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de que troça o Quixote?

 

 

 

A burla não se encerra no romance de cavalaria, pois ainda compreende o romance pastoril. Quando sai em livro a primeira parte do Quijote “os Amadizes e outros Palmeirins ainda são lidos, mas há tempos que não são livros da moda” (Canavaggio, Cervantes, 2005).

 

(…) O ritmo em que todas estas edições foram saindo, muito acelerado antes de 1550, fez-se bastante mais lento depois dessa data, diminuindo ainda mais a partir de 1600 (…). Mas isso não impede que, globalmente, as cifras editoriais sejam elevadíssimas, sendo a cavaleiresca o setor quantitativamente mais importante de toda a literatura do Século de Ouro. (Roubaud, “Los Livros de caballería”, in “Lecturas del Quijote y revisión de notas”, Cervantes, Don Quijote de la Mancha,1998)

 

Cervantes de tal modo exagera seus modelos e mais ainda por ser a conduta de seus heróis assumida pelo protagonista que “a imitação quixotesca se manifesta como uma paródia cômica” (Riley, “Cervantes: teoria literaria”, in “Lecturas del Quijote y revision de notas”, op. cit.). Cervantes põe-se próximo da realidade cavaleiresca para se manter distante. Por isso o Quixote, embora pretendesse se inspirar na conduta dos Lancelot e dos Amadises, tem uma relação completamente inédita com o mundo. (Pode-se imaginar um Amadis chegando a uma estalagem, confundindo prostitutas com castas donzelas e aprendendo que os cavalheiros agora precisam pagar por suas despesas?)

 

Algo de semelhança sucede com o romance pastoril. Dele se aproximando com um propósito igualmente satírico, não poderia senão se desviar de sua atmosfera lírico-bucólica. Os dois gêneros, em suma, a que a princípio recorre não pareciam lhe dar elementos para a composição romanesca. Para chegar a tanto, ainda faltava uma liga. Por certo, a sátira do épico e do pastoralismo era a condição preliminar indispensável, mas a liga que promove a configuração do gênero romanesco só é fornecida pelo relacionamento da sátira com o mundo da picaresca. Apenas por comodidade expositiva, manteremos o tratamento em conjunto da cavalaria com o pastoralismo, deixando para adiante a complexificação decorrente da introdução da picaresca. Baste-nos uma pequena informação sobre o segundo objeto da sátira cervantina.

 

Embora o romance pastoril tenha antecedentes na lírica de Garcilaso de la Vega e nas éclogas de Juan del Encina, surge “com toda a perfeição da maturidade em 1559, com a Diana de Montemayor. Sua duração é, no entanto, curta, e seu último representante é Los Pastores de Betis, publicado em 1633 por Gonzalo de Saavedra” (Avalle-Arce, La Novela pastoril española, 1974). No momento em que aparece o Quijote, convivem o ocaso da cavalaria e o breve fastígio do idílio pastoril. Naquele “fim de século dominado por letrados e banqueiros”, o maravilhoso cavalheiresco já não oferecia “a representação idealizada do mundo em que [os leitores] gostariam de viver”, ao passo que “o êxito do gênero pastoril oferece aos leitores sua própria imagem transposta para um cenário bucólico, apropriado à introspecção” (Canavaggio, op. cit.). Ora, independente de sua oposta fortuna, Cervantes os expõe sujeitos à mesma verve satírica. As aventuras do tresloucado cavaleiro errante só podiam suceder ou com moinhos de vento e rebanhos de ovelhas ou com penitentes, condenados sem armas ou meros mercadores porque, desde a invenção das armas de fogo, os combates haviam deixado de ser individuais. Em conseqüência, se o romance de cavalaria se espelhava no que havia sido a épica dos antigos, ao se manter nesses parâmetros, o Quijote só poderia ser uma épica burlesca. Por outro lado, nos capítulos XII a XIV da primeira parte – que têm por matéria o que se passava com um grupo de filhos de homens de posse, que fingem levar uma vida de pastores – a sensatez do cavaleiro quanto a tudo que não dissesse respeito à cavalaria fará com que dê uma lição aos amigos do pastor Crisóstomo, que ocorrem a seu enterro. Os pressurosos e entristecidos amigos acusam Marcela, tão falsa pastora quanto eles próprios, de causadora de sua morte. O narrador explica que Marcela e Crisóstomo haviam aderido à moda pastoril por motivos diferentes. Marcela simplesmente porque sua beleza atraía enamorados pelos quais não se interessava. A cidade e as riquezas dos pais se lhe tornavam motivo de estorvo. Recolhendo-se ao campo, assinala seu desejo de manter-se livre e solteira. Crisóstomo, cujas razões particulares de optar pelo campo não são registradas, por ela se apaixonara; fora rejeitado e decidira pelo suicídio. Ao ser o seu corpo trazido para o local que designara e ocorrerem os amigos para sua despedida, notam a presença de Marcela no alto do monte. Eles a acusam e ela profere sua inesperada defesa. A sua é a linguagem formal e refinada que tanto poderia estar no diálogo escrito ou em uma peça de teatro:

