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linha de bruma


6 poetas vivos de Cabo Verde

 


CORSINO FORTES nasceu a 14 de fevereiro de 1933, no Mindelo, Ilha de S. Vicente. Licenciado em direito pela faculdade de direito de Lisboa. Publicou Pão & fonema, 1973, Árvore & tambor, 1986, e A cabeça calva de deus, 2002.


Emigrante

Todas as tardes o poente dobra
              o teu polegar sobre a ilha
E do poente ao polegar
              cresce
              um progresso de pedra morta
Que a Península
                        ainda bebe
Pela taça da colónia
Todo o sangue do teu corpo peregrino

Mas quando a tua voz
              for onda no violão da praia
E a terra do rosto E o rosto da terra
              estender-te a palma da mão
Da orla marítima da ilha
                  De pão & pão feita
Ajuntarás a última fome
              à tua fome primeira

Do alto virão
rostos-e-proas-da-não-viagem
              Assim erva assim mercuro
Arrancar-te as cruzes do corpo
O grito das mães leva-te
                                     agora
À sétima esquina
              onde a ilha naufraga
              onde a ilha festeja
A sua dor de filha
E a tua dor de parturiente
Que toda a partida É potência da morte
        todo o regresso é infância que soletra

Já não esperamos o metabolismo
   Polme de boa fruta fruta de boa polpa
A terra
        aspira
              teu falo verde

E antes que teu pé
                            seja
                                 árvore na colina
E tua mão
          cante
                  lua nova em meu ventre

Vai E planta
            na boca d’Amilcar morto
Este punhado de agrião
E solver golo a golo
              uma fonética de frescura
E com as vírgulas da rua
   com as sílabas de porta em porta
Varrerás antes da noite
Os caminhos que vão
              até as escolas nocturnas
Que toda a partida é alfabeto que nasce
       todo o regresso é nação que soletra

Aguardam-te
                 os cães e os leitões
                 da casa de Chota
                 que no quintal emagrecem de morabeza

Aguardam-te
                 os copos E a semântica das tabernas

Aguardam-te
                 as alimárias
                 amordaçadas de aplauso e cana-de-açúcar

Aguardam-te
                 os rostos que explodem
                 no sangue das formigas
                 novos campos de pastorícia

Mas
      quando o teu corpo
             sangue & lenhite de puro cio
Erguer
            Sobre a seara
A tua dor
E o teu orgasmo
                       Quem não soube
                       Quem não sabe
                                          Emigrante
Que toda a partida É potência na morte
E todo o regresso É infância que soletra



A cabana oca de vocábulos


I

Agosto arranca as âncoras do deserto
Depondo-as
                               Às portas do povoado
Setembro cresce ossos & ventre
E da barriga de Outubro
                              Ouvia-se
O crocitar das sementes da erosão

Aqueles que sem embargos do sétimo dia
Partem do umbigo das três ribeiras
Trazem no enlaço dos destinos
A cana-de-açúcar como oxiúros

Quem não ama? os navios loucos da minha aldeia
Abalroam na planura! nos baixios
                              Os casebres da vizinhança
À procura de mastro & oceano no olho das salinas



OSWALDO OSÓRIO nasceu a 21 de novembro de 1937, em S. Vicente. Frequentou o liceu Gil Eanes e o seminário nazareno. Publicou, entre outros, Caboverdianamente construção, meu amor, 1975, Clar(a)idade assombrada, 1987, e Os loucos poemas de amor e outras estações inacabadas, 1997.


A aventura toda

desmedida idade
no peito conduzíamos
ao que vínhamos
à aventura respondemos
e o coração impetuoso
em nós cavalgava:
– somos nós e os nossos cavalos turbulentos
e disparámos ajaezados e belos
sem cuidar de a resposta receber

à frente e inquietos
e sob as patas desabridas
mares e céus se desdobram
onde já se começa a ouvir a voz total
e nós somente atentos aos nossos cascos corredores
aos nossos dorsos de suor reluzentes
que se fundem com arcos cavalos e cavaleiros
e já ao sol apontam

somos nós e os nossos cavalos
e não cavaleiros e suas montadas
em disparada na imperturbável rota
de quem quer ser e cumprir
o que era já tempo



