|
|

|

márcio-andré
uma tarde em Chernobyl
(ou, como me tornei o primeiro
poeta radioativo do Brasil)
O carro seguia abarrotado de
poetas até Porto. Nele, os mesmos que haviam saído de Coimbra no texto
anterior. Stephen Rodefer (como todos os outros) reclamava de dor no
estômago, resultado de cinco dias sem dar trégua à bebida, Jonathan Morley ia no banco da frente, Ana Raquel dirigia e
Francisca dormia recostada em Stephen, que se aproveitava de seu ar
paternal para tirar uma casquinha da jovem gaja. Eu observava a
paisagem passar como um sonho. Fazia um sol agradável e todos estavam tão
cansados que mal conversavam.
Em algum momento evoquei uma discussão a respeito de Santos-Dummont e de
como a história oficial privilegiou os Irmãos Wright, ofuscando o aviador
brasileiro. Stephen recusou que traduzissem essa parte. Disse: ok, ok,
os brasileiros inventaram o avião, os franceses o cinema, e os americanos
reinventaram o fascismo. Todos concordaram.
A cidade de Porto surgiu como uma capital estranha, algo que me lembrava a
véspera de natal em alguma infância perdida. Os prédios entulhados,
barrocos e excessivamente dramáticos, me assustaram. Apesar do iluminado
dia de verão, esta era uma cidade escura e pesada. No centro,
os executivos, os carros soavam irreais para quele
lugar. O contraste entre homens de terno, mulheres de tailleur
e prédios tão velhos e sisudos causava uma estranha sensação. Os
sobrados aglomerados, de reboco escuro, de telhados tortos, os casarões
empilhados diante do rio, as ruas em camadas, sinuosas, a ponte do senhor
Eiffel cortando o céu a quilômetros de altura. Tudo parecia saído de uma
obra de François Schuiten ou de uma animação de Raoul Servais. Passei
algum tempo andando pelo Centro pensando como seria viver ali, como seria
a vida literária, como seriam as pessoas e os amores possíveis daquele
lugar que não havia imaginado nem em sonhos. Porto talvez tenha sido a
cidade mais assustadora e bela que já visitei. Esse efeito, e talvez o
extremo cansaço, me fez querer sair daquele lugar o mais rápido possível.
Comemos uma francesinha, prato típico local, à beira do Rio Douro numa tasca na Rua do Cimo do
Muro. Jonathan e Ana Raquel fizeram uma entrevista com Stephen para uma
revista do reino Unido, enquanto fui dar um passeio com Francisca e
Geraldo (que havia nos alcançado de trem). Subimos por umas ruas e fomos parar no
Centro da cidade. Os dois, bem mais jovens do que eu, me obrigavam a
escalar todo tipo de muro e a pular portões de lugares duvidosos, que
não sabíamos onde dariam.
Quando voltamos, já era hora de todos se despedirem. Stephen e Geraldo pegaram
um ônibus para a Galícia, enquanto Francisca ficou na estação onde pegaria
um trem de volta para Coimbra. Toda partida é triste. Soube que Francisca
chorou ao ficar sozinha na estação. Eu pernoitei na casa da poeta e
militante cultural Regina Guimarães, onde conheci seu marido, o artista
plástico Saguenail. No dia seguinte, após um ótimo almoço português em
companhia de Regina, me encontrei uma última vez com Jonathan e Ana Raquel
e peguei o avião para Londres.
Naturalmente, como todo brasileiro, levei um tempo maior que os outros na
imigração da capital inglesa, mas nada que a carta-convite do Encontro não
resolvesse. É surpreendente descobrir que uma carta da Universidade de
Coimbra só não é melhor que a dupla cidadania européia. Quando encontrei
com o meu anfitrião, Marcin, na Trafalgar Square, já eram três horas da
madrugada.
A estadia em Londres foi bem mais calma que em Coimbra. Tirando uma viagem a Chesterfield
com amigos e algumas leituras que fiz em saraus com um inglês vergonhoso,
as duas semanas não passaram de um passeio meio tedioso de turista. Sem
falar que as mulheres inglesas não eram, em absoluto, uma atração. E como
não gostava de cerveja, também não bebi muito. Londres dava vontade era de
fumar. Vi uma exposição do Hélio Oiticica no Tate Modern, visitei a casa
onde Ezra Pound morou, assisti a leituras de Bill Berkson, Clark Coolidge,
Bill Corbett e bebi com alguns poetas locais, entre eles Andréa Brady,
professora na Universidade de Londres, da qual acabei me tornando amigo.