 

Entendo, com o senso natural que Deus me deu, que tudo que é formoso seja amável; mas não alcanço que, por razão de ser amado, seja obrigado o amado por formoso a amar a quem o ama. E mais, que poderia ser feio o amador do formoso, e, sendo o feio digno de ser detestado, muito mal diz o dito “Amo-te por formosa, ama-me embora feio”. (…) Aqueles que enamorei com a vista, desenganei com palavras; e se os desejos se alimentam de esperanças, não havendo eu dado nenhuma a Crisóstomo, nem aos de outro algum cedido, bem se pode dizer que antes o matou sua porfia que minha crueldade. (I, XIV)

 

A primorosa formulação de Marcela não é feita para convencer os amigos do morto, que não parecem dispostos a deixá-la partir em paz. É o Quixote que, dando prova de um juízo que cabreiros e pastores até então nele haviam desconhecido, lhes contesta:

 

Que pessoa alguma, seja do estado e condição que for, se atreva a seguir a formosa Marcela, sob pena de cair na furiosa indignação minha. Ela mostrou com claras e suficientes razões a pouca ou nenhuma culpa que teve da morte de Crisóstomo e quão longe vive de condescender aos desejos de qualquer dos seus amantes; pelo qual é justo que, em vez de ser seguida e perseguida, seja honrada e estimada por todos os bons do mundo, pois mostra ser nele a única que com tão honesta intenção vive. (I, XIV)

 

Ora, o mesmo Quixote defendera a prática dos cavaleiros andantes de, nos instantes decisivos, voltarem suas mentes para sua dona de eleição; desta, que aguardava o cavaleiro senão a passiva espera, enquanto ele semeava o mundo de feitos heróicos? A situação, aparentemente convencional, apresenta uma face imprevista na codificação cavaleiresca. Para que melhor se entenda o ineditismo da defesa pelo Quixote da mulher dotada de iniciativa, que assume seu próprio destino, veja-se que, em La Formación de la mujer cristiana (Institutio foeminae christianae), Juan Luis Vives declarava que ela deve ter uma passividade tão absoluta que há de retardar ao máximo sua saída de casa:

 

Mister será que saia de casa a donzela alguma vez; mas isso, por muitas razões, será o mais tarde possível. (…) Porque nada há tão frágil como a honra e o bom nome da mulher, nem mais exposta à injúria, que, não sem razão, pode parecer que está suspensa por um fio de aranha. (Vives, Institutio foeminae chistianae, 1523)

 

E tão zelosa de sua castidade que delegará aos pais a escolha de seu marido: “Não parece bem na donzela fazer uso da palavra quando o pai e a mãe deliberem sobre seu matrimônio” (idem).

 

Ainda que bastante breves, as palavras de Vives são suficientes para assinalar o quanto a conduta do Quixote contrariava os valores tradicionais da sociedade. Opondo-se à indignação dos amigos de Crisóstomo, o Quixote não se contrapõe menos ao princípio de reclusão das donzelas e, com ele, à idéia de que as filhas são propriedade dos pais. O valor vigente na época seria manter Marcela submissa à vontade masculina – se então se convertera em pastora, afastando-se da vigilância dos pais, haveria de se submeter à manifestação, desde que honesta, do desejo de um pretendente habilitado. A monomania quixotesca preparava seu leitor para rir de outra de suas maluquices. Deste modo, habilmente, Cervantes reservava para seu personagem um espaço para que manifestasse seu desacordo. Se algum censor estranhasse sua liberalidade, o texto tinha armada sua defesa: não se podia confiar no juízo do protagonista. É “a épica burlesca” que permite a Cervantes contrapor-se à norma da rigidez nas relações entre os dois sexos, sem que corresse o risco iminente de ser proibido.

