onde vem o fato de a desconstrução se iludir consigo mesma, de se negar a ponto de afirmar que não existe verdade? Como analisar essa estranha cegueira em que sua própria verdade lhe escapa?
 

tradução de Vicentina Marangon

 

 

JACOB ROGOZINSKI é doutor em Filosofia, já tendo lecionado a disciplina na Universidade de Paris VIII. Atualmente, é professor de metafísica na Universidade Marc-Block de Strasbourg e animador de debates do Parlamento dos Filósofos, fundado em 2004 nessa mesma cidade. Ensaísta prolífico, escreve sobre pensadores como Kant e Hegel, sendo o autor de "Faire part - Cryptes de Derrida", onde trata das questões do luto e da perda tendo como ponto de reflexão o conceito derridiano da desconstrução.

 


 

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