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claudia roquette-pinto


diários do graffiti III



 


Visibilidade imediata

No mundo contemporâneo, a quase totalidade da cultura jovem urbana gira em torno das idéias de visibilidade e fama. Se isso já se aplica entre camadas da elite e formadores de opinião, o que dizer, então, dos jovens das populações carentes? Um dos apelos mais fortes para a entrada de um adolescente no tráfico de drogas, segundo o sociólogo Luiz Eduardo Soares, é o fato de que, ao tornar-se criminoso e portador de uma arma, aquele jovem, antes solenemente ignorado pela sociedade, passa a adquirir, aos olhos desta mesma sociedade, uma visibilidade tremenda, imediata. A arma torna-se o seu passaporte para a existência.

No universo do graffiti, as questões de visibilidade e anonimato se opõem e se complementam: por um lado, os grafiteiros geralmente não podem (ou não querem) se expor. São um pouco como bandoleiros: seus rostos raramente aparecem nas revistas. Em geral, preferem ser fotografados de costas, ou com a camisa por cima do rosto, só com os olhos de fora. Por outro, é inerente ao graffiti, desde o seu nascedouro, a intenção de seus praticantes de adquirir visibilidade: ganhar o respeito e a consideração de seus pares.

B:   -  Lá fora o suporte é trem. Tem neguinho que pinta 100 trens num ano e só pinta 2 muros. Os caras que vieram para cá ano passado não pintam muro, pintam só trem.

C:   -  É, mas quem pinta trem, aqui, morre, né?

G:  - Corre o risco de tomar um tiro. O grafiteiro é mais fácil pedir desculpa do que autorização.

Como observa a psicanalista Iracema Jandira Oliveira da Silva, da área de psicologia clínica, e que trabalha com jovens infratores em São Paulo, palavras como considerar e considerado, muito freqüentemente usadas como gíria entre esses adolescentes, expressam “uma busca de reconhecimento de seus valores pessoais, bem como que a cidade serve de palco privilegiado onde se desenrolam suas ações. (...) É nela que [o adolescente] opera sua magia distintiva, enquanto representa uma multiplicidade de papéis (...) Não lhe basta pintar o muro, ele quer que a sua produção e ele próprio possam ser reconhecidos e admirados por todos os passantes”. (1)

Para um menino que nasce e cresce na periferia, com muitos sonhos na cabeça e quase nenhuma chance de realizá-los, a pichação pode se tornar um canal de atuação. Correr riscos, sentir a adrenalina de subir nos lugares mais altos, superar todos os outros e deixar sua marca. Engajando-se nessas ações heróicas, o adolescente passa a ser reconhecido na sua comunidade. É admirado, consegue prestígio com as garotas, passa até a ganhar bebida de graça. Pratica uma espécie selvagem de resgate da auto-estima.

- O que rola é que o spray é muito imediato. Desde quando se faz um grafite vandal tem que pintar rápido, e tem sempre o risco de sair no dia seguinte. Tem uma abstração que você sente, uma adrenalina, é maneiro e me estimula. É um risco, mas de certa forma, é uma parada meio abstrata, não dá para sintetizar com as palavras.


Crews e Tags

Uma crew (literalmente, tripulação; o equivalente a coletivo) “é um grupo de malucos que trabalham juntos com um objetivo: se encontrar e cobrir toda a cidade”. As crews são formadas por amigos unidos por laços de confiança, “um bando de irmãos, um ligado ao outro pela lei da rua”. Os grafiteiros podem pertencer a mais de uma crew ao mesmo tempo, e ser parceiros em muitas delas. Assim, é comum uma peça levar a assinatura de mais de uma crew. Devido à grande mobilidade dos grafiteiros, as crews transcendem os limites territoriais das gangues de rua e podem contar com membros de toda parte da cidade, refletindo assim o caráter multi-racial do graffiti. Há um forte senso de comunidade dentro de uma crew, e seus membros rejeitam aqueles artistas que querem se destacar sozinhos.(2)

Princípios como lealdade e humildade são altamente valorizados. Além disso, as crews configuram-se como grupos anárquicos, sem liderança estabelecida. A cada vez que um coletivo faz uma parede, o trabalho de um se mistura com o do outro. Para um leigo, é muito difícil saber onde um termina e o outro começa - a não ser através das assinaturas.

O nome está no centro de toda a arte do grafite. O grafiteiro geralmente abandona seu nome de batismo e adota um nome novo - uma identidade nova. Ele pode criá-lo, pode herdar o nome de um grafiteiro mais antigo, pode inventar um nome que seja parte de uma série. Alguns nomes são escolhidos segundo as possibilidades estéticas da combinação de letras que contém, outros, por seu humor ou por criarem um trocadilho. O tag é uma assinatura pessoal estilizada. A maioria dos artistas mantém o mesmo estilo de tag por toda a sua carreira, já que ele se torna uma espécie de logotipo instantaneamente reconhecido por outros grafiteiros. (3)

Também há uma ética por trás da estética do graffiti. Os grafiteiros vêm das ruas e trabalham nas comunidades. Como o coletivo Nação Graffiti, por exemplo. Formado por 14 grafiteiros que se conhecem há vários anos e, nos últimos três, dividiram um estúdio localizado num modesto sobrado na Rua dos Inválidos, centro do Rio, tem entre os seus integrantes os grafiteiros Bragga, Ment, Gais e Machintal, entre outros, e participou de diversas ações em comunidades, como o projeto Tempo Livre, em parceria com o AfroReggae, SESC e UFRJ, que rodou por várias cidades do interior do Rio, oferecendo atividades como circo, teatro, esportes - além, é claro, do graffiti.