Entender as ruas de outra cidade é tão difícil quanto sentir a fibra de
outra língua. Londres é certinha demais, muito sinalizada, muito
controlada, muito invertida, muito semelhante a ela mesma para alguém que
vive no Rio de Janeiro. Há uma obsessão pela ordem e até a respiração dos
carros é sinalizada. Uma capital Yuppie com jovens customizando a
moda da década de 80. Certa noite cantarolava baixinho enquanto esperava o
ônibus no Soho, quando uma menina ao meu lado no ponto me perguntou
what do you sing? Eu disse que era música tradicional brasileira e ela
espantou-se. Logo depois levantou e vomitou.
Mas Paris foi diferente. Paris é uma festa – Hemingway tinha cem mil vezes
razão – Paris será sempre uma festa.
Cheguei a Paris numa quinta feira, depois de atravessar o Canal da Mancha.
Stephen havia me dado o seu endereço na Rua Quineau, mas na casa diziam
que aquele era apenas o seu endereço postal. Sabia que ele não era lá um
cara muito normal, mas não imaginei que chegasse a tanto. Fui procurá-lo
então no Café Le Rey, onde ele disse que passava as tardes a trabalhar.
Bonjour, disse o garçom logo que entrei. Falei que procurava um
americano com um laptop e ele respondeu que nunca tinha visto tal figura.
Liguei para ele e, como estava fora da cidade, marcamos um encontro para o
dia seguinte no Café La Fée Vert, às 16 horas. Restava-me encontrar um
hotel barato, o que não existe em Paris. Havia também a opção de ligar
para uma amiga que dividia um apartamento perto da estação Voltaire, mas
como não morava sozinha, não queria incomodá-la. Lembrando da fama da
Shakespeare & Co. em abrigar poetas, resolvi ir até lá para ver como era a
livraria.
Conheci Sylvia Beach
logo que cheguei. A herdeira de George Whitman e dona da livraria era na verdade uma bela menina magra e loira – se tivesse
vinte e cinco anos seria muito. Apresentei-me dizendo que era amigo do
Rodefer e ficamos longas horas a conversar. Falei que vinha do encontro em
Coimbra, falei da editora que dirigia no Brasil e que estava em Paris para
o Marché de la Poésie dali há duas semanas e para um encontro com
Serge Pey. Contei também que Stephen era louco (o que ela não hesitou em
concordar) e o que havia se passado. Para minha surpresa, foi ela quem me
ofereceu que pernoitasse por lá. Disse que a loja estava em reformas, mas
que, caso não me importasse, eu poderia dividir o leito no segundo andar
com alguns livros. Ela, como todos que trabalhavam no lugar, era bem
simpática. A verdade é que eles não tinham pressa – aquela livraria havia
levado muitas décadas para se firmar como a mais célebre do mundo, e foi
justamente com a postura de auxiliar poetas e artistas. Tal despojamento
fazia a livraria uma espécie de comunidade hippie da literatura, com
pessoas entrando e saindo mesmo depois de fechada ao público. Conheci
também um artista plástico inglês que já estava lá há uma semana. A
livraria era fantástica, nada pomposa, nada conservada, mas bem acolhedora
– um lugar bem acessível, apesar de todo o glamour que a envolvia (e essa
é uma boa analogia de Paris como um todo, algo que falarei mais adiante).
Aliás, em duas conversas com Sylvia ela aceitou rapidamente vender livros
da minha editora. No Rio, há livrarias onde é preciso implorar para que
aceitem livros de poesia ou de editoras pequenas.