Aos quarenta e três

da amizade três décadas e três anos
colhi desde os treze somente desenganos
e se volvo o olhar para trás
entre tantos rostos o mais que vejo
são velocíssimos calcanhares

aos quarenta e três atrasei-me tanto
que o canto que vou compondo
não o lerão os meus amigos
(seus filhos ou netos o recitarão um dia
na desenchente da lua cheia)

agora o tempo que resta é o que rareia
das horas consumidas na poesia
– não pernas para corrida



Horoscopografia


Nasci na rua da moeda
em Novembro de 1937
(não importa o país nem o lugar:
sou interinsular e habito o mundo)
num sobrado que tinha janelas
para os quatro pontos cardeais

perdi-me entre elas todas
e ando com os bolsos furas

de tanto norte possível que me caberia
ao descer as escadas que davam para o pátio ao fundo
e tinha um alambique de cobre
onde se destilava aguardente de laranjas
escolhi ventos, aromas, tentações

(ainda me recordo da alquimia
e todas as manhãs da vida acordo
com a doce metamorfose: era potro e galopava)

meu tio, sabendo eu ser de signo centauro
disse “sim senhor, temos homem”
e desde esse dia
aromas, tentações, transparências redondas
são seios doces como laranjas
António Baluca, mestre endireita e de outros prodígios
falou assim para a minha mãe:
“correrá sete perigos, sete partidas do mundo”

E cumpriu-se o vaticínio
com a mãe Djidjula minha bisavó expirando nos meus braços
e a sala a inundar-se de mapas, percursos
e odores de aloés
no final abri os braços e contive a loucura de querer prantear o
futuro
apenas e só engrinaldado mais tarde de flores brancas de laranjeira
pós-alquimia de centauro
campeador de achadas e em secretas criptas
plantador de heróis desafiadores do medo.
Evoé!



JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA nasceu a 9 de dezembro de 1960, em Santa Catarina, Ilha de Santiago. Licenciado em direito pela universidade Karl Marx, de Leipzig. Sob o pseudônimo de Zé di Sant´iagu, publicou À sombra do sol, 1990, e Assomada Nocturna, 1993.


Assomada nocturna (excerto)


Lembras-te, Davidinho
do dia ungindo-se erecto
todas as tardes
a todas as horas
na candura da sombra dos pessegueiros
na lonjura dos caminhos de pombal
quando a alma madrugava enxuta
e toda a fortuna se vislumbrava
no esplendor do grão
(ouro que se olvida e recende
sob os passos insones
das manhãs bronzeadas
retinindo com a saudade sendo)
eram Julho e Júlia
enamorados resplendores
da voz rouca possante
do rosto exacto do corpo largo
das mãos árduas generosas de António?


Todos nós éramos
bastardos resguardados do quotidiano

como esses filhos de Assomada
por seis anos vezes dois retirados
da aragem da poeira da bruma de bolanha

como esse celebrizado violinista
marceneiro arribado curvado sobre a melancolia
da madeira do violão da ausência da mãe
da memória do monte verde

na desolação sitiada da morna
no degredo da saudade
entre os muros da colónia penal de chão bom

como esse relojoeiro lendário hermafrodita
temido incendiário das casas da pobreza
da cobardia e da rotina do quotidiano
por seis anos escorraçado do convívio
da decência dos homens honrados
e da intimidade da folhagem
do poilão da boa-entrada

como aqueles filhos de Jesuíno Dâmaso
Jova Alice Elisa Maria Filipa
e tantos outros homens e mulheres grandes
humildes anónimos cabisbaixos
de almas clandestinas
rebeldes de santa catarina
sentenciados como contra-nação
por seis anos desterrados da liberdade
e da imprecação contra os pastores da mãe-pátria
rubra-e-verde distante
confinados à voracidade reclusa da miragem
das noites longas da Assomada
sob o monótono e aprisionado mar
do tarrafal de santiago


Todos nós éramos
pedras sentadas sondando
os destinos deste nosso Destino
destinos inertes destinos parados

Todos nós éramos
pedras brancas pedras negras
entre as mãos do acaso
entre as mãos de Deus
deslocando-nos sóbrios e sábios
como enigmas no tabuleiro da dúvida

Todos nós éramos
solilóquios de pedras nuas
velando a geometria encarcerada da vida
sob a ténue sombra dos ciprestes
e a miraculada grandeza dos poilões

diálogos verbos pétreos
reverberando
nas noites longas da Assomada

Todos nós éramos
pétalas de suor pedras de suão
pés escorregando disformes
deslizando informes
sobre as fomes do mundo

Todos nós éramos
pedras extenuadas palavras sufocadas
faces pobres folhas podres do destino
velejando pela ilhada orografia da solidão
a ironia e a sageza
a sapiência e a ousadia da interpelação
ao deus da afronta e das intempéries



FILINTO ELÍSIO nasceu na cidade da Praia, Ilha de Santiago, em 21 de janeiro de 1961. Licenciado em biblioteconomia. Publicou Do lado de cá da rosa, 1995, O inferno do riso, 2001, e Das frutas serenadas, 2007.


