
sacolinha
manteiga de cacau
Foi quando Mendel tinha 18
anos que adquiriu essa mania de ser o que não é.
Estava vivendo um momento de decisões e conflitos. Escolher a carreira que
iria seguir, se iria ou não ser pagodeiro, artista, modelo, isso e aquilo
e aquilo outro estavam no seu rol de decisões.
Aconteceu porque Mendel arrumou emprego numa revistaria e quis saber o que
tinha de tão importante nas revistas que mais eram vendidas ali. E foi
folheando as revistas semanais que pegou gosto pela coisa, que começou a
assistir às novelas e através delas é que achou o seu objetivo.
Iria ser perfeito. Ser aquilo que a sociedade queria. Era esse o objetivo
de sua vida.
E por onde começar? Indagava para si mesmo. De repente, um sorriso
iluminou sua face. Isso mesmo, começaria pelo corpo, ainda era jovem e
sabia os perigos que o aguardavam quando chegasse aos 30.
Cuidaria bem das unhas, sim, e dos cabelos também. O corpo teria que se
manter firme o tempo todo, inclusive a porra da barriga que trai qualquer
ser humano.
A pele? Vixe Maria, essa então é que deveria cuidar, deixá-la sempre
hidratada, mas nada que um bom creme não dê jeito. É afro-brasileiro, mas
gosta de ser chamado de moreninho e marrom bombom, a cor do bronzeado.
Assim é melhor.
Dos dentes ele já tinha um certo cuidado, mas depois de todas essas
idéias, o cuidado dobraria.
A perfeição, seu único objetivo, iria alcançar a qualquer custo, mesmo sem
saber o que é ser perfeito, iria correr atrás dela. Assim teria de ser.
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Mendel teve diversos problemas na adolescência, um deles foi a perda
simultânea dos pais num acidente de carro. Os caixões tiveram de ser
cremados, pois os corpos eram apenas massas com pedaços de vidros do
pára-brisa do que antes era um carro.
Durante alguns meses após a morte dos seus pais, o menino de 13 anos
precisou passar por um tratamento psicológico. Pra isso ficou alguns meses
internado numa clínica.
Depois que saiu, foi morar com sua tia e continuar os estudos.
Era difícil sua socialização, por isso quase nunca era visto em rodas de
amigos. Por ser tímido e não ter muitas amizades com as meninas de sua
idade, sofreu muito quando os colegas começaram a chamá-lo de “viadinho”.
Outras vezes tinha problemas por fazer xixi nas calças em meio à sala de
aula.
Quando terminou a fase escolar, sua tia estava passando por problemas
financeiros, e foi aí que Mendel começou a trabalhar. Entrou e saiu de
vários empregos, e em todos eles tinha problemas.
Conseguiu se manter em uma revistaria, onde o dono era um primo seu.
Um ano de emprego, tudo andava bem, ou quase. Na parte da manhã e da tarde
ele se ocupava em meio a vendas de revistas, jornais e cigarros na
revistaria. De noite ele não tinha o que fazer, a não ser comer, assistir tv e dormir.
Enquanto isso, jovens de sua idade iam aos estudos, faculdades, cursos
técnicos, cursinhos e etc. Quando não, saíam para as baladas e para o
namoro. Só não ficavam parados.
Assim, Mendel percebeu-se excluído do convívio da sociedade. Estava
atrasado, precisava aspirar a um ideal, fosse ele qual fosse, teria que ter.
A angústia já havia atingido seu auge.
Então, idealizou seu objetivo.
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Mas o que é ser perfeito, meu Deus?
Mendel não sabia, e nem queria saber que não sabia. Deixou a indagação de
lado, pois o mais importante é que agora tem algo pra lutar.
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Nas primeiras semanas sua tia estranhou seu novo comportamento, pois o
jovem foi se desfazendo de muitas coisas. Inventou uma limpeza em seus
pertences, limpeza que durou quase um mês e que só era feita nas suas
folgas, porque de noite ele fazia outras em seu corpo, tipo arrancar pêlos
das sobrancelhas, fazer as unhas, alinhar o pequeno bigode, espremer
cravos e espinhas, massagens nos pés e tirar os pêlos encravados nas
pernas.
As revistas pediam mais.
Entrou então na academia. Duas horas por noite era o suficiente. Agora
mais do que nunca precisava cuidar da alimentação. Bastantes legumes e
frutas. Fritas, congelados e enlatados nem pensar, só vitamina e
carboidratos.
Comprou diversos produtos de higiene pessoal e alguns que não havia
necessidade, igual à bateria de cremes: para enxaguar, pentear, hidratar,
relaxar, ar, arr, arrr... Putz, tinha muitas coisas agora, o espaço
existente na casa de sua tia ficara pequeno. Pequena também ficou sua
privacidade. Não podia demorar no banheiro, que os parentes caíam em cima.
A conta estava vindo alta demais e era necessário economia.
Banho de oito minutos?
“Isso não dá nem pra lavar os cabelos”.
E pra escovar os dentes?
Eram no mínimo uns quinze minutos: “choq” “choq” “choq” “choq”, cuspir,
enxaguar e “choq” “choq” “choq” “choq” e depois fio dental pra certificar
a limpeza.
Devido a sua meticulosa organização e empenho, e também porque era parente
do dono, recebeu escondido dos outros funcionários um aumento salarial.
“Eita, que beleza”.
Alugou uma casa de três cômodos no mesmo bairro da sua tia, e ali passou a
morar sozinho, com mais espaço e privacidade.
Agora passava horas a se cuidar. Olhava no espelho, mexia aqui, penteava
ali, passava um creminho aqui e... dava um enorme suspiro.
