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márcio-andré
Hopper e a máquina de horizontes
Há homens que entendem mais de janelas. Hopper com certeza é um
deles. Entender de janelas é fazê-las vigorar como fenda: seu ato de
deixar-se ver através. A janela é uma máquina cuja função é nos permitir
ver por ela, ou seja, sua única possibilidade de existir é deixando de ser
algo. É somente deixando de ser algo (parede, por exemplo) que ela pode
vir a ser janela — presenciar seu nada é fazê-la funcionar. Logo, pode-se
dizer que para ser algo, a janela precisa deixar de ser algo. É um
não-objeto curioso, este de pendurar cortinas, vidro, madeira. Por esta
sua peculiaridade ela se torna um objeto singular. Alguns perguntariam
pela porta, mas a porta já carrega em si uma função, muito mais prática,
menos “poética” que a janela. A porta é uma passagem, essencial ligação
entre o interior e o exterior de uma casa e sem a qual ela não poderia
existir. Já a janela, cuja falta não impediria, na prática, uma casa de
ser habitada, se presta a possibilitar um horizonte, ampliar os cômodos
desta casa até o limite de nossa vista. Mesmo suas funções mais práticas,
iluminar, arejar, circular o ar, não se afastam simbolicamente do sentido
de alargamento das possibilidades e de abertura para o outro lado, o mundo
de fora.
Mas há outra coisa que torna a janela, essa máquina de horizontes, muito
mais próxima do que somos na essência, e que nos fascina profundamente,
muito mais do que pode uma porta, mera passagem, mero deleite para as
sandálias. É o fato de sermos nós também janelas: nossas próprias janelas
do mundo. Não somos nada além de maneiras do mundo se concretizar em nós —
através de nós — janelas. O universo se solidifica e tudo preenche os
espaços vagos entre nossas partículas. Se fôssemos portas não seríamos
homens, mas animais, presos em seu sonho de mundo, sem poesia, sem ritos,
apenas a função de comer, foder e definhar sem significados. Mas como
janelas, somos o mundo, pois somos aqueles que permitem que, por nós, o
mundo seja visto e significado e poetizado. Acredito de fato que toda vez
que olhamos por uma janela, entendemos um pouco mais sobre nós mesmos.
Hopper percebe isso e em suas telas é possível encontrar o sentido
perdido desses não-objetos de entrever. Seus seres urbanos, solitários,
esquecidos, todos se perdem diante da amplitude do mundo que se estende
através das janelas, como se procurassem, não na paisagem, não nos olhos,
mas no limiar da própria esquadria, o sentido de estar ali. Não é um
questionamento existencial, mas poético. A pergunta que a janela
possibilita não é “o que sou?”, mas “o que há entre nós?”.
Na verdade nem é uma pergunta, mas um medo, uma ansiedade, que pressupõe
uma busca adiada, um caminho incompleto, talvez. A sensação é de ser
pequeno, frágil diante daquele mistério que se esconde atrás de cada
elemento da paisagem, os prédios, as casas, as montanhas. Talvez seja por
isso que as paisagens que se podem ver pelas janelas de Hopper nos intrigam tanto. Seus elementos são
irreais, sórdidos, misteriosos. Não são paisagens externas, mas internas,
perdidas num tempo estagnado de tão estanque. Veja o quadro
Compartimento C, vagão 193, de 1938, por exemplo, ou o Motel no
Oeste, de 1957. Os dois mostram mulheres sentadas num ambiente
interno, diante de amplas janelas que se abrem para vastas paisagens. O
primeiro é um ambiente quase noturno, pois do lado de fora se vê uma
recém-noite, acabada de sair de um crepúsculo, com longas sombras
projetadas sobre um rio ou um canal ou uma planície. Dentro do vagão
iluminado, a mulher lê um livro ou uma revista ou relatórios, o que é mais
provável, e parece segura, aquecida pelo conforto da luz, protegida da
paisagem que passa. No segundo, uma mulher num quarto de motel de beira de
estrada se banha com a luz do sol que entra pela ampla janela de vidro. Do
lado de fora, um automóvel, uma estrada e, mais além, montanhas áridas,
surreais. Neste também, a mulher parece estar segura, protegida do
ambiente tranqüilo-ameaçador que espreita do outro lado. Nos dois casos, a
vista, ainda despercebida por estas mulheres (percebida somente por nós
que a vemos pela janela da janela que é a tela), na iminência de ser
vista, sedutora e artificial, geradora de uma angustia inominável, é um
