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a arte da astúcia | ricardo pinto
cinco parágrafos para Blake
Tiger,
Tiger...
A vida que escorre talvez à
espera da letra mínima na folha em branco, peripécia e tufão dos sentidos
gastos, saúda teu rosto entre a multidão: uma boca, um olho, um nariz,
maçãs para um novo éden na rua, na romança antiga do balbuciar das
palavras flutuantes, qualquer dispersão de teu ser repentinamente
energizado ao alto e ao baixo e ao fundo e à pele para a sombra e o dia,
vendo à direita um demônio dançarino de língua branca celebrando novos
pães, à esquerda seu irmão, Logro, coberto de branco pálido para perder o
emprego. E entre os dois o caminho do deus te saúda também, você chegará?
Blake enxergava em Londres gigantes acorrentados e pequenos anjos sujos se
cristalizando em névoa de carvão e suor, e Guinsberg disse Moloch, Moloch,
pois em sua São Francisco renascentista ele viu além do grande oceano, o
Dharma corporativo Bell-Bell tirando a máscara de Dorian: a verdade está
sempre no que é escondido, a verdade está sempre no que surge à tela
fingindo ser mentira. Mas aqui, eu vejo antigos canibais se perpetuando
desde antes da invenção da palavra vampiro, ai, meus olhos derretem ácidos
à visão de Pietro Pedra: antigos canibais pulando de corpo em corpo em sua
linhagem, pedindo talvez de seu nada que um rato finalmente os devore e se
eu toco ainda que por um instante seu centro macerado posso fazer surgir
aqui os gordos vermes que são seus filhos e carinho.
E nós estamos sempre à beira da extinção, da perdição, da exaustão, da
regressão, da partição, da fragmentação em uma ampla glossalália de
palavras mal formadas e mal digeridas que tramam nos intervalos da alegria
uma única e contínua prisão: introibo ad altare dei com um pouco de mijo
para que o ácido e o cheiro e o calor refaçam a fusão das coisas, um ser
de beleza cheio de chagas talvez surja para combater em teu nome, e
arrotando bêbado, ou tão cheio de comida que consiga ouvir seu corpo
inflar e expandir, ou talvez tão carregado com a matéria ígnea do tesão
molhe e queime o discurso perverso das coisas e dissolva-o para que possa
ascender: aqui é o território de onde vêm todos os diabos, mas aqui é
único território em que a transfiguração e a astúcia são possíveis.
Oh, camaradas, uma grande espera caiu sobre as praias mais ocidentais, e
tudo feito nada e nada feito em tudo, como se um homem amarrado de cabeça
para baixo tivesse de se conformar com sua longa morte, em ser salvo pelos
reis sádicos que foram exatamente quem o amarraram sob a árvore. Mas, eis
que eu presto testemunho de que o que falo é verdade: o homem de cabeça
para baixo cantou para subir, e assim, esvaziando-se das palavras inúteis
conseguiu preservar apenas o rio vivo e o magma. Apura sua boca e seus
pulmões até que as palavras sejam faca e fogo, e carícia e gozo, e o grão
minúsculo lapidado tão finamente que é perceptível apenas pela refração da
luz. E assim virá o dia em que os reis fingirão que irão tirá-lo da
árvore, e ele fingirá que se desespera ao perceber que na verdade eles
apenas vieram ver se o nó ainda está bem atado. Mas na frente deles ele
próprio vai se soltar, e na frente deles vai cantar para subir. Desprovido
de tudo, tornado nada, o homem Ulisses ainda retorna.
Se algum dia o tigre te saudar, não reclame dos danos que você sofreu em
suas garras. Mesmo essas feridas que possivelmente te custaram membros
inteiros e fel o bastante para encher uma piscina significam nada. Se tuas
pernas foram devoradas foi para que você andasse de quatro, se teus dentes
arrancados foi para que pudessem crescer caninos, se tua barriga arranhada
para que a cicatriz formasse listras e se tua pele foi queimada, foi para
que como o lobisomem ela pudesse virar e dela nascerem pelos. O único dano
que o tigre provoca se confunde com seu dom: com tempo e sorte, faz com
que seus fiéis sejam seus irmãos.
RICARDO PINTO é poeta e escritor, ou quase. Atua como professor, edita
a revista Confraria e é sócio da editora Confraria do Vento. É mestre em
Literatura Comparada e teve alguns artigos e poemas publicados em sites e
revistas, assim como um livro de poemas Amar-o-mar e Outros Poemas (2000).
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