Na casa nova, suas coisas ficavam do jeito que ele deixava. De manhã, antes
de ir trabalhar, arrumava a cama, preparava o café cheio de vitamina,
lavava as louças, secava, e até o banheiro ficava sem uma gota d’água no
chão. Tudo tinha que ficar no lugar, no seu devido lugar. E aos poucos ele
ia conseguindo.
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Ainda não estava perfeito, faltava algo. Começou então a procurar novas
amizades. Novas amizades?
Sim. Precisava de pessoas iguais a ele, para trocar experiências,
conversar e sair. Sintonia. Era isso.
Foi para o mundo virtual e, nas salas de bate-papo, encontrou várias
amizades, e com elas começou a freqüentar shoppings e eventos de moda,
coquetéis e lançamentos. Arrumou até namorada. Que maravilha.
Contratou uma professora de português para aprender a falar bem e sem
erros, queria apenas o básico: “Pra eu ir”, “Vou ao”, “a gente vai”.
Enfim.
Estava progredindo cada dia mais. Aquela solidão da época em que não era
ninguém foi se embora.
“Xô, sai de mim que agora sou outro”.
Chegou a viver mesmo alguns momentos de extrema felicidade, parecia que a
meta estava sendo alcançada. E esses momentos ocorriam quando ia sair com
a namorada. Depois de todos os preparos exagerados, ele dava seu toque
derradeiro. Chegava bem pertinho do espelho e passava o protetor labial,
isso além de hidratar, dava um leve brilho em seus lábios. Esse foi o
único produto que ele não deixou de usar depois da mudança. Pelo fato de
Mendel ser da raça negra, sofria muito em época de frio ou tempo seco,
pois as pernas e os cotovelos ficavam russos e os lábios necessitavam de
hidratação. Com isso resolveu fazer da necessidade um hábito, e eis então
o toque final. Aí, era só olhar para a roupa, tirar alguns pêlos de lã e
fios de cabelos, passar as mãos retirando algo não visto e estava tudo
certo, quase perfeito.
Caso tivesse deixado alguma coisa fora do lugar ou algo para fazer, ficava
apreensivo e não curtia bem a balada. Caso contrário era só felicidade.
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Lendo até aqui, o leitor pode estar com uma visão errada deste personagem,
os machistas, então, devem achar que Mendel gosta é de outra coisa, que essa
história tá muito mal contada, seja do ponto de vista literário ou que o
autor esteja omitindo algo.
Não, Mendel não tem jeitos femininos. É homem, a única diferença é que é
vaidoso demais.
Assim passaram-se anos e Mendel sempre atrás do seu objetivo. Trocando de
namorada o tempo todo, pois em uma faltava isso e na outra aquilo. Comprou um
carro semi-novo e vivia limpando, levando ao mecânico, ao lava-rápido e o
automóvel sempre com alguma coisa. Mudou de emprego e de casa várias
vezes. Mendel estava sempre atrás do completo.
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Às vezes chegam uns momentos em nossa vida que paramos pra refletir sobre
nossas atitudes e fazer um balanço das nossas conquistas. Momentos em que
até nos sentimos valorizados, mas cansados de tudo e de todos. Esse momento
chegou na vida de Mendel aos 30 anos. Estava desanimado. Parecia que nunca
ia chegar à perfeição, pois sempre faltava alguma coisa. Consertava aqui,
quebrava ali, se embelezava hoje, amanhã já era. Estava mais angustiado do
que antes. Ficou mesmo doente, com mania de beleza e aquilo parecia ser
pra sempre.
Revendo suas revistas, rasgou algumas, queimou outras e aquelas outras
guardou.
“A vida é mesmo um saco, a gente luta e se dedica atrás de uma coisa e
chega uma hora que o desânimo vem e toma conta”.
Pela primeira vez depois da mudança, adormeceu com o quarto todo
bagunçado. A cama estava rodeada de revistas e Mendel dormiu ao meio.
Sonhou gostoso. Sonhos que não lembraria quando acordasse porque eram
perfeitos demais para o ser humano.
Neste dia ele acordou e, não sabe se era real ou se ainda estava sonhando,
mas finalmente ele havia chegado à tão sonhada perfeição. Incrível, tudo
no lugar, tudinho sem erro. As revistas arrumadas, a casa todinha
certinha. Até a poeira que ele costuma ver quando os raios de sol invadiam
seu quarto pela fresta da janela, desapareceu. Seus dentes já estavam
escovados e seu corpo banhado dava gosto de tocar.
Era casado, a esposa era maravilhosa e os dois filhos eram perfeitinhos,
do jeito que ele queria. Tinha um bom emprego, um bom carro, um bom isso
um bom aquilo. Tudo seu era bom dentro do perfeito.
Então abriu a janela, pegou o protetor, deslizou nos lábios e sorriu.
Olhou o horizonte e se sentiu lá, feliz com seu objetivo alcançado. Isso
era a perfeição.
Minutos de gozo e Mendel olhou pra dentro de si, depois pra fora para
contemplar o restante. Foi aí que fez a seguinte pergunta:
- O que eu vou fazer com tudo isso agora?
SACOLINHA (ADEMIRO ALVES
DE SOUZA),
escritor e agitador cultural paulista, nasceu em 1983 e só foi à escola
aos 8 anos. Ex-cobrador de lotação, ex-empacotador de supermercado,
descobriu o prazer da leitura aos 18 anos e, aos 20, os desprazeres da
escrita. É autor de Graduado em marginalidade (Scorttecci), de 2005, e
85
letras e um disparo (Global), de 2007. Tem no prelo Estação terminal.
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