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carlos emílio c. lima
migque
- Você - uma ondulação na voz
tentando atrair alguma coisa perdida e indivisada no céu quase
transponível e certeiro além da vidraça alterada pela brisa dura - não vê
que ele é uma mulher ?
- O quê ?
- O prédio em que você morava...
E fomos à janela lateral do terraço e vimos, no outro lado da rua ,de
fato, estampejadas, as marcas, as estrias da pele do corpo todo da
gigantesca pessoa, infiltrações viventes ,nódoas crescentes e bafejadas ,
as paredes do prédio colorindo-se aos poucos com imensas pastilhas
pensantes, latejadas, num ritmo retalhado e brusco de tetas loucas ,
multiplicadamente abstratas imbuídas no concreto, um grito de ângulos
fortemente e torneados ao contrário , água fortíssima autogritada para
dentro, socada.
-Veja. bem ali, naquela parte mais escura, azulada e úmida, é o sexo dela,
o reboco, as pastilhas, tudo parece mais fofo, focado. Ocupa o espaço
médio de quatro andares.
- É mesmo: naquela área as pessoas não conseguem dizer as frases de modo
convexo, as palavras vêm feridas, ninguém se concentra, perdem-se as
coisas. Não se consegue sonhar: as imagens dos sonhos são puxadas, pêlo
caído. Tem um quarto no andar do meio, naquela janela logo ali, a oval,
você pode ver que é um armazém de pernas de manequins de madeira, somente
pernas empilhadas e desconectadas. Maniacamente empilhadas ali, e todas de
um único e ameaçador tamanho. Pernas fêmeas brancas, e somente de um lado
do corpo, ou uma mistura insana dos dois lados, o direito e o esquerdo,
numa superposição instantânea. Ainda bem que saí antes de notar qualquer
coisa no todo, no conjunto geral do prédio.
- Se ali você continuasse ela ia te comer toda, te sugar, não ia sobrar
nada de você. Todos os que moram ali vão sendo sugados por ela, cada vez
mais separados uns dos outros. Agora, veja mesmo como o prédio tem os
contornos dela, assumidos.
- Já ninguém se falava por lá, em seu interior. Até para brigar isso não
mais acontecia. No máximo pelo interfone, abafadas vozes congeladas no
âmbar da audição, ou bilhetes horrivelmente rabiscados, letras
vociferantes, garranchos ofensivos. As paredes laqueando, craquejando, seu
murmúrio cifrado e fatigado suas goteiras tardejando.
- Ela é monstruosa... este edifício é uma mulher gigantesca, anteriormente
de prata incontrolável, do mercúrio de um pântano estelar iscado pelas
lascas soltas da cidade, vapor baixado denso, infusão arquitetônica,
misturas sônicas de torvelhinho com a mais completa imobilidade.
- Ela se apegou, apossou-se dos traços, de tudo o que ali fora desenhado,
pré-mentado em velhas pranchetas, antes dos programas de computadores. O
prédio tinha a forma que ela queria, ecoava sua posse muito
antecedentemente dela convocar-se. Você sabe quem foi o arquiteto que
projetou o edifício?
- Não tenho a mínima idéia.
- Pois em toda a cidade só havia uma forma, um conjunto de sólidos
geométricos aplicáveis à sua intensidade desejante. A casca tridimensional
para sua engrutação. Sua psique de desgaste sugeriu-se ali .O arquiteto
fez a forma e as proporções sem jamais dar-se conta do que acionava, do
que congregava e convocava . Acaso-funil.
- Aquelas janelas engasgadas.
- Aquelas escadas de mármore basto que pareciam gargarejar quando eram
esfregadas com água intensa, ensaboadas...da espuma saltavam quase gatos
brancos em busca da lentidão .
- A portaria era como se fosse o interior de uma pedreira aberta com força
bem ali, no vácuo todo de seu busto. As paredes muito espessas, muito
pesadas, imaginando feltros e discrepâncias, ângulos de novas ânsias.
- Não dava para se demorar ali muito tempo. Pegava-se o elevador sonâmbulo
para as nuvens imoladas.
- Era assim ! Era assim !
- E você nunca notara? E você se estiolava, e você se deixava ali todas as
noites adormecer, inútil.
- Como todos os outros do prédio, os inocentes moradores, alimentos para
seu estômago, nele acolchoados...
- Alguns já sabiam, com ela faziam pactos. Traziam coisas secretas para
ela. Como se migalhas vitrificadas de tempestades. Sementes de vidro de um
futuro dilúvio lento e meticuloso.
- Eu me lembro, meus vizinhos sempre encomendavam mesas imensas, dessas de
centro , de vidro espesso . Avassaladoras. E vasos de ângulos cruéis ,
estranhos ornamentos de quartzo fibrilado . Era uma profusão de vidraças e
cristais em muitos apartamentos. Lustres quase vivos de tantos vidrilhos e
luzes. Eu sempre intuía essas multiplicações de coisas e objetos de vidro,
quase dava pra ver por entre as portas e as janelas entreabertas. Os
cristais ganiam suas exclamações.
