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rodrigo ielpo
o abismo
Não imagina o abismo fora da
idéia de um lar. Nascera ali, pois não guarda memória que não seja de
beira e de precipício. Besouro pedra arbusto. Imagens que o acompanham.
Lembra também de um vento, o primeiro que lhe chamou a atenção. Ficou tão
impressionado, que ainda hoje, quando o ar principia a soprar, tem a
esperança de tornar a vê-lo.
O leitor há de entender que não se trata de fábula. A história, por mais
esdrúxula, tem lugar nos acontecimentos do mundo. E que não haja descrença
frente ao absurdo. Pois só surpreende o bizarro enquanto não vira costume.
Não estranha onde vive. Dali vê nuvem, montanha, água e planta. Mas não dá
nome às coisas. As sabe sem voz, que nunca soube falar. Devido à posição
do platô, pouco vê o sol. Entende a divisão dos dias, mas não supõe o ano
a não ser por ciclos, por isso desconhece as datas e a velhice. Embora
note que as coisas mudem, não pensa o futuro e tem em si o passado como
tempo agora, sem que promova qualquer hierarquia entre o que observa e o
que recorda. A única coisa que o desagrada – e que lhe dá conhecimento
sobre a sensação desse verbo – é o fato de trazer os pés constantemente
inchados.
Quando acordou naquela manhã nada de mais havia ocorrido. E assim como se
valia dos frutos e raízes do seu pequeno platô, da fonte que se espremia
entre as pedras e de uns poucos insetos, começou a escalada sem pensar no
destino. Cumpria seus passos como qualquer um que habita entre as coisas e
entre elas se move. Ouviu o estrondo das águas, entendeu na sombra a
novidade de um frescor ignoto e continuou a andar. Não compreendia a
estrada, ainda que ali estivesse. O que via só construía sentido pelo que
imprimia em seu corpo. Os pássaros. Conhecia diversos, mas alguns cantos
soavam como novidade.
Ao contornar a árvore – jamais uma, pois tudo que via era fundado pelo
frescor dos seus olhos – parou um instante. À sua frente, sentado sobre a
pedra, um homem. Nunca vira um antes, mas de todas as coisas que trazia no
pensamento, aquela era a menos estranha. Então se aproximou e logo nos
primeiros passos o outro exclamou:
– Quem vem lá? Como não obteve resposta, tornou a falar – Quem vem lá?
Acabando por aceitar o silêncio imposto pelo outro, que mudo, foi se
chegando cada vez mais. Conforme se aproximava, o homem sentado, em
verdade um cego, começava a sentir tal incomodo que, subitamente, se
levantou e pôs-se a andar, os pêlos eriçados como se gato ou bicho que se
arisca em meio ao terror. Apressado, fez valer sua cegueira a cada
esbarrão, não sem se virar, o corpo franzido, indicando o horror que o
outro causava.
Permaneceu um tempo parado, observando o homem que ganhava distância.
Depois voltou a andar, até que ao longe, avistou o que mais tarde viria a
saber se chamar cidade. Não entendia as construções, e conforme inflavam
aos seus olhos foi sendo tomado de espanto, sentindo crescer em si uma
desconfiança das coisas que via. Esse sentimento – o sabia pela picada dos
bichos e pelo espinho das plantas – não o impedia, entretanto, de
continuar andando. E a cada passo que dava, a cada nova visão, se sentia
imprensado entre a suspeição e o imperativo de ir, ir aonde o levavam seus
pés inchados, certos de que deveriam chegar. E assim passou pelas ruas
homens colunas panos sem que tivesse ao menos tempo de absorver o que via,
sem que conseguisse firmar o olhar sobre cada figura, o corpo impelido a
seguir, desviando habilmente de qualquer obstáculo. Parou. Exaurido, o
peito ofegante, enquanto os olhos imóveis traduziam o terror que trazia
consigo. À sua frente o rei levantou, estranhando que homem houvesse
entrado sem aviso. Contudo era Rei e caminhou confiante em direção ao
intruso:
– Quem és? Quis saber a rainha que permanecia sentada. O rei, quando
estava bem próximo, à distância de um aperto de mão, ele também parou, os
dois como um jogo de espelhos em que cada vista refletisse o mesmo
infinito. Só então perguntou:
– Quem és? Enquanto à porta o cego chorava uma lágrima que lhe cruzava a
boca no exato instante em que dizia pra si: Édipo.
RODRIGO IELPO,
contista, quase médico, guia turístico, garçom e bailarino contemporâneo,
gosta de transitar pelos espaços insondáveis da indiscernibilidade entre
literatura e dança. Nas horas vagas faz mestrado em literatura francesa e dá
aulas do idioma.
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