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milton hatoum
órfãos do Eldorado
A voz da mulher atraiu tanta
gente, que fugi da casa do meu professor e fui para a beira do Amazonas.
Uma índia, uma das tapuias da cidade, falava e apontava o rio. Não lembro
o desenho da pintura no rosto dela; a cor dos traços, sim: vermelha, sumo
de urucum. Na tarde úmida, um arco-íris parecia uma serpente abraçando o
céu e a água.
Florita foi atrás de mim e começou a traduzir o que a mulher falava em
língua indígena; traduzia umas frases e ficava em silêncio, desconfiada.
Duvidava das palavras que traduzia. Ou da voz. Dizia que tinha se afastado
do marido porque ele vivia caçando e andando por aí, deixando-a sozinha na
Aldeia. Até o dia em que foi atraída por um ser encantado. Agora ia morar
com o amante, lá no fundo das águas. Queria viver num mundo melhor, sem
tanto sofrimento, desgraça. Falava sem olhar os carregadores da rampa do
Mercado, os pescadores e as meninas do colégio do Carmo. Lembro que elas
choraram e saíram correndo, e só muito tempo depois eu entendi por quê.
De repente a tapuia parou de falar e entrou na água. Os curiosos ficaram
parados, num encantamento. E todos viram como ela nadava com calma, na
direção da ilha das Ciganas. O corpo foi sumindo no rio iluminado, aí
alguém gritou: A doida vai se afogar. Os barqueiros navegaram até a ilha,
mas não encontraram a mulher. Desapareceu. Nunca mais voltou.
Florita traduzia as histórias que eu ouvia quando brincava com os
indiozinhos da Aldeia, lá no fim da cidade. Lendas estranhas. Olha só: a
história do homem da piroca comprida, tão comprida que atravessava o rio
Amazonas, varava a ilha do Espírito Santo e fisgava uma moça lá no Espelho
da Lua. Depois a piroca se enroscava no pescoço do homem, e, enquanto ele
se contorcia, estrangulado, a moça perguntava, rindo: Cadê a piroca
esticada?
Lembro também da história de uma mulher que foi seduzida por uma
anta-macho. O marido dela matou a anta, cortou e pendurou o pênis do
animal na porta da maloca. Aí a mulher cobriu o pênis com barro até ficar
seco e duro; depois dizia palavras carinhosas para o bichinho e brincava
com ele. Então o marido esfregou muita pimenta no pau de barro e se
escondeu para ver a mulher lamber o bicho e sentar em cima dele. Diz que
ela pulava e gritava de tanta dor, e que a língua e o corpo queimavam que
nem fogo. Aí o jeito foi mergulhar no rio e virar um sapo. E o marido foi
morar na beira da água, triste e arrependido, pedindo que a mulher
voltasse para ele.
Lendas que eu e Florita ouvíamos dos avós das crianças da Aldeia. Falavam
em língua geral, e depois Florita repetia as histórias em casa, nas noites
de solidão da infância.
Uma história estranha me assustou: a da cabeça cortada. A mulher dividida.
O corpo dela sempre vai atrás de comida em outras aldeias, e a cabeça sai
voando e se gruda no ombro do marido. O homem e a cabeça ficam juntos o
dia todo. Aí, de noitinha, quando um pássaro canta e surge a primeira
estrela no céu, o corpo da mulher volta e se gruda na cabeça. Mas, uma
noite, outro homem rouba metade do corpo. O marido não quer viver apenas
com a cabeça da mulher, ele a deseja inteira. Passa a vida procurando o
corpo, dormindo e acordando com a cabeça da mulher grudada no ombro.
Cabeça silenciosa, mas viva: podia sentir o mundo com os olhos, e os olhos
não secavam, percebiam tudo. Cabeça com coração.
Eu tinha uns nove ou dez anos, nunca mais esqueci. Alguém ainda ouve essas
vozes?
MILTON HATOUM, contista e romancista, nasceu em Manaus, em 1952.
Foi professor de literatura na Universidade Federal do Amazonas e da
Universidade da Califórnia, em Berkeley. É o autor de Relato de um certo
Oriente e Dois irmãos, com os quais ganhou o Prêmio Jabuti de melhor
romance do ano, em 1990 e 2001, voltando a recebê-lo em 2005, pelo seu
Cinzas do Norte, na categoria de melhor ficção do ano. Com a mesma obra,
ganhou ainda o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira no ano
seguinte.
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