templo ao esquecimento e à solidão. A sensação mais forte
que a paisagem me passa é a de “eu não gostaria de estar lá, preferia
estar lá dentro, protegido”. Do lado de fora, a vida parece
tão impossível quanto a superfície de um planeta sem atmosfera. Isso se repete em outros quadros como Escritório numa
Pequena Cidade, de 1953, em Sol de Manhã, de 1952, em Manhã em
Cape Cod, de 1950, e em muitos outros. No Janela de Hotel, de
1956, a
vista me parece especialmente aterrorizante. A senhora sentada diante
dela, parece, em sua despreocupada melancolia, agarrada à maciez do sofá,
perdida nas portas e
janelas negras — mais negras que a própria noite à volta. Às vezes, a
paisagem não aparece propriamente dentro dos quadros, é o caso de Chair
Car, de 1965, onde pessoas descansam num vagão iluminado pela luz do
sol, mas não é possível ver o que se passa do lado de fora. Às vezes, nem
mesmo a janela aparece totalmente, mas apenas insinuações dela, como em
Conferência Noturna, de 1949, ou no belíssimo No escritório, à
noite, de 1940, onde se vê somente a lateral das janelas e a luz da lua ou
de um poste entrando por elas e iluminando os presentes. Às vezes, o ângulo
pintado é externo, mostrando os personagens do lado de dentro das casas,
perplexos, ou ocupados, como no famoso Noctâmbulos, de 1942. Mas,
tirando essas pequenas diferenças, a situação sempre me parece ser essa, a
de pessoas num ambiente seguro, protegido, separadas por uma janela do
ambiente externo (às
vezes, muito raramente, estas se arriscam do lado de fora, mas sempre
protegidas por um alpendre ou por uma varanda). Seja
de dia ou de noite, esse lado de fora está sempre deserto, não se vê
pessoas, e carrega sempre uma paz e uma quietude misteriosa, típica dos
lugares silenciosos, que nos atrai
e nos amedronta.
Os lugares que atravessamos nos sonhos são esboços de lugares que por
pouco não se tornaram reais, descartados antes mesmo de se materializarem.
Nunca são inteiros, são fragmentos, mal acabados, cheios de imperfeições e
arestas, com seus cantos escuros e seus caminhos ainda incompletos. São
esses lugares que Hopper escolheu para pendurar em suas janelas. Por isso
são tão medonhos e tão atraentes, como se fizessem parte do cenário de um
sonho. E por serem espaços oníricos, são nossos, e ainda não os são. São
completos e incompletos, verdadeiros e falsos. Não são lugares pelos quais
poderia se passar por uma porta e chegar a outros lugares, não, estão ali
apenas para serem vistos através das janelas, como um cenário de papelão. É uma vista do próprio mistério
encerrado no
homem, mistério este que o permite ser homem. Eis o que nos dizem as telas de Hopper: nas janelas não se penduram cortinas, mas todas as possibilidades
do que potencialmente somos. Essa situação, que não é alegórica, mas concreta, é a
situação do homem diante de suas próprias paisagens, mais, diante do
mistério que permite essas paisagens, o mistério que os homens podem
apenas vislumbrar enquanto mistério, sem o revelar. Pois quando forem até
lá, passarem pela porta e forem até lá, não serão mais homens e a paisagem
não será mais paisagem. Se todos tivessem a resposta para essas paisagens,
se todos pudessem ir até lá e trazê-las para dentro, ninguém teria janelas
em casa, penduradas na parede, viradas para o bairro ou para o mar — essa
lâmina de nada, janela, coisa-nada, coisa-nada-interstícia, que me separa
do desconhecido que sou. Toda vez que sonho, esse desconhecido, o sábio
que há em mim, aconselha o idiota que há em mim, o conhecido. Esse sábio,
o de todos nós, é o único que pode passear por esses lugares (e só por isso
ele pode ser sábio e nos aconselhar), mas ele mesmo nos é quase
inacessível, não responde à nossa vontade, é somente uma parte
independente daquele
que somos, o calado, o silencioso, o lado mais escuro e mais perto da morte.
MÁRCIO-ANDRÉ é
poeta, contista e músico, autor dos livros Movimento Perpétuo e Chialteras
e membro do grupo Arranjos para Assobio, de texturas poéticas realidades experimentais (http://arranjos.confrariadovento.com).
Trabalha na tradução de poesia de Arnold Flemming, Serge Pey,
Ghérasim Luca e Bernard Heidsieck e edita as revistas literárias Confraria e Improvável (www.improvavel.com). Suas páginas são www.marcioandre.com
e
http://marcioandre.confrariadovento.com
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