 

Poder-se-ia contestar que aproveitamos uma cena isolada como prova do que tomamos como princípio estrutural da obra: a burla, com seu potencial de comicidade. Para que se enfrente a objeção nada seria melhor do que contarmos com um intérprete que se recusasse a aceitar a comicidade do Quijote. Parece difícil encontrá-lo, pelo menos um intérprete de qualidade. No entanto, ainda que pouco citado pelos cervantistas, ele existe. É nada menos que Vladimir Nabokov.

 

No semestre da primavera do ano acadêmico de 1951-52, Nabokov, na condição de visiting professor, ofereceu, na Cornel University, uma série de conferências sobre o Quijote. A terceira era dedicada ao inter-relacionamento entre crueldade e mistificação. Considerar apenas o segundo elemento seria seguir a lição visual: o protagonista é o auto-mistificado a quem todos, desde Sancho até o barbeiro, que, fantasiado de Caballero de la Blanca Luna, o derrota e o escolta de volta a casa, enganam. Ao romancista russo parecia estranho que, tradicionalmente, não se notasse que “ambas as partes do Don Quijote formam uma verdadeira enciclopédia de crueldade” (Nabokov, “Cruelty and mystification”, cap. 3 de Lectures on Don Quixote, 1983). Se, na segunda parte, elas se tornam refinadas, antes de cunho mental que físico, no primeiro são variadas as cenas de espancamento. Elas principiam no capítulo III: enquanto o Quixote velava as armas para se sagrasse cavaleiro, sucessiva à mistificação do estalajadeiro em castelão, seu silêncio e solidão, obrigatórios pelo ritual, é duas vezes quebrado pelos arrieiros que afastam as armas para que deem água a seus animais. Como era de prever, a reação do Quixote é sempre do mesmo tipo: acusa-os de ignaros e os surra a pauladas. Porque o estalajadeiro já sabe com quem trata, a desordem aí se encerra. O leitor ri da cena, os surrados saem com as costelas doloridas, o cavaleiro está afinal em condições de desfazer os malfeitos e ninguém se dá do quanto de crueldade estivera presente. Que seria de esperar adiante, quando a estrada aberta se estender para o louco e seu esquálido rocim, ao lado de Panza e seu jumento? Seja por confundir pacíficos moinhos de vento com gigantes, seja pelas bordoadas que não perdoam sua própria montaria, seja por não crer que cavaleiros andantes tenham de pagar por sua estalagem, seja porque se intromete em um encontro amoroso, o resultado comum é que o par seja surrado, ferido e maltratado. Esse é o destino que lhes cai às costas até o capítulo 10 da segunda parte, quando o Quixote começa a duvidar da existência de sua fantástica Dulcinea. Até lá, no entanto, o protagonista leva Sancho a secundá-lo no atropelar os que pensariam que estariam tranqüilos no seu trânsito pelas estradas. O auge sucede em I, XXII, quando o Quixote liberta os condenados às gales, sob a alegação de que “não é direito que homens honrados sejam carrascos de outros homens” – máxima de que, na falta de outra fonte, só se pode confiar à sua cabeça de vento. Por levar a cabo sua libertação, os dois se tornam foragidos a quem persegue a temida Santa Hermandad, a temida guarda das estradas, sancionada ainda em 1476. Tão logo se vêem libertos e, ouvintes de toda a conversa havida com seus guardas, convencidos de sua loucura, os galeotes não têm maiores conveniências em o moerem e a seu escudeiro a pedradas. Mas o pior está por vir. Atento à feição real da vida, Sancho sabe muito bem que, a partir de agora, o seu senhor e ele terão a Santa Hermandad em seu encalço. Estranha a Nabokov que os tantos leitores e intérpretes só percebam o humanismo risível do Quixote e não a crueldade por ele cometida, a recompensa dos ingratos e a razão do temor de Sancho.

 

Como o exame de Nabokov se estende ao segundo livro, de que não trataremos de imediato, apenas, sobre sua parte mais saliente, se observe: “(…) O castelo ducal é uma espécie de laboratório em que duas pobres almas, Dom Quixote e Sancho, são vivissecadas”.

