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martha alkimin


ficções nossas de cada dia

 

 

Tudo o que não invento é falso.
Manoel de Barros
 

 

As ficções vivem. Espraiam-se, além das margens da literatura, para escoarem no centro da realidade cotidiana. Da prática científica à política, da arquitetura urbana às tecnologias genéticas, da economia à publicidade, da mídia à epistemologia, exercitamos cotidianamente procedimentos de ficcionalização do mundo e da vida. Com sua atividade possibilitadora de alterar o material do mundo, desrealizando-o e revirando suas distinções, como um caleidoscópio, as ficções modelam e articulam realidades em cascata e compõem um arranjo de configurações imprevisíveis que lançam luz sobre o seu transbordamento na atualidade.


Embora associadas na ordem do senso comum apenas à imaginação literária e estando aprisionadas em acepções estigmatizadoras como ilusividade, falsificação, inverdade ou devaneio, as ficções ricochetearam de volta à realidade, revelando a força de sua presença em todas as nossas formas de saber e de agir e em tudo aquilo que nomeamos como verdade e realidade. Mais do que isso, sua tematização permite-nos perceber a inconsciência com que as vivemos e, por sua vez, o engano tanto sobre sua condição de atributo exclusivo da literatura quanto sobre sua qualidade de discurso rival do conhecimento e da verdade científica.


É em virtude dessa presença perturbadora das ficções que se torna importante analisar as suas feições contemporâneas e o que elas agenciam, para compreendermos a complexidade de seus novos contornos e sua potência de conjunto temático interdisciplinar que oferece, em especial ao campo dos estudos literários, o desafio de uma problematização que o articula com a cultura e a política. Em outras palavras, pensar a presença das ficções como instância modeladora da verdade e da realidade corresponde, num primeiro momento, a refletir sobre a construção dos repertórios culturais das sociedades que sistematizam modelos de realidade admitidos como válidos. Significa, também, conforme advoga o filósofo Wolfgang Welsch (1995), indagar sobre as possibilidades de desenvolvimento de uma cultura estética sensível às diferenças e à pluralidade.


Explique-se. Welsch postula uma compreensão do estético além de sua primeira linha semântica, ou seja, além da arte, porque na atualidade o estético não se manifesta apenas na estética. A arte não é mais o seu o único locus privilegiado, uma vez que o estético se expandiu para o mundo diário, constituindo e determinando a cultura como um todo. Vivenciamos processos radicais de estetização que compreendem desde os nossos posicionamentos práticos e orientações morais até a construção de nossas categorias do conhecimento. O estético está presente tanto nos níveis da realidade material, condicionada pelas tecnologias e pelas mídias, quanto no da realidade imaterial, isto é, na ordem da consciência e da percepção do mundo. Ele se manifesta num nível superficial, embelezando a realidade e recobrindo-a com a nobreza de uma aura estética que se estende do meio ambiente urbano aos produtos duvidosos despejados no mercado consumidor; dos corpos modelados e estilizados às regras de etiqueta; das tecnologias genéticas, que prometem a ficção da longevidade, a realidade virtual em que podemos viver todas as possibilidades, a uma distância segura.


Mas há também uma estetização de raízes profundas que se dá no âmbito epistemológico. Noutros termos, o conhecimento é também uma construção estetizada do mundo onde não vemos mais nem os primeiros nem os últimos fundamentos da realidade e da verdade, porque estas assumiram uma constituição que só sabíamos, até então, na arte, vale dizer, mobilidade, diversidade, flutuação, desestabilização tornaram-se delas categorias básicas. Por esse raio de abrangência, o estético tornou-se para Wolfgang Welsch "uma categoria-chave do nosso tempo", não apenas por sua inclusão nos nossos modos de conhecer, mas por sua capacidade de alterar todo o caráter do conhecimento e da realidade. Um entendimento também partilhado por Wolfgang Iser (2000), para quem o estético, hoje, faz seu caminho de retorno à cena cotidiana, para assumir uma "imprevisível expansão em novos territórios da existência humana", após os "diversos entrincheiramentos semânticos" que o definiram, desde sua primeira abordagem sistemática realizada por Alexander von Baumgarten, em meados do século XVIII. Assim como Welsch, Wolfgang Iser sustenta que a condição modeladora do estético, que opera em quase tudo o que existe, impede seu confinamento nas fronteiras da obra de arte.


