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marcus motta


tal homem da simples leitura

(terceira parte)

 


 

A simples leitura, por si mesma, está no geral, e sob este aspecto aplica-se a todos. O que pode, de outra parte, exprimir-se dizendo que existe em cada um de nós. Descansa imanente em si própria, sem ter nada de exterior que constitua seu movimento, sendo ela própria o movimento de tudo que lhe seja exterior; e desde que se tenha integrado nesse exterior não vai mais além. Tomada como ser imediato, sensível e pouco psíquico, a simples leitura é o tal homem que possui o movimento no geral da segunda vida; sua missão reside em exprimir o ser efeito disto constantemente. É esse o fim supremo destinado ao homem e sua existência; é isso que tal homem ensina. A simples leitura é participante então da idêntica natureza da eterna ventura do homem, a qual constitui a cada instante, e para todo sempre à sua simplicidade; pois não existiria contradição em dizer que ela pode ser desprezada visto que, desde o instante em que ela, como fim supremo e natureza eterna, está em todos; ao passo que está em todos não quer dizer perder-se em cada um de nós, porém manter-se na esfera superior da simplicidade de cada nós que cada um de nós simplesmente recita. A simples leitura é exatamente aquele paradoxo ao qual tal homem se acha inclinado sobre o geral da vida e sempre de tal modo que, diga-se, é ele depois de ter estado inclinado sobre o geral da vida, conseguindo ser imediatamente, graças ao geral, efetuar-se numa relação absoluta com o absoluto da vida. Esta posição foge à mediação que se realiza sempre em virtude do geral da vida. Ela é e conserva sempre um paradoxo inacessível ao pensamento intelectualizado. A simples leitura é este paradoxo; se assim não acontecer, nunca houve ler simplesmente; por outros termos, tal homem é um blefe intelectual. Que tal homem enfrente o risco de confundir o paradoxo com uma crise intelectual, estou de acordo, porém não há razão para sugerir ocultá-la. Também é certo que o sistema intelectual leva a rechaçar o paradoxo da simples leitura, mas isso não é o bastante para falsear a leitura como algo a se integrar num sistema; é antes melhor confessar que os intelectuais não a possuem, deixando aquele tal homem a possibilidade de dar provas alegres que facultem compreender o paradoxo.


Através do seu ato simples, tal homem, foi além do estágio moral da leitura; tem, para além disso, um telos efetivo e dado, sua vida recriada, diante do qual suspende esse estágio. Pois eu gostaria de conhecer como é possível reconduzir o seu procedimento à leitura metódica, como é possível descobrir entre o seu movimento e aquele tipo de leitura outra relação que não aquela de tê-la desconsiderado sem saber que o fazia. Não está, portanto, agindo para a salvação da leitura, nem para defender a idéia de outra, nem mesmo para apaziguar a vida que ela carrega. Se me fosse possível evocar a alegria encantadora da audição de tal homem, esta teria como objetivo tal homem, cujo movimento é assunto efetivo de ler simplesmente. Desse modo, ao passo que um intelectual é grande pela sua leitura, tal homem o é por uma virtude inteiramente simples de ler.


