Na visualidade ou cadência rítmica de cada poema ou na fluidez de cada verso, sejam eles metrificados ou livres, Majela Colares acaba sempre encontrando a intensidade e a inflexão necessárias para os altos e velozes voos que realiza. Trata-se de um grande poeta, e de fato muito pouco acomodado a fórmulas ou receitas. Um grande poeta que se redescobre diferente e múltiplo a cada novo verso, poema ou livro.
André Seffrin
Ler Memória líquida é uma experiência de beber as palavras na sua pureza mais cristalina. Essas memórias, bordadas de luar, são ora paisagens esverdeando a mente, ora cânticos das flores com seus espinhos. Aqui vultos úmidos de mulheres, ali o sentimento dos animais. Abismos habitam os olhos, miragens levam Serena à outra margem. Memórias que constatam a dolorosa consciência e, acima de tudo, a ameaçadora presença humana neste astro impreciso... Memórias que são também balidos e ritmos perfeitos, cantadas na voz de um poeta elevado, com os pés imersos no rio seco das suas origens, insinuando a aspereza do vento que uiva no serrote, ou o urro sentimental de um burrico. Mas voláteis memórias, pois essa voz ecoa no universo abstrato da demarcação de uma alma: a do próprio poeta. Ainda mais abstrato: o nada do Cosmos. Sereno e ardente, a observar os paradoxos do degredo e da bastardia humana que causam a perda da memória sólida, Colares encontra seu estro entre a luz e a sombra, quase como um refrão de sua irônica leveza e dor. Do poema “Um testamento do mundo” jorram as memórias líquidas. É a fonte deste livro, em que a percepção da natureza e seus elementos adquire voz poética. A vida percebe a própria finitude, Deus se desencanta dos seres que criou. Nessa terra devastada a única ventura é o sonho. A memória repousa nos dicionários, tudo o que resta é a palavra. E do verbo se faz verso, cor e som, reiniciando-se assim o ciclo da consciência, de que só a Arte é capaz, quando tudo terminou. Memória líquida é um livro de constatações amargas sobre nós mesmos, a eterna história sem começo nem fim, porém iluminadas sob a virtude de um poeta límpido. O sonhador.
Ana Miranda
MAJELA COLARES nasceu em Limoeiro do Norte, Ceará, em 1964. Publicou os livros de poesia Confissão de dívida (1993), Outono de pedra (1994), O soldador de palavras (1997), A linha extrema (1999), Confissão de dívida e outros poemas (2001), O silêncio no aquário / Die Stille im Aquárium (bilíngue, português/alemão, 2004), Quadrante lunar (2005), As cores do tempo (2007, 2009) e o livro de contos O fantasma de Samoa (2005). Tem poemas publicados em antologias editadas no Brasil e no exterior. Reside em Recife desde 1992.