Pelo alargamento conceitual do estético, Wolfgang Welsch vislumbra a necessidade de construirmos uma cultura estética sensível às diferenças e à pluralidade. Isso significa dizer que, se de toda percepção compartilhada nasce, de um lado, um forte índice de realidade e o sentimento de que a ela pertencemos, de outro lado, surgem em nossa percepção áreas baldias, pontos cegos que negligenciam a presença simultânea de formas de referência distintas dos modelos por nós consensualizados como realidade. Os paradigmas que nos asseguram a existência de uma realidade supostamente unívoca engolfam construções semântico-culturais consideradas marginais e as despejam, como ficções, nas latas de lixo das sociedades, tornando intrigante a paisagem sócio-cultural que daí resulta: criamos e vivemos ficções, atribuindo-lhes o estatuto de realidade, ou de um equivalente à verdade, e tudo o que não está incluso nesse critério é chamado de ficção como uma desqualificação, um sinal a menos.


O desenvolvimento, pois, de uma cultura estética sensível à diferença e à pluralidade diz respeito, na expressão de Welsch, à formação de uma "cultura do ponto cego", isto é, à percepção de princípios e de lógicas desviantes na elaboração dos significados do mundo, sem que estes sejam tomados como um déficit, mas como uma diferença cultural; refere-se igualmente à assunção de um posicionamento contrário a quaisquer formas de imperialismo e de injustiça, assim como uma luta pela preservação de direitos fundamentais. Desse modo, o estético se abre como um campo de possibilidades ilimitadas, ou como uma combinatória aberta, que promulga a diferença e a pluralidade como marcas distintivas do nosso tempo. Por isso é possível afirmar que as implicações sociais das práticas de estetização encontram argumentos substantivos para a inevitabilidade do estético como fenômeno cultural que, por não se deixar circunscrever nas malhas de alguns domínios do conhecimento, exige um olhar interdisciplinar que faça jus a sua complexidade.


Por conseqüência, uma análise de nossos procedimentos de ficcionalização, ou de estetização, também pressupõe a tematização – tomando por empréstimo as palavras de Siegfried J. Schmidt (1994) – de como “o conhecimento humano se relaciona com o conhecimento humano da realidade e não com a realidade em si”, já que esta é uma modelagem, portanto, uma ficção. Interessa, pois, que selecionamos e discriminamos esses ou aqueles significados para a formação das noções de verdade e realidade, pilares das orientações culturais que fundamentam a experiência subjetiva e objetiva do mundo. Nessa perspectiva, as ficções são o solo e, a um só tempo, as próprias estratégias da práxis humana que forjam e intermediam as relações com o meio em que habitamos.


Assim, afirmar, por exemplo, a condição ficcional ou estética do conhecimento científico, da verdade e da realidade implica uma relativização de nossas tentativas de positivar o mundo, assim como de nossos esforços para lhe dar uma feição e um sentido unilateral. Tais categorias, tradicionalmente disponibilizadas como absolutas, podem ser problematizadas no ângulo das leis estéticas da ficção, porque não há nenhum fundamento primeiro a engendrar o conhecimento científico, lembra-nos Wolfgang Welsch, senão a sua própria dimensão ficcional, apesar da pretensão objetivística e fundamentalística de que ele se reveste. Em razão disso, não passaria de ficção a posição de supremacia que a ciência ocupa em relação às diversas modalidades de construção de conhecimento, dentre elas as ficções literárias e as não literárias. Estas últimas – ainda de acordo com S. J. Schmidt, existindo em profusão nas ofertas dos sistemas midiáticos e, acrescente-se, nas redes eletrônico-digitais interativas – vêm tensionando nossos entendimentos sobre a falsa dicotomia ficção/realidade, uma vez que oportunizam relações cada vez mais abstratas com o mundo referente.


Por meio da simulação digital e da realidade virtual, experimentamos a textura maleável, plural e cambiável da realidade, ou a sua dimensão ficcionalizada e estetizada, e não apenas o grau de desenvolvimento da infra-estrutura física do universo informacional e de seus dispositivos comunicacionais. Além disso, esse ângulo da contemporaneidade também informa que talvez não estejamos, conforme sustenta Jean Baudrillard (1991), na esfera de radical de simulacros, um processo em que a virulenta circulação do signo se converte em domínio e, posteriormente, em extermínio do real, cujo último estágio é ocupado pelas simulações. Para o filósofo, nas sociedades primitivas o real e o signo encontravam-se perfeitamente relacionados, mas entre os séculos XV e XVII já é possível identificar a referência dos signos a significados determinados pelas noções de classe, de prestígio e de status, caracterizando-se dessa forma um período marcado por simulacros de primeira ordem. Com a revolução industrial, assistimos à produção de simulacros de segunda ordem, pela reprodução dos signos baseada nas lógicas do valor comercial. Na atualidade, com a invasão tecnológica e suas maquinarias que mimetizam a vida e o mundo, estaria configurada a chamada terceira ordem de simulacros, impelindo-nos ao esvaziamento total dos sentidos. Diluído o referente, diluem-se também as linhas entre real/irreal, falso/verdadeiro, original/cópia, verdade/mentira, porque na ordem dos simulacros de terceira ordem, os sujeitos estariam a compartilhar apenas a alucinação da realidade imposta pelo virtual, que se vangloria de ter derrotado o pensamento histórico-crítico e toda e qualquer forma de articulação lógica da realidade.