 

Não precisamos nos alongar para que se explique o que aproveitamos da leitura do autor russo. Por certo, as cenas de crueldade – a do Sancho manteado na estalagem (L, XVII), a do Quixote passando a noite com a mão presa no cabresto do jumento de Sancho, enquanto não podia sequer acomodar-se sobre o Rocinante e a queda com que será desfeito o encanto (I, XVVIII) – são de tamanha maestria e entrelaçadas à mais evidente comicidade, que, de fato, causa estranheza que passem despercebidas. Como ela se explicaria senão pela própria habilidade de Cervantes em mostrar como anódina, ingênua e inocente sua visão do mundo? A leitura de Nabokov é por certo parcial. Mas já não é tempo de reclamar seu resgate? Pois é evidente que a crueldade é um traço marcante do Quijote. Dito de maneira mais precisa: ela é a contraparte que mais acentua a comicidade da burla. É precisamente por essa fusão e pela extrema habilidade do autor em que não fosse vista em separado que não a notar conduz à compreensão apenas parcial do Quijote. É certo que a libertação dos galeotes não seria julgada pelos letrados responsáveis pela manutenção da ordem com tamanha ligeireza. Para compreender-se não ter provocado reação mais particularizada lembre-se a proximidade do episódio quanto à atração a ser exercida pela Sierra Morena quanto aos dois potencialmente perseguidos; atração que, para cada um, tem uma razão bastante diversa: enquanto o Quixote aprecia o seu ermo para que aí cumpra sua cômica vigília amorosa, Sancho, com os pés na terra, a bendiz porque percebe estar aí melhor protegido da perseguição que em breve os quadrilheiros lhe moverão. Ou seja, para que o apreciador de Cervantes não se dê por satisfeito por as mesas censóreas terem deixado passar o que, se o tivessem compreendido, não as teria agradado, será preciso que, dentro dos limites de sua perspicácia, faça emergir o que os contemporâneos não tinham (felizmente) visto. É o caso da posição que a crueldade ocupa no desenho estrutural da burla cervantina. De tal modo ela se cola ao risível, ao cômico hilariante que um Nabokov podia estranhar não ser ela notada.

 

Deixemos por um instante os desenvolvimentos que ainda sejam imprescindíveis destes episódios para que ainda insistamos no papel da burla. A burla, de fato, recebe seu andamento definitivo a partir da diferença que impera entre o livro publicado em 1605 e sua continuação de 1615. Na impossibilidade de exame mais acurado – na verdade, ele só poderia ser feito por um livro exclusivamente dedicado ao Quijote – contentemo-me em acentuar com Timothy Hampton:

 

Por estranho que possa parecer aos leitores adestrados nas convenções ficcionais do discurso romanesco, a pressuposição da segunda parte é que a parte primeira é história. Aos personagens que o Quixote encontra enquanto vaga pelo mundo da segunda metade, a primeira parte – que o bacharel Sansón Carrasco”, ao informar o Quixote de sua publicação, chama “a história de vossas grandezas”– é um relato verdadeiro. E o próprio Quixote está aí para atestar sua autoridade. Cervantes introduz no mundo de seu romance um documento que tematiza os problemas de leitura da história e da ficção. (Hampton, “Cervantes: writing out of history”, in Writing from history. The Rhetoric of exemplarity in Renaissance literature, 1990)

 

Ao passo que não tinha nome o que ele próprio fazia, convertendo a primeira parte de seu relato em história, sobre a qual refletiria na segunda, o flagrante desrespeito às exigências, não importa que retóricas, da história, desde logo porque relacionadas, em primeiro plano, às aventuras de um louco, requintava o jogo de burla e paródia de toda a obra. Aproveitando que a primeira parte a tal ponto circulara que dera lugar a que um apócrifo Avellaneda publicasse sua pretensa continuação (1614), Cervantes torna possível que muitos dos personagens a serem encontrados, na segunda parte (1615), pelo cavaleiro e seu escudeiro, conheçam bem suas fantásticas aventuras. Do ponto de vista do leitor comum, tudo aquilo é história porque se acha publicado. O leitor tem, portanto, o direito de se divertir, sem discutir de sua veracidade. Do ponto de vista dos nobres e letrados, sendo relato de um louco e um escudeiro analfabeto, embora muito mais esperto do que gostariam, podem-se divertir com os personagens ao vivo. Daí a importância, mesmo quantitativa, dos capítulos referentes ao encontro da dupla com os duques (capítulos 30-57 e 69-70). Com eles, a tematização da burla e seu indissolúvel reverso, a crueldade, adquirem o máximo relevo. (É verdade que o mesmo caberia dizer dos episódios na Sierra Morena – com destaque para o encontro do Quixote com o louco por desprezo de amor, sua motivação para a penitência a que o Quixote se submeterá, seu engano por Sancho, enquanto mensageiro. Preferimos contudo ressaltar a parte “reflexiva” sobre a historiada).

