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paulo fichtner
o vôo do anjo terrível
ensaio silencioso
O scholar-gipsy voou. Uma das
mais brilhantes mentes deste país no século vinte, discípulo de Manuel e
dona Cecília, como a chamava, contemporâneo de Clarice, Hilda, Marly,
entre outros, se apagou para nós, carentes de um homem desses poucos que
fazem a cultura de uma época, como chegou a ser saudado em seu auto-exílio
na Europa por intelectuais do vulto de Giuseppe Ungaretti, que o recebeu
em Roma, com o golpe de 64, além de W.H. Auden, Saint-John Perse, Yves
Bonnefoy e o crítico Jean Starobinsky. Terreno sinuoso falar de Bruno
Tolentino porque aqui veremos que o homem Bruno confunde-se com o mito,
como temos em Niccolò da Tolentino, Condottiero – I. Sobre o Tríptico da
Batalha de Uccello: – É bem provável que corramos paralelos/ à morte. É
até possível que trocássemos/ nossas recordações daquele inferno/ por essa
fuga delicada em tons de eterno,/ rendas na cicatriz... Mas os bravos e os
belos,/ os fortes e os covardes, fizeram-se aos pedaços!.
Creio que o grande amor na vida do poeta foi Anecy Rocha, irmã de Glauber,
cuja trágica morte inspirou o poema-litania Ao Divino Assassino, todo em
tercetos decassílabos seguidos do belíssimo, permitam-me os puristas, estrambote:
...mata, Senhor, que a morte não faz mal!. O amargo e irônico
poema em que o católico fervoroso praticamente se levanta contra Deus a
ponto de questioná-lo frontalmente pela morte da amada foi concebido em Paray-le-Maulnier, pouco depois do terrível acidente em que ela abriu a
porta de um elevador e caiu no fosso de oito andares. Bruno se
insurge: ...se nem nos circos mais extremos/ Teus mártires andaram
despencando/ sobre os leões, se nem o lixo cai/ de oito andares aos
trancos, Santo Vândalo?!. A litania pode ser um dos mais pungentes e
dolorosos hinos de amor que se tem notícia na língua portuguesa desde que
Camões resolveu cantar a morte por afogamento, no naufrágio do navio em
que viajavam, de sua amante chinesa Dinamene, nas águas do oceano Índico;
aquela, a despeito das infantas européias, a quem mais amou.
Nas conversas que tínhamos, ele pouco falava de Malu Grabowski;
escreveu-lhe, porém, um extraordinário poema intitulado A Noite Fria,
composto de dez sonetos-estrofe, como viria a conceituá-los em sua última
obra A Imitação do Amanhecer, uma coleção de 538 dessas figuras compactas,
criadas com gênio em O Mundo como Idéia no Livro Último: A Imitação da
Música, magnífica composição de 101 sonetos-estrofe que mesclam uma
inquietante preocupação filosófica, uma linguagem modernamente coloquial e
suas concepções sobre a arte desde Giotto, passando por Masaccio e Piero
della Francesca, que, segundo ele, atravessou a adaga do real e batizou o
eterno com o efêmero, até se aproximar na escrita à estética de um
Botticelli e de um Leonardo.
Quanto às inquietações filosóficas, como todo erudito cristão, Bruno tinha
nas suas bases Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino; debatia-se entre o
essencialismo agostiniano e o racionalismo de Santo Tomás. Errante como um
Rimbaud contemporâneo, desregrado como seu cúmplice e protetor W.H. Auden,
ou mesmo Dylan Thomas, irônico como um Erasmo de Rotterdam e metódico como
Clarice, a digna solitária, Bruno Tolentino era homem de um fino senso de
humor. Nasceu no Rio de Janeiro, aos 12 de novembro de 1940. Educado em
inglês e francês, além da língua materna, lança seu primeiro livro,
Anulação e outros reparos, em 1963, com o qual recebe o Prêmio Revelação
de Autor. Tradutor e intérprete junto à Comunidade Econômica Européia, com
o golpe militar, Tolentino inicia em Roma seu longo exílio de trinta anos.
Logo se torna professor nas universidades de Bristol e de Essex e, em
1973, passa a dirigir a conceituada Oxford Poetry Now. Publica Le Vrai Le
Vain (Actuels, Paris, 1971) e About the Hunt (OPN, Oxford, 1978).
Da curta, porém intensa, convivência com o mágico da palavra, no dizer
deste autor, Tolentino sempre demonstrou naturalmente possuir hábitos
refinados. Exigente com a língua que feria, preocupava-se em manter suas
disputas literárias, nas quais, infelizmente para o Brasil, tinha razão,
no mais elevado tom. Hábil na crítica, ferino por vezes, ácido, polêmico e
polemista... Estes tímpanos ouviram muito sobre Bruno Lúcio Tolentino nos
últimos quatro ou cinco anos, mas, diante de tudo, a imagem mais forte que
tenho é a de que ele era o aristocrata... o vulgo pensa que manda em tudo;
ele, pedia-nos licença (in A Imitação do Amanhecer). Os versos, criados
pelo poeta para descrever o grande amigo alexandrino, encaixam-se como uma
luva no próprio criador.