- Você só não ouvia os estampidos. Porque tudo aquilo quebrando-se
triturando-se era o seu alimento granuloso, esmigalhado, micrométrico,
atiçador, gula do silêncio.
- Ela se alimentava de todos os estilhaços.
- E de outras coisas ainda mais secretas, que seus vizinhos não lhe
deixavam entrever e das quais ela se nutria em sua digestão de ângulos
engolidos e gestos quebrados ainda mais quando ,uníssona, se entronizava
das televisões acesas zapeadas por todas as madrugadas na velocidade da
masturbação das turbinas dos querubins eletromagnéticos de metal da
ultra-rapidez.
- Do que mais ela comia, por exemplo?
- Melhor perguntar quem em vez do que.
- Por favor, eles traziam sem eu o saber a quem?
- Traziam em segredo gente com surtos, com brancos imensos, esquecimentos
totais, gente que se perdera de si mesma, gente que encanecera todos os
rumos, que havia saltado para fora do vidro da alma ,traziam gente louca
que gritava com gritos invisíveis para o adentro, para quase todo o
tamanho do espaço. Nunca se gritara tanto sal com tanto abafamento. As
palavras tolhidas eram ali abrasadas junto das paredes, esquentando cada
vez mais as superfícies, preparando aos poucos a temperatura adequada à
completa possessão do prédio pelo cristal ensurdecedor de sua mente mole.
A queda transparente e infinita das palavras completamente tampadas,
pressionadas, moldava suas ancas. Um berro inexistido. Estampidos brancos
de mudez, as suas nádegas à deriva.
- Esfera aguda.
- Entupimento da vertigem do infinito. Íngua.
- Páre !
- Eram solilóquios de vidros quebrados em silêncio giratório em uma dança
muda e total.
- Per, eu lhe peço. Basta.
- Meu nome não é Per.
- Não importa, Per, pare com essa descrição do que nunca vi dentro do
prédio...
- Inocente como um osso perdido, de plástico, de vinil .
- Diziam palavras insondáveis que eram apenas volumes ermos de prana
estáticos, tijolos ocos de ecoação, tijolos inaudíveis ,condensados de ar
modulado por gritos sólidos partidos e pronúncias abatidas em revolturas
no espaço. Diziam desbastações rítmicas impensadas que empurravam para
dentro do insensível. Torneada por esses espasmos infra-sônicos, esse
latidos embutidos como se de catedrais sufocadas ela imensifincava-se, se
fundava, estruturava-se da complexa imprecisão.
- Da amnésia asiática dos desertos urbanos, do monólogo coletivo dos
desenraizados, do trituramento profundo do vácuo ela ia se esculpindo,
parnasiana, proliferando-se vertical, sisuda mágoa.
- E você então teria já que fugir. E você não notava, você se deixava ali
ficar. O que lhe acontecia? Pois ela tanto se deixou armar, se construir
dessas multiplicações difusas, seu método construtivo foi desse amontoado
aleatório de coisas e ações desabrigadas divergentes, sua hidráulica
onírica foi tanta que tem ela seu rádio na distância exata de que precisa
para existir, suas sonoras nódoas erráticas, seu acumulador, sua micção
intelectiva numa pedra de transmissão ,num rochedo condutivo, sem
inscrições rupestres, atordoado apenas com marcas de ferrugem e alguns
fósseis desconexos ali ocultos ,ali dentro dele ,no meio da penedia do
sertão, rocha já um pouco mais afastada da cidade onde ela se acoplou e
quase lhe absorveu inteiramente, você sua esponja, seu ser absorvente, que
ela abraçava com as pernas máximas, nos ângulos quase humanos das paredes
de seu quarto fechado de dormir. Sobre você ela se deixava sangrar,
obtusa. Você já sonhava seus líquidos internos e as imagens em que você
nadava e navegava eram seus humores e relíquias anímicas. Mas os meninos
que vendem milho assado na beira da estrada que se afasta da cidade
escutaram sua voz torturada de minérios difusos, suas gargalhadas de
umbigo, o que ela contava - pletórica e ambiental, gota a gota - dos
condôminos soçobrados os quais ela vai chupando em canudinhos a alma, com
ardências sonoras que eles ali escutam secar através do suor da pedra, o
imo com gozo lento e amarelo. Os meninos escutaram muito sem saber essas
aderências e choram agora coisas chocas e contam essas besteiras cruas com
as bocas meio tortas para as mães e tias que não lhes entendem os emblemas
gestuais difusos com que trazem a informação nas babas quando sorriem ao
crepúsculo as cicatrizes sonoras sob a chuva dispersa, nas estradas, estes
meninos de cabelos crespos e de mãos sujas de carvão que vendem milho à
beira ,em tendas, na rodagem que vai para o sul - agora paramos o carro.
Um deles se aproxima, desço o vidro da janela do passageiro, abro a porta,
eles escutaram na pedra quase marrom de laivos brancos aquilo que a gente
aos poucos sabia e agora até que talvez procurasse ,a pedra-rádio da
humidade distanciada mais e mais do prédio em que ela se transformara,
ela, elo oco , ocado, ecoante se escoando - os anti-privilégios do gesso e
siso secretos, os ruídos da construção metodológica desse ser ambiencial
de teu prédio antigo, do prédio fêmea do qual escapaste para a natureza
num grito ah!
