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eduardo galhardo
ouvir glass à leitura de benjamin
Há um conceito de Walter
Benjamin que, diferentemente do esperado, se dinamiza (mesmo
conceitualmente) numa aparente contradição e, por isso, muito aplicável à
modernidade – o de ruína. A ruína é comumente percebida como o fim de
qualquer edificação, a sua interrupção histórica, o aniquilamento de sua
memória, a força que se afirma pela destruição de tudo que é anterior e,
portanto, nem de oposição se poderia chamá-la. A dialética nela não seria
experimentada, já que não propõe um duplo que ao longo de uma trajetória
poderia ainda guardar algo, retido no binarismo lógico das negações (omnis
affirmatio est negatio) e dos contrários. Nessa concepção, a relação entre
ruína e construção é assimilada como ruína após a construção, a
necessidade dessa seqüência é evidente que se dê, já que não se poderia
pela lógica se erguer uma ruína. Contudo, Benjamin nos faz asseverar uma
sua dupla-face, ou uma referência comum entre ambos – ruína e construção
–, e, na fusão de forças que supostamente se embatem e de naturezas
distintas, nos revela uma contradição, uma tensão de oxímoros. O
desembaraço ou o fundamento desta teoria acontece no instante em que
reconceituamos a ruína e perguntamos: não se poderia erguer
uma ruína? E se pensarmos o reverso possibilitado pela mesma proposição
lógica latina (negatio gignit omnes affirmationes), não teríamos a partir
de algo que nunca se fez as possibilidades infindas de todo e qualquer
porfazer?
Uma vez que a ruína não existe sem uma memória anterior, um antecedente
(diz-se assim academicamente para delimitar o início de um conseqüente),
ela se caracteriza pela sua concatenação e imanência à construção. Não há
ruína sem a história da construção que a precedeu. A ruína consigna a
princípio a fase posterior e evolutiva de uma edificação. Na medida em que
a ruína é uma etapa progressiva da construção, ela deve ser arrostada como
um novo momento de um contínuo que começa, ou, talvez para não dar uma
origem, se dinamiza na seqüência cíclica: construção - ruína - construção
- ruína. Novamente e sem muito esforço, encontramos um novo paradoxo
intrínseco à suposta lógica linear: um “progresso cíclico”. Pois se
admite, sem grandes desconfianças, que da ruína de algo ainda pode
aparecer uma outra coisa. Esquece-se de se perguntar o que enfim
possibilita tal coisa. Será apenas uma possibilidade material (ôntica),
quando ali toda modelação formal desapareceu? Sem muitas indagações
metafísicas, continuemos, ao menos por enquanto, na experiência lógica que
nos permite prosseguir em uma fenomenologia da ruína (pois é método
aceitável pelas teorias e dele ainda ganho alguns leitores, enquanto me
livro da camisa dos loucos – me sinto um cachorro naquilo, só que ao invés
de ter o abajur na cabeça, tenho-o no corpo).
A ruína sustém, além de toda a história anterior a seu momento, um novo
período histórico. Portanto, a ruína não é uma intermitência ou
interstício cultural e histórico, mas o avanço para uma nova etapa na
memória que faculta um novo momento de reformulação e construção. Esse
novo tempo na memória é o que ouvimos musicificado no repertório do músico
Philip Glass.
No seu filme Koynisqatsi, vêem-se paisagens que, filmadas em alta
velocidade, revelam sua reformulação constante, sua metamorfose. O
filme-música começa com paisagens nas quais só se podem ver elementos
naturais inicialmente estáticos, são depressões rochosas que nos forçam a
pensar num estado anterior, cadeias de relevos com ângulos impossíveis,
explicáveis porém por uma ação do tempo com supostos agentes ambientais.
Em seguida, elementos naturais em movimento evidenciam a mudança, dunas
deslocam-se para novos lugares, ou somem para nunca mais aparecerem, a
configurar o novo deserto a partir do que ficou do antigo, sem nem um
material a mais, somente a mesma areia; nuvens convergem para um mesmo
ponto como carneiros em busca de seu pastor para depois tornarem-se o
próprio, a dar sempre nova fisionomia ao céu. Quando, após meia hora de
imagem e música, entra a “cultura” (o que chamamos construção na
geografia), a permear os nichos rochosos com cidades, pergunta-se (por uma
averiguação inevitável (já pelo mesmo exemplo das dunas)) de que material
é feita aquela cidade. A cultura arruína a natureza mediante a
transformação de elementos naturais em elementos culturais: uma montanha
pode virar uma cidade. Nesse momento do filme, enceta-se a vida da
cultura, no sentido daquilo que é construído pelo homem, a denotar uma
intensa crítica, que poderia ser dita, fundada na confusão entre o
movimento de transformação, próprio da ruína, e a destruição. Essa
confusão a acabar com a relação dialética entre ruína e construção, a
pô-los na mesma força poética do tempo e da memória.
