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luiz rohden
filosofia e jogo de futebol?
“É a vida pacífica que todos
deveriam viver
o máximo e o melhor possível.
Qual é então a senda correta?
Deveríamos
viver nossas vidas
participando de
certos jogos – sacrificando,
cantando e
dançando – de modo a nos
capacitarmos
a conquistar o favor
divino e repelir
nossos inimigos e
vencê-los na luta”.
Platão, As Leis, VII, 796 b.
Aos meus amigos do jogo
futebol de sábado à tarde!
Haveria ou há, por acaso,
alguma relação entre o jogo de futebol e a filosofia? Foi a questão que
começou a me incomodar quando, após ter proferido a palestra “Arte e
verdade em Gadamer” na Faculdade de Letras da UFRJ, Márcio-André – um dos
editores da excelente Revista Eletrônica Confraria – chegou-se a mim e
comentou: ‘muito interessante as relações entre arte e filosofia que você
explicitou através da noção de jogo..., mas professor, será que o senhor
poderia escrever um texto sobre o jogo de futebol?’... Um silêncio
instaurou-se entre seu pedido e minha hesitada resposta, uma vez que jogar
futebol é uma das minhas paixões, mas explicitar suas relações com
filosofia, a princípio, me pareceu pouco ‘científico’ e não se encaixaria
nos critérios ‘objetivos’ da academia. Para protelar minha resposta apelei
à velha e ontológica desculpa ‘não tenho tempo agora para isso’. Mas meu
amigo continuou insistindo em seu pedido e reiterou que havia gostado das
relações que havia desenvolvido entre jogo, arte e verdade do ponto de
vista filosófico. De volta aos pampas, o pedido do Márcio-André foi
tomando conta de mim de tal forma que, ao final, parecia não ter mais
outra alternativa senão aquela de tecer um texto sobre duas das minhas
paixões, a filosofia e o futebol. Aos poucos foi emergindo este texto
norteado sempre pela inquietação: Haveria ou há, por acaso, alguma relação
entre o jogo de futebol e a filosofia? E, em caso afirmativo, quais
seriam?
Breve fenomenologia... Basta um rápido olhar para o reino dos animais –
não humanos – para nos mostrar que eles brincam, que ‘fazem de conta’
quando estão mordendo ou atacando, enfim, que jogam. Como ocorre com as
questões antropológicas, o jogo de futebol é objeto de controvertidas e
divergentes opiniões presentes nos diferentes níveis das relações humanas.
Não raro os jogadores de futebol ouvem: ‘você só pensa em futebol’, ‘você
gosta mais de futebol do que de mim’ ou então ‘que bom que vai jogar’...
Aqueles que não puderam sentir o prazer de jogar dizem, com desdém, ‘que
graça tem correr atrás de uma bola, um pedaço de sintético ou um couro
cheio de ar, se cansar e ter ainda, ao final, a desculpa para beber
cerveja com amigos?’. Quantas vezes já ouvimos, se é que não as
empregamos, expressões como ‘a vida é um jogo onde uns ganham, outros
perdem, uns nascem, outros morrem’ ou então ‘ganhar ou perder não é o mais
importante, mas o jogar propriamente’. De tão presente que está em nossas
vidas o jogo já foi objeto de letras musicais cantadas por, entre outros,
Djavan e Skank. Piaget, do ponto de vista educacional, refletiu sobre a
aprendizagem das regras dos jogos por parte das crianças. Cresce o
interesse pelos tratamentos terapêuticos mediados pelo jogo, ou seja, pela
ludoterapia. Por outro lado, do ponto de vista social, qual é o menino de
hoje que não quer ser ‘Ronaldinho’? Não raro os ‘craques’ de futebol são
tidos como heróis, como mitos, como padrões de vida para um grande número
de crianças, independentemente das razões econômicas e sociais envolvidas
no processo de imitação-projeção. Outro aspecto impressionante de se
observar, do ponto de vista do jogo de futebol, é a fidelidade que os
torcedores possuem em relação ao seu time tanto que, já ouvi por aí a
seguinte expressão: ‘troca-se de carro, de emprego, de mulher’, e de,
fato, não conheço alguém que tenha trocado de time, mesmo que ele tenha
caído para a segunda ou para a terceira divisão.