A leitura é o geral e, assim sendo, também a vida. Conseqüentemente, existe razão em afirmar que todo o dever da leitura é, em sua essência, dever para com a vida; não se pode, porém, acrescentar mais nada. O dever estabelece-se como tal quando é referido à vida, porém, no dever propriamente dito, não se entra em relação com ela, porém com o mais próximo de cada um de nós, os nossos eus. Se afirmo, conforme a relação, que é um dever amar à vida, dou ao enunciado uma singela tautologia, sendo que aqui se toma a vida no sentido inteiramente abstrato de leitura, a simplicidade concreta. Toda existência da humanidade arredonda-se então nisso (é o que de fato proclama tal homem), assumindo a forma de uma esfera de vida, da qual a simples leitura é às vezes o limite e às vezes o conteúdo. A vida torna-se um ponto visível e nem precisa do seu nevoeiro sem consistência. Se nada existe incomensuravelmente na existência humana, se o incomensurável que nela há surge por uma acaso simples, do qual o que resulta é a simplicidade, o movimento “litúrgico” da vida trata-se, assim, para o tal homem, de se livrar de sua interioridade, para expressá-la em alguma coisa exterior. O paradoxo da simples leitura consiste em que existe uma interioridade ilimitada em relação à exterioridade, e esta interioridade, convém notá-lo, não se assemelha à interioridade comumente aceita, é recriação da simples leitura. É necessário não esquecer. A vida recriada deu-lhe a permissão pura e simplesmente. Quando a vida procede deste modo é ridículo negar que a simples leitura está como derradeira origem da existência. Nesse sentido qualquer intelectualidade pode ter razão quando afirma que não é preciso recorrer ao simples. Nada, porém, a autoriza a tomar a palavra com tal significado. A simples leitura é antecedida pela vida que se oferece apenas lida simplesmente e, assim, arranja sua sublime desfiguração por atração pelos outros e pelas coisas. É preciso que tal homem, portanto, se tenha esgotado na simples leitura para atingir o ponto em que a vida pode fazê-lo uma segunda vez, finita por completo nessa outra interioridade. O paradoxo da vida está, pois, em que tal homem está acima do geral da leitura, de modo que, para lembrar uma distinção nunca usada, ele determina sua ralação com o geral da leitura como referência ao absoluto da vida, e não a relação ao absoluto como referência ao geral da vida. Nessa condição de movimento, quando ele afirma que ama a vida; jura algo que é diferente daquilo que denominamos por viver amando. O amor à vida pode levá-lo a dar o seu amor com relação à proximidade das coisas, homens, idéias e objetos, a expressão diversa daquilo que do ponto de vista da leitura intelectual é o dever da pouca atenção.


As palavras acima parecem reconhecer suas imbricações de terror, porém acredito que podem ser compreendidas sem ter, com isso, conferido a coragem de colocá-las na prática comum de nossos dias. É imprescindível que se tenha a lealdade de reconhecer o que é a simples leitura de tal homem, de dar testemunha de sua grandeza humana, ainda quando se não possua a coragem de nos conformamos à sua existência. Dessa maneira, nos privamos do bem que desse encantador relato nos pode vir, pois, em certo sentido, encerra um consolo para nós que não sentimos a coragem de empreender a ereção daquela simplicidade. Não desejo relembrar neste ponto a distinção ao qual estamos acostumados a fazer entre saber ler e ser letrado, não porque julgue ter algo de novo a juntar, mesmo que seja a testemunha de tal homem, porém isso me pareceria egoísmo, o que não convém aqui. Ao contrário, se julgo a sua tarefa como o paradoxo da simples leitura, compreendo-a, como se deve compreender um paradoxo.


É necessário ainda tentar ver como tal homem ouve os versos Caeiro. Escuta: e é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre ... /e o mais pequeno som, seja do que for /parece falar comigo. Observemos um tanto mais próximo à alegria da escuta destes versos. Tal homem renuncia a si próprio para dar expressão a alegria que sente; tal homem renuncia a ler intelectualmente para transformar-se em tal homem. Já ficou dito: tudo está na dependência da atitude que se adota. Se acreditamos imensamente fácil em não querer supor tal homem, pode se estar certo de que não é este tal homem; pois alegra-se livre e assim sabe que pertence à simples leitura. Sabe que é belo ser o ouvinte, que traduz, por assim dizer, o efeito auditivo que é, elegantemente; sabe o quanto reconforta tornar-se visível audível consigo mesmo; sabe o quanto é belo ter renascido como uma escuta que tem naqueles versos sua pátria, a sua acolhedora segunda chance; sabe, porém, igualmente, que acima dessa alegria, serpenteia um atalho solitário; sabe que pode ser horrível ter tido uma segunda chance de vida aos olhos alheios, andar sem encontrar um só companheiro de audição; sabe perfeitamente onde se encontra e de que modo se comporta em relação aos intelectuais. Para eles, é doido e não pode ser entendido por ninguém; e, entretanto, doido é o que se pode dizer menos; se não o olham desse ângulo, consideram-no então hipócrita, e tanto mais cruelmente quanto mais elevado se foi à aldeia de Caeiro ouvindo os versos do Canto VIII. O homem da simples leitura conhece o entusiasmo que oferta quando se apresenta como é. Quanta audácia é preciso para tanto; porém sabe que existe nesse preceder uma certeza que se consegue ao se movimentar ouvindo simplesmente; sabe que seria estupendo se todos ouvissem e que com isto se enobrecer um pouco mais.