 

Como os duques haviam lido as aventuras da dupla, sabem muito bem com quem tratam. Isso lhes assegura o êxito nos jogos a que sadicamente submetem os seus convidados – conforme A. Redondo o que consideramos sadismo dos duques não era gratuito (se é que o analista o consideraria sadismo!): “Não devemos esquecer que Dom Quixote, apesar de proclamar-se ‘cavaleiro’, como resultado de uma significativa transgressão e usurpação social, não é mais que um escudeiro, fato que os autênticos cavaleiros lhe jogam na cara no início da segunda parte, ao qualificá-lo de fidalgo escuderil (II, II, 66), status que os duques têm bem presente – embora aparentemente lhe ofereçam demonstrações de consideração (sic) – e que permite compreender esse jogo engraçado com o manchego” (Redondo, "Festas burlescas no palácio dos duques", in Costa Vieira, Dom Quixote. A Letra e os caminhos, 2006). Pois as prerrogativas dos nobres sem função não compreendem apenas festas e caçadas, mas abrangem o flagrante desrespeito no trato das leis:

 

Mesmo a virtude que o cavaleiro e seu escudeiro são capazes de demonstrar é ignorada. O heroísmo do Quixote como o vingador da filha da Dueña Dolorida e a sabedoria de Sancho como governador da ilha da Baratária seguem desapreciadas e o jogo conclui com uma nota particularmente horripilante, quando o idealismo do cavaleiro é posto de encontro à própria materialidade do corpo de Sancho, que deve ser surrado para que se possa quebrar o encanto de Dulcinea. Se o corpo de Sancho é o arquivo físico da história, a punição sonhada pelo duque e a duqueza sugerem a extensão a que chegarão o idealismo e a fantasia para que se eliminem os traços da vida material. (Hampton, op. cit.)

 

Os casos referidos – o heroísmo do Quixote, dispondo-se a duelar para que a filha seduzida da servidora da corte ducal não ficasse desonrada, a integridade e sabedoria com que Sancho governa a ilha, bem como a presteza com que se desengana no exercício do posto, e os açoites que o escudeiro deverá se dar para que a Dulcinea que o Quixote encontrara encantada na gruta de Montesinos voltasse a seu estado normal – apontam para o abismo entre os valores declarados e a efetiva realidade. A burla então se torna mais explícita, deixando de ser o princípio estrutural da narrativa para que se exerça, estritamente, contra o cavaleiro e seu escudeiro. Se, no entanto, não descuramos sua função axial, haveremos de perceber que o demorado contato com o casal nobre exprime a terrível desigualdade daquela Espanha contra-reformista entre os que concentram os privilégios, fidalgos pobres e povo rasteiro. O contato, portanto, com os duques e os divertimentos com que eles se entretêm oferecem em microcosmo uma perspectiva da sociedade espanhola. A história, i.e., a primeira parte do Quijote, estar ela impressa e circular amplamente, passava a ser a condição para que o relato dissesse o que a história não podia declarar.

 

O caráter de exposição e denúncia que tem a segunda parte assume outro aspecto na relação do Quixote com o Caballero del Verde Gabán, don Diego de Miranda. Descrito com um fidalgo rural, enriquecido com o cuidado de suas terras, amigo do cotidiano ordeiro e distante de andanças cavaleirescas, o único aspecto que perturba don Diego é que seu filho, em vez de se dedicar às letras sérias – o direito ou a teologia – prefira escrever poesia. A análise comparativa minuciosa que A. Redondo faz de don Diego com o Quixote, o leva a acentuar que, enquanto aquele é louvado por sua discreción e prudencia, “virtude que se está erigindo em valor político”, este é definido como atrevido e temerario, qualificativos utilizados “pela Inquisição para caracterizar um discurso heterodoxo” (Redondo, 2006, op. cit.). Essas marcas verbais se colam às suas condutas opostas, permitindo que se veja don Diego como o duplo do Quixote. Nas palavras excelentes de Hampton: “Don Diego mostra-se como o tipo da figura que era o Quixote antes de se tornar louco” (Hampton, op. cit.). Por outro lado, sua “descrição “enquanto ‘un caballero labrador y rico’ o põe cuidadosamente entre o duque e a duquesa, por um lado, e, por outro, o perverso senhor de Andrés” (idem, ibidem) – o garoto que o Quixote, em sua primeira saída, livrara de continuar espancado.