Matou-se! As luzes da ambulância são intermitentes
Enforcou-se com o cortinado e fui dizer ao detective
Que o meu vizinho jogava xadrez com o Satã e fugira

O vizinho comera a manga proibida e comemorara
A ambulância insiste e o cadáver coberto em lençol branco
O inferno do riso! Matou-se mesmo ei-lo tão hirto!

É um dos que não viajara nem vira lugares e olhares
Herdarei dele o cão “tadinho” que tem olhos de lince
O velho tabuleiro de xadrez com decapitados cavalos

 


* * *


Matou-se o malandro e fazia um poente a dar para o divino
E não é que o sol beijava o mar em púrpura!
Não terá sabido ele a chatice de morrer aos sábados?

O vizinho matou-se num momento de beleza
Aposto que tenha dado cabo da colecção de brandies
O canalha jamais soube a nobreza de morrer.

Vou à janela e vejo o mundo e a ambulância que parte
Outro trem para Alwife e eu creio nunca ter partido
Creio nunca ter escritos este versos desconjuntos…



Do lado de cá da rosa

estranho filósofo
que fazes filosofia
à porta do destino dos outros

diz-me quantas luas
faltam para que cheguemos
aonde estes passos nos levam

diz-me
já que espreitas
da fechadura mágica da tua alma
a diferença entre o sol e o solfejo

diz-me coisas absolutamente absurdas
para que eu sinta a fundo
o poço das minhas inquietações

dar-te-ei todos os dados da noite
a senha de todas as trevas
a chave da porta do destino dos outros



MÁRIO LÚCIO SOUSA nasceu a 21 de outubro de 1964, na Vila do Tarrafal, Ilha de Santiago. É licenciado em direito pela universidade de Havana, Cuba. Publicou, entre outros, O nascimento de um mundo, 1991, Sob os signos da luz, 1994, e Para nunca mais falarmos de amor, 1999.


– SANTIAGO –

"Yo soy viejo
como la pampa y el arroz"

Esta estranha voz chegou-me aos ouvidos
quando eu era novo, novinho ainda
recém partúrido como o trigo e a palavra,
uma voz que cantou no passado
na reminiscência dos ecos,
uma voz boa, boa
buena, buena como uma buena canción al fuego.
Eu não entendia
– embora herdeiro também das covas de Altamira –
porque era um código nefasto:
o ouro com couro rimava,
as cores com o Triângulo
e o entendimento podia significar o fracasso.
A sua voz enraizou-se na minha
e mudou o nome das coisas no meu destino.
Assim um dia acordei dum largo sono
abandonei o meu estado de larva
e vi-me compelido a dar a esta ilha
o nome de Iago
filho de Zebedeu e Salomé,
evoquei o canto
daquele que viria a ser eu
sem que eu soubesse
sem que ele soubesse:
"Seja ilha", ordenei

……………………………

E no Princípio foi a Voz
e depois
podias tu parar a boca
no fundo do vale
e recolher a altura que desprendia das montanhas
Pico Sem Nome, Monte Sem Nome, Serra Sem Nome.
Todo o vento do mundo soprava em direcção ao mar
e cavalos vadios corriam
atrás dos assobios,
a falta de criaturas em mim.
As serras serravam as nuvens e penetravam
no coração dos homens
com um beijo frio às seis da manhã
na sua boca de orvalho.
Os picos picavam a imensidade do ar
convertendo-a em finíssimas gotas de vidro.
Tomei água da rocha
e sentei-me no chão
a contemplar a metamorfose das ilhas

MUTATIS MUTANDI:

os carriços em gestação
sopravam, uivava, assobiavam…
assobiavam, uivavam, sopravam…
A música chegou aqui por partes:
primeiro uma corda buscando som
com um arco na minha própria íris;
depois, quatro cordas
logo seis cordas
                           e cordas
                                    e mais cordas
e amarramos a nossa identidade
o gaiteiro e a sua gaita
o pedreiro e a sua pedra
o pastor e o seu pasto
o marinheiro e o seu mar
e já não cabíamos na terra. Era o ano de 1830.
Ao dorso de uma baleia azul
fomos a plantar o mar /
desde o mar /
sempre uma ilha divide-se em dois,
mas entre uma árvore e outra
existe uma dimensão eterna
onde cabe a sombra das duas.