Tal homem creu na simples leitura; eu apenas sinto hesitar a minha e induzo-a ser concubina do meu pensamento. Ele possui a paixão precisa para reunir na simples leitura toda a vida que se rompe nela; na segurança de que realmente ama sua segunda chance com toda a sua alma. Em outras palavras, tem paixão bastante para mobilizar, num átimo, toda essa certeza e de tal modo que nada perde das coisas que se põem diante de seus olhos e as ouve. Ele apenas dispõe, em tudo e para tudo, de si mesmo; aí está a alegria da situação. A maioria dos homens vive numa obrigação, que dia após dia, evitam cumprir; porém também jamais atingem essa concentração apaixonada, essa consciência energética da simples leitura.


Tal homem é, como tal, a simples leitura. Definido como sendo o ser imediatamente sensível da leitura, o é por ser visível simplesmente. Sua missão que lhe corresponde consiste, pois, em se livrar de todo e qualquer segredo para se dar a conhecer na absurda evidência do que é. Nunca deseja ficar escondido, já que cometeria um pecado contra a sua segunda chance e estaria em crise da qual só poderia sair se ocultasse em si mesmo.


Aqui estou outra vez no mesmo ponto. Se não existe em tal homem um interior escondido, e justificado pelo fato de ele ser homem, a sua atitude sustenta-se por instâncias do audível. O que quer dizer que possui um interior completamente exteriorizado e, portanto, visível. Eis-me diante do paradoxo irredutível da simples leitura, que não descansa num tipo de fato de a individualidade, com tal, estar posta acima do movimento simples de ler, que é a forma expressa em tal homem.


Eu, em troca de mim mesmo, lá estive ausente ano após anos. Nem sempre de frente aquele reflexo, pois, como a toda hora havia muito de mim, gente como eu refugia-se no guardanapo da dor. No começo, fuçava tal homem. Entremeado de rabiscos e desenhos na cauda dos versos, quando eu lia o Canto VIII do Guardador de Rebanhos. Com o tempo virou-se de frente e recitou. Tive a impressão de não mais poder colocar em questão a sua existência; ocupava todas as circunstâncias do espelho. Não posso mais me olhar sem o vê-lo inteiro e alegre a recitar os versos de Caeiro. Custa-me muito dominar minha ansiedade no instante em que ponho a descrever, com o maior cuidado, o aparecimento completo de tal homem no lugar do meu reflexo; inclusive hoje, não obstante, sinto-me inquieto. Estou tratando de serenar-me, dizendo-me que posso ter tido algum ganho com aquele fenômeno e, mesmo assim, a inquietude me invade e não tenho como descrever mais, embora eu não tenha nem mesmo iniciado.

 

 


MARCUS MOTTA é escritor e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde atua no programa de pós-graduação em literatura portuguesa e em história da arte. Concluiu, em 2001, o pós-doutorado na Universidade Lusíada em Teoria da Arte. É autor de Desempenho da leitura - sete ensaios de literatura portuguesa (7Letras, 2004) e Antônio Vieira - infalível naufrágio (Editora FGV, 2001), entre outros. Dedica-se, principalmente, a duas linhas de pesquisa: Arte Contemporânea e Patrimônio Cultural; e A questão de artisticidade na arte de Fernando Pessoa: perfeição abstrata e cartografia heteronímica.
 


 

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