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marcia frazão
duas histórias de
Vitalina
métricas
Vitalina costumava dizer que
"o comprimento não é coisa dos centímetros e metros". O seu sistema
métrico ignorava os tracinhos das réguas e era definitivamente avesso às
fitas. Media no olho. Olhava sabe-se lá para qual ponto, estendendo um fio
imaginário que vez por outra me surpreendia com a exatidão neo-científica
de uma bruxa analfabeta. Invertia a lógica e ria-se de qualquer tonto que
tentasse convencê-la da inexatidão dos seus cálculos. Um dia, chegou lá em
casa um homem estupidamente alto, comprido como uma vara, e ela nos disse
que ele era "baixo que nem verme minhoquento". Minhoca?! O homem media
quase dois metros! Mas olhando para o tal ponto incógnito, Vitalina
insistia em afirmar a minhoquês do gigante. De nada adiantou medi-lo,
exibir a prova definitiva da fita métrica. Vitalina não se convenceu.
Continuou afirmando que o gigante não passava de uma minhoca.
O tempo passou e um belo dia estourou uma notícia na casa: o grandão dera
um desfalque no banco que trabalhava! Vitalina nos olhou e sorriu
zombeteira: "Eu não disse que o tal era baixo que nem verme minhoquento?"...
Desde então, tenho procurado no espaço o tal ponto incógnito. Aposentei as
réguas e fitas métricas, e estico os centímetros entre as pestanas.
Descobri que o tal ponto pode estar no intervalo criado pelo piscar dos
olhos. Ali, no vácuo da percepção. Escondido e exposto, em movimento e
parado. Com o exercício desta neo-ciência, percebi que a métrica
transcende o comprimento, altura, circunferência e peso. Me dei conta de
que, por mais disparatado que seja, a métrica pertence ao universo dos
adjetivos e não dos números. Sim! A analfabetice de Vitalina estava certa:
"São as palavras que esticam, encolhem, engordam e emagrecem o mundo.".
sobre
Senhoras do Santíssimo Feminino
Talvez por saberem o quanto é
difícil retirar as nódoas dos vidros, elas não apareceram nos das minhas
janelas. Preferiram as vias do inconsciente e das sincronicidades
junguianas. Mas a despeito dos recursos que utilizaram, a verdade é que
chegaram. Em bando. Como um cortejo de mulheres em busca de uma liquidação
que valha a pena. Chegaram em brilhos, com o mesmo sol ofuscante que um
dia banhou os olhos de um índio lá pelas bandas do México.
Não me pediram nada nem
revelaram segredos quanto ao destino da humanidade. Me disseram que só
queriam conversar e mais nada. Acostumada com as assombrações que teimam
em me visitar desde menina, não me assustei nem achei estranho. Afinal,
que diferença haveria entre o fantasma de minha bisavó Luiza e a aparição
de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro? Se muitos encontraram refúgio sob o
manto da Virgem, sob as saias negras de Luiza muitas crianças escaparam
das palmadas dos pais.
Eliminada a hipótese de qualquer diferença, recebi as Senhoras (e o seu
séquito de santas) com a mesma intimidade que um dia recebi Dona Lua (e o
seu séquito de deusas) de vó Vitalina e os orixás de Vera, a doce
cozinheira da minha infância.
Entediadas com as pompas que os mortais lhes reservam quando com elas
querem falar, as Senhoras respiraram aliviadas quando se viram em meio a
um bando de mulheres a tagarelar na cozinha. O riso, antes aprisionado por
um contorno sutil de imagem, explodiu solto, livre e sem compromissos. Os
véus foram retirados e deixados nos encostos das cadeiras. As mãos,
dormentes pela incômoda posição de eterna prece, soltaram-se ávidas, à
procura de um naco de pão ou de alguma guloseima. Os braços, antes
enrijecidos na intenção de um abraço impossibilitado pelo gesso,
descobriram os desenhos dos gestos e o calor do toque. Enfim, agora
estavam livres para ser somente mulheres. Mas como dizia Vitalina, "mulheres são mães dos milagres"...
MARCIA FRAZÃO
é romancista, contista, autora de livros infantis e, além de qualquer
estereótipo que isso venha a evocar, bruxa. Com formação em Filosofia, é
autora de obras desafiadoras para qualquer crítico de gêneros, como A
Cozinha da Bruxa e O Oráculo dos Astros, nos quais retoma, longe de
qualquer esoterismo ingênuo e comercial, as questões do sagrado e do mito
presentes ainda em nosso tempo de muitas soluções. O segundo conto
publicado aqui foi escrito em torno de seu próprio romance Senhoras do
Santíssimo Feminino, da editora Record.
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