Ora, poderia a filosofia, que tem o real como objeto de reflexão,
desdenhar um dos seus componentes, no caso, o jogo, e especificamente o
jogo de futebol? Seria coerente com seu modo de proceder se ela excluísse
do seu horizonte de reflexão aquilo que não é ‘sério’ ou por que o futebol
é usado como instrumento de alienação social? Mas não poderia ser a
própria filosofia uma forma de alienação social?
Filosofia e jogo de futebol... Quem já não prestou atenção como os animais
gostam de jogar, ou seja, de brincar, de ‘fazer de conta’ que atacam ou se
defendem quando supostamente atacados? Quem já não ficou fascinado com as
brincadeiras de um papagaio ou de um gato? Infelizmente, no ocidente,
concedemos ênfase ao homo faber ao homo sapiens e desdenhamos sua
constituição de homo ludens. Isto, por si só, constitui um indício
revelador dos inúmeros preconceitos que rondam as atividades lúdicas dos
humanos. Contudo, no âmbito literário, encontramos, entre outros, obras
que explicitaram a dimensão antropológico-lúdica com maestria como O
jogador, de F. Dostoiévsky ou O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse;
O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortazar.
Ora, como qualquer arte, o jogo de futebol pode ser manipulado para o bem
e para o mal, como meio de diversão e de prazer ou como forma de
alienação. Não está no jogo de futebol, pois, a consistência maléfica ou
benéfica, mas na orientação que lhe damos. Se chama atenção o imaginário
de poder, de prazer, de riqueza que ele sustenta, nem assim podemos
deduzir que a sua natureza é anti-ética ou maléfica. Nesse sentido é
limitada a identificação entre técnica moderna e esporte realizada por
Adorno.
Traços antropológicos próprios do jogo... O jogo de futebol exerce um tal
fascínio sobre quem joga ou quem o assiste, que, toma conta. A vivência do
fascínio exercido pelo jogo ‘arranca’ o jogador da sua temporalidade e
instaura uma espécie de experiência de eternidade ou de catarse, própria
da experiência estética. O que eram as tragédias gregas senão o jogo de
pertença e de distanciamento do espectador em relação ao representado e
nesse ir-e-vir as pessoas refletiam sobre seu modo de viver.
Falamos, a meu modo de ver equivocadamente, em ‘resultado justo ou
injusto’ de um jogo de futebol. Contudo, seu resultado, quando jogado
dentro das regras estabelecidas, não envolve justiça ou injustiça. Penso
que, prioritariamente, não é uma questão de justiça ou de injustiça, pois
no jogo está envolvido uma dimensão antropológica que extrapola as regras
morais, qual seja, os elementos da criatividade, de sorte e de azar que
não podem ser reduzidos ao domínio moral do justo ou do injusto.
O jogo de futebol, paradoxalmente, envolve arte, ou seja, técnica e
criação. O bom jogador não é aquele que executa as regras, mas aquele que
as incorpora, joga com elas e as extrapola. Ou seja, o máximo de vivência
de suas regras implica na máxima criatividade. As ‘pedaladas’ do Robinho
ou o drible da ‘foca’ de Kerlon são criações artísticas possibilitadas de
um lado, por rígidas regras e, de outro, pelo espaço de liberdade que o
jogador possui para criar. Por isso dizemos que o jogo de futebol é também
uma espécie de arte.
O jogo de futebol, para ser bem jogado, exige de quem jogue, que se
entregue a ele totalmente. Não joga bem quem dá mais atenção ao público
que à bola que rola dentro de campo. Nesse sentido, jogará tanto melhor
para o público quanto mais o jogador esquecer-se dele e se voltar para o
jogo. Por isso o jogador em tudo se assemelha ao artista, ao professor, à
medida que, para jogar bem, precisa se concentrar no jogar.
A filosofia do jogo de futebol... Muitas são as lições filosóficas que o
jogo de futebol tem a nos dizer. Do ponto de vista corporal-antropológico:
jogar futebol, enquanto exercício físico, contribui para descarregar, além
de toxinas, as tensões e estresses corroborando a conhecida máxima latina mens sana in corpore sano, ou seja, mente sã em corpo são. O corpo exige
cuidados, dedicação e condicionamento físico para que possa ‘jogar bem’.
Quem joga futebol, consciente ou inconscientemente, trata a vida como um
todo integrado entre corpo e alma. Com isto denuncia-se a atribuição
segundo a qual o corpo seria apenas um cárcere para alma ao mesmo tempo em
que saltamos para fora do dualismo antropológico cartesiano que cinde res
cogitans [alma] da res extensa [corpo] conferindo valor apenas ao primeiro
aspecto.