Lá, são sobre velhos fundamentos, reformulados, que novos templos para
novos cultos e ritos se erguem. A ruína, assim, não retém e, todavia,
possibilita a criação; se se pode chamá-la de nada, é um nada fértil. Em
toda construção espera uma ruína; haja vista ela ser uma virtualidade
constante e lactente em todas as edificações, seja cultural, seja
(in)espontânea.
Se ruína e construção são um contínuo a se desdobrar sem interrupção,
então a ruína é, antes de qualquer aparente impressão ou pormenor, um acto
construtivo, uma construção - não do que antes era, mas sumamente de uma
outra memória que, embora nova, possui e sustém a anterior.
Glass e os minimalistas arruínam a música, a reduzi-la à mínima parte
melódica, musical, é costurá-la novamente, a refundi-la em nova música na
qual cada partícula rítmica reporta e identifica o todo como música – de
mínimos fragmentos aparentemente não-musicais constrói-se a tessitura para
novamente ser destruída e retecida. Nesse sentido, na música, o mínimo
essencial (como gosto de conceber o minimalismo) é um espécimen caro de
arte em que encontramos esse pensar de ruína benjaminiano.
Ninguém experimentou com melhor consciência a ruína que os minimalistas.
Benjamin nos secunda a pensar no minimalismo não como um movimento
antimúsica e inaudível, mas como a afirmação da música em seu menor á-tomo
musical, que há em todo som até o silêncio, esse é a partir do que ela se
constrói – a sua ruína.
Para um minimalismo das Imagens (para terminar, uma digressão sobre
arte)
Ainda uma proposta digressiva (mas ética), para após e além desse breve
texto, é pensar o que está em debate quando se diz memória. A ruína, ou o
mínimo, é portadora de uma memória. Mas tal memória não se constitui
historiograficamente; como se configura a análise de estudiosos, os
historiadores tradicionais, que encadeiam seus acontecimentos a cerzi-los
com um princípio de causalidade e, consecutivamente, tendem à exclusão, já
que se baseiam na seleção de factos. Melhor dizer que trata-se de um
passado e não de uma memória, nesse caso. Um exemplo: um fotógrafo de fim
de semana costuma, após revelar um filme, se preocupar em verificar
aquelas polaróides que foram delidas por sua inexperiência para, em
seguida, arrolar as que devem ser aproveitadas na feitura de seu livro de
memórias passadas. O resultado dessa coleção é a eliminação de algumas
situações inconvenientes ou, para ele, desnecessárias; na verdade, das
diferenças existentes em cada uma mesma coisa que nelas aparecem, as
mínimas partes que possibilitavam os indetermináveis ângulos e fisionomias
retratadas. Essa compilação forma o passado fixo e fetichizado, sem as
possibilidades de rever no passado o que ainda não foi visto e não passou.
Daí esse fotógrafo ser um amador de fim de semana e não um artista que
pode vislumbrar no seu trabalho a inexausta memória de sua arte, que
conta-lhe de modo sempre novo suas imagens, a torná-las também imagens
futuras, sem eximir-se do que ela é, foi e o que será; nunca um passado,
porém um devir, como uma ruína.
EDUARDO GALHARDO nasceu em 1957 em Loriga, Portugal. Viveu 5 anos em Verndale, Minnesota, onde
tornou-se fã de J.Cage e da sua música. Após, veio para o Brasil, para a
família imigrante, e vive há 22 anos retirado nas Minas Gerais, na cidade
de São Vicente Férrer. Formou-se em Filologia Portuguesa, agora chamada
de Letras, na Universidade do Porto (FLUP). Vive de dar aulas de filosofia
aos irmãos maristas da cidade e de língua no único colégio particular da
cidade. Publicou o seu livro de crônicas Da Serra às Minas em 1988 pela
Mineira (edição de prêmio) e o de poesia Urim e Tumim em 1999 pela
Carlini
& Caniato. Prepara actualmente um livro de pensamentos chamado de
coisas.
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