Mas há de fato uma realidade, ou a realidade? Que realidade genuína é essa que se esconde sob as fibras do virtual? Que, à semelhança de uma esfinge, parece guardar em seu âmago, conforme a imagem Baudrillard, um "segredo fundamental inacessível" e que, de tanto se furtar de nós, é inencontrável?


Na perspectiva de Wolfgang Welsch, os processos de estetização superficial submetem a realidade a um "facelifting", para – poder-se-ia dizer – desrealizar suas diferenças, normatizar comportamentos e experiências e tornar amplamente visível e hegemônica a figura do homo-estético. Este, conforme assinala o filósofo, é uma figura-guia do nosso tempo: ele é sensível, hedonista, de gosto refinado, sabe que gosto é algo que não se discute e o que lhe dá segurança, em meio a todas as incertezas, é experimentar a vida à distância. E num mundo, conforme pensa Welsch, onde as normas morais estão desaparecendo, a boa conduta à mesa, a escolha do copo correto e das boas companhias tornam-se uma espécie de competência estética que compensa o dano causado pela ausência de normas morais. Além, portanto, de procedimentos de estetização superficial, aposta-se igualmente na valorização dessa competência estética que preenche, com a estetização das relações, o espaço vazio deixado pelo desaparecimento do homem dele mesmo, ou pela anulação de sua singularidade. Então, nesse sentido a cultura, que na definição de Siegfried J. Schmidt (1994) equivale a um programa responsável pela manutenção dos "saberes coletivos que definem as esferas de realidade dos indivíduos", sendo ponto de referência de suas ações comunicativas, cognitivas e sociais, acaba de fato exercendo uma função de clonagem, de reprodutibilidade das convicções, valores e sistemas simbólicos. Ou, nos termos de Baudrillard (2001), infunde o "monopensamento", cria indiferenciações que nos tornam, "desaparecidos potenciais".


Por outro lado, a cultura não apenas traduz, regula e sistematiza soluções encontradas pela socialização como forma de garantir a duração e a aplicação de seus programas normativos. Ela própria revela, no confronto com outros sistemas de saberes coletivos distintos e incompatíveis em relação aos da nossa referência, a dimensão de modelagem, de construtividade do mundo que, por sua vez, representa a chance de interromper a linha de montagem que reproduz em escala industrial pessoas e coisas.


Aí se localizam possíveis experiências na contramão da reprodução serial e das lógicas que nos submetem ao valor de uso e do valor de troca, à condição de mercadoria e que nos transmutam nos "novos tipos de zumbi estilizados" imaginados por Welsch, ou nos "desaparecidos potenciais", de Baudrillard. São nessas áreas baldias que a cultura se desfaz como um instrumento da clonagem mental, para potencializar campos de diferenciação, de singularização dos sujeitos.


Além de uma articulação dos temas da literatura, da cultura e da política, há, na dimensão modeladora das ficções, uma instância que também faz colocar em causa a própria indefinição do estatuto dos fenômenos e, por seu turno, o caráter igualmente provisório de nossas categorias de análise. Noutros termos, o conhecimento – prática cujo destino efetivamente não é a verdade, mas a mediação entre os sujeitos e o mundo – é algo que inventa, positivamente falsifica, esteticiza e submete todos os sistemas sociais à lógica das ficções.


Nesse ponto reside um aspecto decisivo, isto é, o de que o homem é capaz de produzir o mundo, mas o vive como um produto não humano, como uma facticidade estranha que o faz perder a noção de que, embora objetivado, a autoria desse mesmo mundo é humana. Processa-se uma relação invertida em nossa consciência, oriunda dessa dinâmica de reificações e, paradoxalmente, o homem produz uma realidade que o nega. Não obstante, mesmo apreendendo-a de forma reificada, continua a engendrá-la, cuidando, é claro, para que as experiências estranhas à realidade predominante da vida cotidiana não desestabilizem as rotinizações assimiladas e não arruínem o quadro global de suas referências.