Do ponto de vista ético-moral: aprender a jogar futebol implica em
aprender suas regras, incorporá-las, respeitá-las o que, em última
instância, significa aprender a socializar-se. A vida, como e enquanto um
jogo, tem suas regras que precisam ser conhecidas e respeitadas. Sabemos
das dificuldades que encontrará a criança que não aprender as regras, os
limites próprios do jogo da vida. Ora, jogar futebol exige aprender a
trabalhar limitações de ordem corporal [não é possível jogar bem por mais
de 4 horas seguidas ou sem condicionar-se fisicamente], temporal [o jogo
tem um início e um fim], social [não joga bem quem ‘gasta’ a bola como se
diz, por isso o ‘fominha’ é repreendido pelos companheiros], moral
[preciso obedecer o juiz para que o jogo ande bem]. Jogar futebol
significa vivenciar regras morais básicas como: ser solidário, saber pedir
desculpas, apoiar quem falhou num lance, conviver com o diferente, ser
criativo. Quão profícuo seria para a filosofia se aprendêssemos as regras
básicas e simples do jogo de futebol! Não é jogo quebrar a perna do outro;
não vale passar a mão na bola durante o jogo; não é jogo pisar em cima do
adversário para ganhar um determinado lance ou fazer o gol; enfim, não é
jogo faltar ao respeito e ao bom senso com relação ao companheiro, ao
adversário, ao juiz e à torcida. O jogador que precisa apelar à destruição
do adversário para afirmar seu jogo está atestando sua incapacidade e
mediocridade enquanto jogador, o que o tempo trará à luz, mais cedo ou
mais tarde.
Do ponto de vista metafísico, coerente e apropriado à mobilidade do real,
não se pode prever o resultado final de um jogo de futebol. Há nele uma
teleologia aberta e imanente em que o jogador irrompe do seu tempo
ordinário, cotidiano e instaura uma outra temporalidade que o fará, ao
final, sentir-se melhor e mais pleno. Jogar futebol implica romper com a
mesmice do dia-a-dia, com nossos hábitos, pois exige que aprendamos a ser
criativos no tempo em que estivermos jogando. Em última instância, jogar
futebol exige que sejamos ‘todo’ – corpo, mente, sentimentos, etc... – num
determinado tempo o que F. Pessoa já expressou com relação à vida da
seguinte maneira: Para ser grande, sê inteiro: nada/ Teu exagera ou
exclui./ Sê todo em cada coisa. Põe quanto és/ No mínimo que fazes. E
também não foi por acaso que Nietzsche, em Zaratustra, comparou o sábio a
uma criança que joga e que brinca.
Na verdade, mesmo que não saibamos, estamos sempre jogando, ou seja,
fazendo apostas, pagando por elas e recebendo seus castigos e recompensas.
Desde que fomos projetados no mundo – pois nele nascemos a bordo, isto é,
começamos a jogar depois que o jogo já começou – estamos jogando com sua
cultura, com seus costumes, com suas regras, com suas utopias ou
simplesmente estamos sendo jogados por elas. Talvez nossa dignidade nasça
e se explicite justamente na arte de ser jogado e de jogar
concomitantemente o que Platão já havia declarado: “deveríamos viver
nossas vidas participando de certos jogos – sacrificando, cantando e
dançando – de modo a nos capacitarmos a conquistar o favor divino e
repelir nossos inimigos e vencê-los na luta”. Recordo aqui a afirmação de
F. Nietzsche: “No considerar o mundo um jogo divino para além de bem e mal
- tenho como predecessores a filosofia dos Vedas e Heráclito". Enfim, não
seria um grande contra-senso ainda afirmar que, em nome da paixão pelo
saber, a paixão e o prazer em jogar futebol nada teria a ver com o
filosofar? Antes, no ‘jogo da vida’, jogar e filosofar, não são verbos que
se convertem?
LUIZ ROHDEN,
além de torcedor do Internacional e peladeiro inveterado, é professor do
Curso e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS. É autor do
livro Hermenêutica Filosófica (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002), no
qual, em um dos capítulos, faz um estudo detalhado sobre jogo, e do ensaio
“Hermenêutica e pensamento sistêmico; o jogo como modo de conceber e
pensar a totalidade”, que se encontra no livro Dialética e Auto-organização
(São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003), onde relaciona a noção de jogo com
as teorias sistêmicas.
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