                           Eu seria outro,
                           mas a sombras das ilhas é verdeazul
                           e eu passeio pelos campos
                           como se andasse dentro de mim.

 

                           2

Aqui onde os escravos morreram
vieram morar os santos
Santiago, Sandomingos, Sanjorge, sanfrancisco
Santacatarina e Nha Santana.
Assim entre santos e escravos
os meninos nas ilhas
e as esquinas
Se confundem.


                            3

Os mares nascem noutras ilhas
e vêm buscar a areia e as pedras aqui
a um passo das espumas.

                            (coda)

Yo soy viejo
como la pampa y el arroz
ou tão velho como as bengalas:
fortalezas e templos
canhões e cruzes
falaram a linguagem remota
que hoje se escuta na minha voz.
A Cidade mais Velha talvez tenha a minha idade
porque nada existiu nunca fora da linguagem.
Comigo nasceu um mundo
nasceu outro mundo
e sobreviveu outro.



ANTÓNIO DE NÉVADA nasceu a 7 de Setembro de 1967, em Lisboa. Licenciado em engenharia electrotécnica. Publicou Acto primeiro ou o desígnio das paixões, 1993, e Esteira cheia ou o abismo das coisas, 2000.


(Canto à semeadura)

I

Não venho para redimir ou semear,
não viemos para colher ou situar.
O luar fragmenta-se,
os momentos tecem o peso
e não viemos para escolher,
corroer ou perpetuar,
e nem as coisas preservam
o caudal dos tempos,
ou inutilmente pensamos,
estimamos o afluente da dor.
Não venho para criar ou garantir,
não viemos para aumentar ou instaurar.
Cada enxugo ou rega,
cada filho dizendo,
dizendo a morte
e a sina nossa,
a cada filho o condão da rememoração.
E se dizemos hoje dizendo cantos,
é porque dizendo hoje temperamos o espírito!

Ontem
descemos as encostas
e bebemos a água da fonte,
a semeadura foi abençoada pelo poente,
pela poesia e pelo bater do tambor,
e bendizemos o corpo vago,
as fraquezas,
alguns troços de alma.

Hoje
sentamos à soleira da porta
e dizemos hoje dizendo cantos,
porque dizendo hoje diremos o vento
à porta da aldeia,
cantamos a terra ou o verso e rima.
Diremos a morte, a sensação de inexistência que nos perturba.

E o homem
cultiva sobre a terra estéril,
e sobre ela ajoelha-se
para louvar ou barafustar,
para louvar ou possuir
o dom dos deuses.
Homem que espera a consumação
e o volume da vida,
homem que habita os seios da madrugada
ou os cios, cios nossos
e do tempo horto.
Será que vivemos,
sobrevivemos,
para estabelecer a causalidade da morte?
Ou o mundo é a rua toda,
o regadio e a impunidade?
A rua toda, almas famintas,
o afluente da dor?

Nas palmeiras,
no oráculo e em voz branda,
assumimos o cântico,
dispensamos o corpo,
e alagamos a ubiquidade.
As ondas banham a alvorada,
a areia reagrupa a linguagem,
e a terra semeia o ramo e o suco.
A alma vai com o vento,
o infindável manto oculta as imagens,
e as árvores da humanidade
caminham sem frutos
sem raízes de imbondeiro.

Cantos, breves cantos
ó demência toda!

Seguimos
as pisadas nocturnas da brisa,
e a maré rasa
no rosto da maresia,
e a secura do sal pela rua.
Na enseada onde os homens fazem as preces
O bravo retorna ao mar.
Ao longo da estrada, lado a lado,
O penhor e o prumo da semeadura
descrevem o campo, a alfarrobeira,
o grão da mostarda, essa aflição dolente.

 

Seleção de José Luis Tavares.

 

 


 

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