As ficções literárias, na contramão das hierarquias e das tipificações das vivências, desempenham um papel ativador de experiências marginais; elas são como que um acesso às áreas baldias e aos pontos cegos de nossa percepção. Em virtude de fingirem uma realidade inesperada, que anula as convenções presididas habitualmente pela percepção trivializada e reificada do mundo, as ficções literárias promovem um estilhaçamento da percepção da realidade, refratam o foco de verdade e de coerência do mundo e fazem emergir a incerteza, o desvio, a diferença e, assim, a pluralidade. Disso resulta a possibilidade de um distanciamento crítico em relação às cenas do mundo e às suas representações tipificadas, ou em outros termos, surgem novas formas de auto-referência que se contrapõem às já positivadas.


Pelo fato de as ficções literárias serem o único discurso capaz de pensar a si mesmo como ficção, conforme nos adverte Wolfgang Iser (1996), elas articulam um saber específico, que nasce exatamente do seu autodesnudamento, que marca o seu descompromisso com a ratificação das verdades canonizadas e com os significados pragmatizados pela objetivação da realidade. O texto ficcional investe na construção de um mundo que exige do leitor a sua compreensão como um mundo "fingido", e é por meio desse discurso de fingimento que se opera a desestabilização do modelo representado. O autodesnudamento da ficcionalidade e a duplicidade lúdica, isto é, a possibilidade de experimentar esteticamente a ambigüidade entre o que é e o que não é, entre o possível e o impossível, e cuja referência são as próprias representações objetivadas do cotidiano, criam um espaço de riquezas semânticas que deslocam o sujeito de sua habitualidade e de toda a rede de naturalizações salvaguardadas pelas ordens institucionais. Portanto, se as ficções literárias facultam ao sujeito uma vivência de alteridade que, por sua vez, o remete tanto à criticidade em relação aos marcos de sua realidade quanto à interrupção das lógicas de reificação, é preciso contar com o surgimento de mundos diferentes e desenvolvermos uma sensibilidade para a diferença e para a pluralidade.


Insistir na condição nada realística, mas ficcional de nossas práticas corresponde a sustentar que conhecimento, verdade e realidade assumem uma constituição estética, ficcional. São categorias que integram a ordem do estético, não no sentido da beleza, mas no de fenômenos que apresentam uma capacidade de modelação, de virtualidade, de fluidificação das distinções socialmente instituídas e compartilhadas, de vetor da criação, semelhante à literatura. E o ponto decisivo aqui não é a inclusão do estético nos nossos modos de conhecer, mas – conforme já se mencionou – o quanto ele altera o conhecimento e a realidade. É esse contexto que nos leva a perguntar sobre o que ainda poderiam significar ficção e realidade e o quanto tais distinções se tornaram cada vez mais problemáticas, a partir do advento das tecnologias midiático-digitais. Dessa forma, é possível afirmar que vivemos no registro de uma rede de multi-realidades engendradas pela atividade possibilitadora das ficções.


Nesse sentido, o saber construído pelas ficções literárias aparece como um elemento privilegiado. Ao facultarem a possibilidade de nos experimentarmos esteticamente como um outro pela ativação de uma relação específica com o imaginário, elas potencializam a (re)invenção do homem e do mundo, fabulando os seus destinos como diferença e devir.


Por suas múltiplas configurações, pelos conteúdos que agenciam, por alterarem o conhecimento e a realidade, a temática das ficções (literárias) não apenas reivindica outros acordos semânticos fora das oposições desqualificadoras, mas também encaminham como problema o redimensionamento de nossas relações com o inventário de conceitos e valores que a cultura sistematiza.


Assim, as ficções (literárias) inscrevem-se na contemporaneidade como temáticas desafiadoras, pelo estatuto de complexidade que anunciam, sobretudo em face das mutações culturais protagonizadas pelas sociedades midiático-digitais. Uma vez que transpuseram todas as fronteiras do mundo, e sendo a um só tempo fruto e raiz da práxis humana, as ficções ricocheteiam no centro da vida cotidiana, insistindo na formulação de uma importante questão: a necessidade humana do emprego do fingimento.



MARTHA ALKIMIN é professora adjunta do Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ. Doutora em Letras pela PUC-Rio, iniciou, recentemente, pesquisa de pós-doutorado na mesma universidade, na área de Teorias Contemporâneas de Literatura.

 


 

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