- Só eles sabem - aqueles dois, por exemplo - mas não fale nada, não faça
que eles sintam que você sabe o que eles ouviram corrosivo na pedra com
gastura, na pedra reticente da distância, na pedra sem idéias que captava
com sua patas embutidas as fendas dos sucedimentos da construção dessa
anti-deusa maia, dessa mulher gigantesca, atmosférica que se mistura à
imóvel potência dos prédios.
- Como você sabe que ela é uma anti-deusa maia ?
- Uma compleição anti-ascencional de um anti-deusa de Palenque .Ou quase.
- Uma captação de uma entidade que vagava perdida entre as antenas de uma
cidade séculos e distâncias de onde se emanara , uma espécie imprecisa e
vaga de situância que transitava esboroada e dispersa e aos frangalhos
sobre uma cidade onde mais e mais se construíam arranha-céus, prédios e
mais prédios com apartamentos cada vez menores mais e mais acumulando-se
pondo em frente o mar de costas .Como se esperasse desencadear-se e
unificar-se apenas numa imagem construtiva, para amealhar-se, uma malha
estruturada em sua consonância, para auto aprisionar-se em um simples
desenho, em uma praticada planta-baixa, inesperada em um frágil esboço de
um arquiteto bêbado ,quase adormecido sobre a prancheta verde clareada por
seu sono lento e inclinado no tempo antes dos computadores...
- Só eles, esses garotos, sabem que escutaram os ruídos das frases, dos
gritos de longe, ferrosos, dos nitratos, dos velhos rabiscos antes do
sono.
- É.
- E ainda bem que você teve a idéia de se abrigar no estúdio de televisão
todas as noites , lá onde você trabalhava, onde você estava sempre
conhecendo pessoas novas, saindo para reportagens no meio das noites
claras e estreladas, para festas que se desenvolviam como inteligências
coletivas estrobóscopicas nas madrugadas , iniciações camufladas como
exposições de artes plásticas, shows de música eletroacústica que eram
insciações aos novos mistérios urbanos, recitais onde se liam contos
enormes e circulares ao som de tambores com chuva.
-Sim, você conseguiu sair do amplexo entorpecedor . Conseguiu escapar da
grande mulher predial, dessa difusa anti-deusa maia, sugadora dos suores
do feltro, das emanações do aço, dos reflexos das vidraças, do cimento das
paredes, da energia humana congelada, você conseguiu afastar-se do seu
corpo lento sem pilotis, com estacas de vácuo fincadas nos tonéis, nos
potes das almas, dessa mulher de paredes altas com infiltrações.
- Eu seria morta.
- Ou deixaria de pensar por você .Seria a tristeza cúbica dos ângulos
fechados, gradeada e húmida dela. Talvez suas unhas cruéis cintilassem em
seus dentes, imaginárias. Colchetes de vazio luminoso abraçam o antigo
edifício em que você morava...
- Ninguém sabe que esse prédio é o corpo de um espírito impaciente e
antiquísssimo, surgido com os primeiros roçados, quando pela primeira vez
na península de Palenque a terra foi ferida, ambiente-ser feminino e
modificado, evolado então de cidades mortas perdidas nas selvas , ainda
não redescobertas, pesado, cheio de gravitações lentas para baixo, as
paredes conversando suas mastigações de silêncios entre as pastilhas
vivas, sujas e pardacentas. Pegue o milho.
- Quanto é?
- Um real
- O arado quebrou-se contra aquela mesma pedra ao mesmo tempo lá e cá. Faz
muito tempo. Os sons refugiaram-se ali dentro.
O rosto do menino parecia muito distante. Ela agora sentiu a tontura das
rotas da cabeça dele esquentar suas mãos. Quis perguntar-lhe o que ele
ouvira na pedra lá embaixo, do lado esquerdo do estro da estrada, próxima
ao cotovelo do pequeno açude. O que escutara dos irradiamentos do prédio
através do solo do espírito pré-agrário restituído ao seu anti-mundo.
Tossiu , quase engasgou-se com o bocado de milho assado daquela primeira
safra do ano, das primeiras chuvas que já haviam influído o sertão de um
verde nasal, amplificante . Ninguém sabe de Migque, a arcaica,voltada para
as cidades antes da chuva inicial do ano. Um ser de calor e torpor.
- Era o nome dela - terminando de engolir mais um pouco das escamas de
milho e sorrindo com alívio entre as pastilhas vivas , amarelas. Quase que
mastigava estilhaços de espaço entre as curvas asfaltadas e barrancos
chiantes de chuvas cobertos de borboletas amarelas da estrada pela qual se
afastava para sempre de Migque. Tudo o que diria a seguir seria com o sol
adentro...
CARLOS EMÍLIO C.
LIMA é escritor, poeta, editor, ensaísta e antidesigner. Denso e
imaginativo prosador, com mais de dez livros publicados, tem, entre eles,
os romances A cachoeira das eras, Jericoacoara e Pedaços da história
mais longe.
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