 

A referência a Haldudo, o rico lavrador, e aos duques, ao se relacionarem ao Quixote, dá ainda lugar a outra perspectiva da sociedade espanhola, porquanto, pertencentes a setores tão diversos da sociedade, têm um comportamento igualmente arbitrário. A libertação da sova que sofria Andrés era talvez a única empresa em que o Quixote via justificada a sua missão de cavaleiro errante. Mas ainda na primeira parte, o reencontro do rapaz mostra seu engano. Ele conta que mal o Quixote se afastara, seu senhor não só descumprira o que prometera ao Quixote como voltara ao uso do chicote com maior empenho. Daí suas palavras soarem como as de um pícaro, já ensinado nos caminhos do mundo: “Pelo amor de Deus, senhor cavaleiro errante, se outra vez me encontrar, ainda que veja que alguém me faz em pedaços, não me socorra nem ajude, mas deixe-me com minha desgraça, que sempre será menor que a que terei com a ajuda de vossa mercê, que Deus maldiga, com quanto cavaleiros andantes já nasceram no mundo” (I, XXXI). O desfazer da sedução cometida pelo nobre que fugira para Flandres e parecia ter tido o final feliz de dar a Tosilos, o servidor do duque, uma bela mulher, terminara em desgraça semelhante. Já o livro está no final, Sancho já aprendera que, sem partilhar da específica demência de seu senhor, para os de sua condição, o mundo de poder e governança era ilusão e patranha, o Quixote fora afinal derrotado em duelo e, embora ainda sonhe em fazer-se pastor, na verdade já caminha para a morte, quando se encontram com o lacaio do duque. O que o Quixote pensara ser um disfarce de magos não passara de mais um engano promovido por seu anfitrião, que fizera Tosilos apresentar-se como o cavaleiro contra o qual combateria. Mas Tosilos, vendo a beleza da presa, a jovem seduzida, achara melhor renunciar ao combate e casar-se com ela; mudança que o duque não toleraria, simplesmente porque infringia sua vontade: “Assim como vossa mercê partiu do nosso castelo, o duque meu senhor mandou que me dessem cem açoites por ter contrariado as ordenanças que me tinha dado antes de entrar na batalha, e tudo parou em que a moça é freira já, (…) e eu vou agora para Barcelona a levar um maço de cartas para o vice-rei que lhe envia meu amo” (II, LXVI).

 

A leitura mais detalhada do Quijote multiplicaria os exemplos. Eles se mantiveram tanto tempo sem que fossem decifrados porque, paradoxalmente, a sagacidade do autor consistira em que, para que sua circulação não corresse o risco de ser proibida, preferira não os expor muito às claras. Em síntese, tomando a primeira parte como a história que se desdobraria, na segunda, sob a forma reflexiva, Cervantes usava o decoro e a verossimilhança para, ao mesmo tempo, mascarar e revelar o que de outro modo não podia ser dito.
 

 

LUIZ COSTA LIMA, ensaísta, tradutor e teórico da literatura, formou-se em 1959, na Universidade de Pernambuco, tendo estudado na Espanha e nos Estados Unidos. Doutorou-se, em 1972, pela USP, atuando nas áreas de Teoria Literária e Literatura Comparada. Foi professor visitante na Ruhr-Universität, Alemanha, e atualmente leciona na PUC do Rio de janeiro e na UERJ. Como pensador prolífico, reúne, em seus escritos, a reflexão filosófica junto às questões próprias das obras literárias. Publicou O Controle do imaginário (1984), Sociedade e o discurso ficcional (1986), Pensamentos nos trópicos (1991), Vida e mimesis (1995) e Mimesis: desafio ao pensamento (2000), entre outros. Este texto é a primeira publicação de uma parte de capítulo dedicado ao Quixote, que deverá ser incluído em livro a ser chamado Os Mecanismos de controle do imaginário e a legitimação do romance.

 


 

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