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o novelo de odradek | victor paes
os poetas, maus
exemplos
Retiro semelhanças de
árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.
Manuel de Barros
Mais do que em voga, gritaria,
vale a idéia de que ter a tal e tal atitude ecológica é estar preocupado
com o impacto que a voz do homem ainda pode causar na natureza. Ate aí,
nada de errado no conceito, já que é um conceito (até porque essa é uma
preocupação legítima). O problema está no fato de se preocupar o homem
como um ser preocupadamente externo à natureza. Qualquer preocupação com
ecologia não é antes uma preocupação com o estar do homem no planeta,
enquanto fundador de realidades, enquanto criador de criaturas.
Enquanto essas preocupações são abominadas, podemos apontar alguém que
ainda as tem como silêncio profundo: o artista, o poeta. Ele é aquele que
empurra as palavras vento abaixo e acaba levando-as a sua origem, na qual
o ser humano ainda sabia sobre pertencimentos.
É claro que há tipos variados de poetas. Alguns deles ainda sabem
manipular-se, sem pensar o quanto há de verde em sua personalidade. Há,
outros, porém, que conseguem realmente buscar no mundo (alguns até em si
mesmos) o que há de mundo.
Neste sentido, o que faz um poeta ser um bom poeta é sua capacidade de
articular em sua obra uma visão “ecológica” do mundo. O bom poeta é aquele
que sabe abrir um universo no qual traz de volta as infinitas
possibilidades que oferecem as palavras – nem um universo, mas multiverso.
Apenas quando as palavras são libertadas conseguem dizer algo sobre
liberdade. Apenas quando se quebra a sintaxe gramatical é possível uma
sintaxe poética. E é apenas a sintaxe poética que oferece essa visão
totalizante do mundo, a visão ecológica, no sentido abrangente do termo.
*
Um exemplo desse tipo de poeta é um exemplo ruim: Manoel de Barros. Pois
se o que buscamos é o sentido amplo do ecológico, ele, ao falar
diretamente sobre a natureza, nos deixa uma armadilha: poderíamos ser
seduzidos apenas pelo fato de a natureza ser uma constante em seus poemas.
Mas o que se deve pensar é o que é natureza para Manoel de Barros. Ao ser
questionado, em uma entrevista, sobre o ordinário, que diz preferir ao
insigne, responde: “Entre o poeta e a natureza ocorre uma eucaristia. Uma
transubstanciação. Encostado no corpo da natureza o poeta perde sua
liberdade de pensar e julgar. Sua relação com a natureza é agora de
inocência e de erotismo. Ele vira um apêndice. Restará preso ao corpo, às
lascívias, ao vulgar, ao comum, ao ordinário. É nesse sentido transnominal
que eu uso a palavra ordinário. Por daí que se pode dizer que as palavras
de um poeta vêm adoecidas dele, de suas raízes, de suas tripas, de seus
desejos. Ao leitor não resta que se incorporar. ‘O ordinário é uma
auto-renúncia a favor do natural’. (Li isso em Goethe através de Thomas
Mann)”. Para Manoel de Barros a relação entre homem e natureza é, antes de
tudo, fisiológica, em um sentido bastante radical. O corpo humano não
deixa nunca de ser o corpo da natureza. Para ele, o poeta, ao se aproximar
da natureza, não tem outra opção que não seja a de deixar de “pensar”. E é
se aproximando do ordinário que faz isso. A auto-renúncia é o empenho por
uma visão totalizante da natureza. As palavras do poeta, adoecidas de seus
desejos – e desejo aqui é relativo à figura de Eros, em seu sentido mais
amplo –, são as palavras feridas “de mortal beleza” de Quintana.
O homem experiencia agindo. Agir é a essência do poético. Poesia é assumir
a natureza, que não está pronta nunca, que não é nada mais que sempre um
vir-a-ser. E o vir-a-ser da natureza é o vir-a-ser do homem.
O mundo vai ser sempre do tamanho que pensamos que ele é. E isso não é uma
negação do concreto. Ao contrário, a imagem, a poesia não pode ser chamada
de “delírio”, como sinônimo de “alienação” Não se pode fazer um “festival
da loucura” para provar que não existem loucos.
Não é delírio para Manoel de Barros dizer que “As coisas não querem mais
ser vistas por pessoas razoáveis: / Elas desejam ser olhadas de azul – /
Que nem criança que você olha de ave”. Um olhar de ave, um olhar de azul é
um simples olhar com mais atenção.
Outro poeta que é um exemplo ruim: Alberto Caeiro. A tentação agora é de
dizer que ele é o heterônimo mais ecológico de Fernando Pessoa: “Quem me
dera que eu fosse o burro do moleiro / E que ele me batesse e me
estimasse...”
O que Fernando Pessoa faz aí é um desabafo do ser humano cansado de ter
memória. Não é uma crítica a uma destruição física, mas uma crítica ao
olhar adjetivador que possuímos: “Só a Natureza é divina, e ela não é
divina... / Se falo dela como de um ente / É que para falar dela preciso
usar da linguagem dos homens / Que dá personalidade às cousas, / E impõe
nome às cousas”.
O próprio Mario Quintana já é um exemplo melhor, já que é um poeta mais
representativo da cidade (seja lá o que isso queira dizer).
No entanto, vejamos um poema seu que, nesse sentido, é ruim: “Olho-te
espantado: / Tu és uma Estrela do Mar. / Um minério estranho. / Não sei...
/ No entanto, / O livro que eu lesse, / O livro na mão. / Era sempre o teu
seio! / Tu estavas no morno da grama, / Na polpa saborosa do pão... / Mas
agora encheram-se de sombra os cântaros / E só meu cavalo pasta na
solidão”.
Neste poema estão ainda, misturados à solidão, muitos elementos da
natureza. Por isso é um exemplo ruim. Além disso, parece demais um
poema subjetivo. E não é: a solidão aí é tão universal, que os
elementos da natureza presentes são apenas objetos nos quais se reflete
uma ausência brutal de alguém.
*
Enfim, não se pode confiar em bons poetas. O ideal é se desentender com
eles. Poesia é isso. Para se desentender.
*
É um risco usar palavras verdes em um poema. Um risco de serem entendidas.
VICTOR PAES é poeta,
ator e professor. Integra e faz a direção cênica do grupo Arranjos para
Assobio. Publica alguns de seus trabalhos em seu blog:
http://victorpaes.blogspot.com
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