Outro projeto, o Conexões Urbanas, começou com oficinas de DJ e graffiti em Vigário Geral, transformando-se depois em um festival com mais de 20 edições em diversas comunidades. Em 2003, pelo Santa Tereza de Portas Abertas, fizeram uma oficina no Morro dos Prazeres, que mais tarde transformou-se em evento, no qual, a cada ano, renovam a arte na muralha de entrada no morro.

No caso do graffiti, além da busca da visibilidade, que parece ser a motivação inicial de todo pichador ou grafiteiro _ e não é a toa que, frequentemente, utilizem termos como “ser considerado”, “ganhar consideração”, com o sentido de ficar famoso, inscrever seu nome por toda a cidade _ existe também um outro lado da questão. O qual se manifesta na escolha (não tão rara), de parte de diversos artistas, por pintar em lugares remotos ou de difícil acesso, como superfícies degradadas, nos esgotos (caso dos anteriormente citados San, artista espanhol e Zezão, paulista) ou em cidadezinhas perdidas da Bahia, como Izolag.
 

 

Morro do Gato, Salvador
 

Na frente do muro, alto e cinza-chumbo, que separa alguns barracos do asfalto e do movimento da rua, um moleque de aproximadamente 10 anos brande uma pistola e encara os transeuntes com olhar desafiador. A seu lado, caminha um homem meio careca, um pouco curvo, munido de um alto-falante. Entre eles, dois outros homens se postam, um dos quais, no meio da confusão, não conseguimos discernir completamente. O segundo levanta o braço direito, na mão uma granada prestes a ser jogada na rua. “Estão todos dançando conforme o comando”, diz a frase, pichada pelo próprio artista, ao lado de mais um de seus trabalhos.


Embora tenha nascido no Rio de Janeiro, Izolag morou desde os 7 anos de idade no interior da Bahia. Já adulto, mudou-se para Salvador, onde viveu por 3 anos, cursando Belas Artes. Há pouco mais de seis meses, aos 24 anos, resolveu abandonar o grupo que tinha montado com amigos para dar início a um novo ciclo de trabalho. Inverteu o nome com que costumava assinar, Galosi, e passou a trabalhar mesclando o stencil com a colagem e o graffiti . Sua pesquisa iconográfica inclui fotos de crianças, jovens e idosos, a maioria oriunda das classes menos favorecidas. Costuma pintar em lugares remotos, como becos e recantos esquecidos dos bairros pobres de Salvador. Ou em cidadezinhas quase perdidas no mapa, no interior da Bahia. Seus graffitis são recheados de influências, que vão desde pesquisas tipográficas (devido à sua interação com as ruas) ao cinema e à música.


As figuras de Izolag aparecem quase sempre assim: encarando o espectador, com olhos de desafio, ameaça ou cumplicidade, interpelando os passantes, convidando ao diálogo. No bairro de Semitério de Elefantes (sic), no vão vazio de um muro onde termina o acabamento de tijolos e começa o reboco descascado; em Carlos Gomes, na parede de um beco, abaixo da propaganda de uma fabriqueta de calçados; no Rio Vermelho, num cantinho de meia-parede, entre detritos espalhados pelo chão, um menino todo ocre, com a metralhadora atravessada nas costas e os braços cruzados me olha nos olhos; outro, inteiramente azul, acocora-se sobre o rodapé como quem momentaneamente descansa, ou se prepara para o salto; uma garota, ainda bem pequena e meio apagada, define-se apenas por seus contornos cor-de-laranja e nos espreita, protegendo-se, talvez, de alguma ameaça. Penso em brincadeiras de pique-esconde, penso em tocaias, penso até mesmo em aparições fantasmagóricas de espíritos locais – os personagens de Izolag não estão imóveis. Eles saltam dos muros para dentro do nossos olhos, nos provocam com seu páthos, literalmente nos assaltam.

                                           

 

CLAUDIA ROQUETTE-PINTO é escritora e tradutora carioca. Formou-se em Tradução Literária pela Puc-Rio e dirigiu, durante cinco anos, o jornal cultural Verve. Tem quatro livros de poesia publicados, tendo ganhado o Prêmio Jabuti de Poesia, em 2002, com seu livro Corola. Seus poemas foram incluídos em diversas antologias nacionais e internacionais, e em várias revistas brasileiras e estrangeiras.

 


 

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