Era Bruno, à primeira vista, um homem paradoxal; entretanto, à primeira
vista, quem não é paradoxal? O mais simples não nos salta aos olhos e o
mais simples aqui é que o homem, o poeta, o cristão, o ilusionista
Tolentino era um ser atormentado, dividido entre o terrestre e o
sobrenatural, o fogo e a fumaça. Acerca de Anulação e outros reparos,
vejamos o que diz o acadêmico Ivan Junqueira em seu Ensaios escolhidos,
volume 1: de poesia e poetas: ...cada poema,
embora autônomo em sua íntegra organicidade estrutural, é como que uma
ramificação da matriz-pensamento e da atitude estética esboçadas na peça
inaugural. (...) um conjunto harmônico de procedimentos poéticos e
recursos verbais que se repetem e superam ao longo de toda a obra, como o
emprego do decassílabo (sobretudo o heróico, de nobre e solene cadência),
o uso quase virtuosístico do enjambement, da aliteração e de um riquíssimo
sistema rímico-rítmico, cuja gama de sons persiste mesmo depois de extinta
a durée musical do verso e, não raro, do próprio poema. Tais recursos
(...) têm como suporte a economia dos meios de expressão e um notável
domínio lingüístico. A palavra é assim explorada até às raízes de suas
reservas fonético-semânticas, perseguida em suas mais íntimas correlações
sintáticas, trabalhada com afinco, angústia e fé (...). A precisa
definição do ensaísta a propósito do livro de estréia permeia, todavia,
todo o resto da obra de Tolentino, atingindo o ponto culminante em O Mundo
como Idéia, exemplar coletânea onde a unidade formal do todo
se mantém incólume.
***
Dia quatro de julho de 2007.
Faz uma semana que o corpo cansado de Bruno baixou à terra do cemitério do
Santíssimo Sacramento, São Paulo. Ora, logo ele, carioca, de família
mineira, vir a morar ad eternum justo na terra d’Os Sapos de
Ontem? Não. Sua alma habita agora no mais alto panteão da poesia
universal. Sua obra, composta de no mínimo dez riquíssimos volumes,
inclusive em inglês e francês, fala por si. Em vida, contudo, na maior
cidade da América Latina, o profeta do incógnito encontrou refúgio e
abrigo no anexo da ermida de Perdizes, na estreita e arborizada rua Monte
Alegre. Sei que lhe aprazia a companhia de seus alunos e a amizade honesta
de Padre Marcelo, um sacerdote barbudo que me conduziu da capela repleta,
na qual moçoilos entoavam cantos gregorianos, à presença do meu querido
poeta, que me mostrou seu quarto, um armário com livros, uma cama e um
computador. Devolvi-lhe o rosário azul e tomamos chás ingleses na cozinha,
enquanto recordávamos nosso encontro na casa do escritor Guilherme Zarvos,
as noites nos bares do Baixo Leblon, o ano novo que passamos conversando à
beira-mar, totalmente absortos pelos assuntos da ars poetica, pelas
suas estórias inacreditavelmente fantásticas e mirabolantes, como a da
prisão em Dartmoor, a Ilha do Diabo, em 1987 (Balada do cárcere,
Prêmio Cruz e Souza, 1996). Antes disso, publicava As Horas de
Katharina (Prêmio Jabuti, 1995), a história fictícia da freira
austríaca a caminho da santidade.
Na manhã de hoje, houve uma missa no mosteiro de São Bento, no Rio de
Janeiro. Poucos foram os assistentes da solene liturgia. Entre eles, José
Mário Pereira, amigo de todas as horas, o qual Tolentino chegou a
considerar co-autor de O Mundo como Idéia, no óbvio exagero fruto da
gratidão, e Ivan Junqueira, supracitado tradutor do autor de East Cocker e
do Baudelaire de Les Fleurs du Mal, merecedor do instigante O Espectro:
Não há como agarrar-te à natureza/ quando a asa da noite baixa e faz/ a
sombra sobre a acha, a lenha presa/ à luz da labareda que a desfaz;/
morres despreparado ou morres bem,/ mas passas pela cinza, meu rapaz. Ainda no campo das homenagens, há um outro poema também em tercetos
decassílabos, digno de menção, qual seja o Travessias, para Arnaldo Jabor:
À sombra maternal do amor divino/ até eu poderia repousar,/ deixar-me
aconchegar desde menino;(...). É o cineasta que nos revela o que o poeta,
nas palavras do próprio, foi fazer na Europa durante trinta anos: ...fugir
do Festival de Besteiras que nos assolou (in Os Deuses de Hoje, 1995).
Inesquecível ainda O Verme, harmônico conjunto de doze sonetos-estrofe
decassílabos dedicados ao imortal Alberto da Costa e Silva. Aí o poeta
ousa separar tudo o que vê dos delírios da Idéia, a dama ou deusa.
Sente-se à vontade para discorrer sobre Mercúcio de Verona, Hamlet e
Ofélia, Lear e Cordélia, Otelo e Desdêmona. Se Harold Bloom nos assevera
em A Angústia da Influência – Uma Teoria da Poesia, que Shakespeare
inventou o homem moderno, seus dramas e paixões, distintos dos da
Antigüidade, não obstante Ovídio, Chaucer e Marlowe apareçam evidentemente
em seu compósito precursor, diríamos que Tolentino quis reinventar o
modus
operandi shakespeariano na arte da filosofia pura concernente à vida das
formas, porquanto, à exceção dos cavaleiros, o bosque d’A Caçada de Paolo Uccello em muito se nos assemelha ao do
Sonho de Uma Noite de Verão.
PAULO FICHTNER, poeta, nasceu em Porto Alegre, estudou em Paris e
hoje vive no Rio de Janeiro. Publicou O despertar no paraíso
(1999), Tumulto secreto (2005), pela editora Francisco Alves, e
Contra o chão e o vento (2007), pela editora Confraria do Vento.
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