Foi uma experiência única acordar com a movimentação à volta. Fiquei
preocupado, achando que a livraria já estivesse aberta e que eu estivesse
em exposição ao público, mas Sylvia veio me tranqüilizando dizendo que a
livraria só abria ao meio-dia e se desculpando por ter entrado, mas que
precisava colocar alguns móveis ali naquela sala para o pessoal poder
trabalhar na obra. Tomei chá que o rapaz artista plástico preparou e
fiquei olhando a Notre Dame pela janela. Depois de uma longa caminhada
pela cidade, encontrei Stephen no La Fée Vert. Ele disse que estava
muito contente em me ver e se desculpou pelo endereço errado. No ateliê, dizia ele,
você não me encontraria. O ideal seria sempre procurá-lo nos cafés da
Rue de la Roquette. Mas somente na cabeça dele as pessoas se deslocam de bar em bar, puxando uma mala, atrás de seus anfitriões.
Ele me deu a chave de sua casa e me ajudou a levar minha mala para lá. O
seu ateliê, um loft de dois andares com móveis improvisados e uma banheira
no meio da sala (o que me obrigava a tomar banho sempre depois que ele saísse), era uma antiga fábrica em uma ruazinha espremida entre a
Av. Gambetta e a Rue de Mûriers. Convenci-o a não trabalhar naquele dia e
a me acompanhar pela cidade.
Eu estava eufórico. Meu primeiro espanto foi notar que Paris é uma
bagunça (ou um bordel, como eles dizem) e que as mulheres são belíssimas.
Isso faz toda a diferença quando se vem de Londres. Bem ao
contrário do que se imagina, Paris não tem nada da capital inglesa em sua
sisudez – nem de longe representa o modelo de cidade organizada e asséptica.
Tudo é meio decadente e anárquico. A maioria dos telefones públicos não
funciona (apesar do preço absurdo do cartão), o metrô é antigo e
mal conservado, o trânsito é um caos, os padeiros pegam o pão com a mão, e
nenhum pedestre respeita a faixa (nem por isso os carros passam por cima),
há muitas áreas degradadas, proliferam os vagabundos e tudo é motivo para
festa e comemorações espontâneas. E talvez seja essa despreocupação que leva a população
de Paris a ser mais alegre, mais despojada, mais aberta e faladeira. Paris
mantém ainda um clima de bairro (até porque não é uma cidade realmente
grande – é possível atravessá-la a pé em menos de duas horas) e um
ambiente bem boêmio e libertino. Enfim, eu me sentia em casa.
Obviamente há lugares chatos em Paris. A Champs Elisée é um deles, não
muito diferente de qualquer boulevard comercial pelo resto do mundo, com
grandes lojas de departamento e docerias metidas a besta, que cobram 17
Euros pelo que uma amiga chamou de “o melhor doce do mundo”. Mas no geral
Paris tem o clima suave e iluminado dos filmes de Truffaut, onde tudo
sempre acontece em um domingo.
Quando fomos pegar o ônibus, eu disse a Stephen que precisava comprar mais
tíquetes. Ele simplesmente disse: come and do as I do – subiu no
ônibus, disse bonjour ao motorista e foi sentar-se no fundo. Eu sentei ao
seu lado bastante tenso, achando que todos nos olhavam e que provavelmente
algum fiscal surgiria, mas Stephen disse: relax, in Paris the driver
only drives. Em Londres o motorista desligaria o motor e só partiria
quando descêssemos, em Paris parece que há uma multa de 40 Euros para quem
for pego sem tíquete no ônibus, mas ninguém nunca viu o fiscal.
Em outro momento fui passar na roleta do metrô, meu tíquete travou e
imediatamente uma jovem ao lado perguntou se eu queria passar
com ela. Coisas semelhantes aconteceram mais de uma vez. Causa alguma
empatia estar em uma cidade onde nem de longe você se sente controlado ou
submetido a regras rígidas e gratuitas. Toda anarquia saudável é muito bem vinda.
Terminamos a noite em um pé-sujo, onde marcamos com a amiga de uma amiga, Claire. Bebemos, bebemos e falamos sobre literatura, política e enfim, as
coisas de sempre. Eles não conheciam nada da cultura brasileira, nada além
do futebol. Coloquei-os então a par do que fosse possível. Apresentei
Sousândrade, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Haroldo de Campos. Quando
íamos embora, Claire passou um cheque para pagar a conta e eu perguntei
qu´est-ce que c´est?, querendo dizer por que você está pagando a
conta sozinha?, e ela respondeu bem didáticamente: isso se chama cheque, se dá no
lugar do dinheiro e o valor é descontado de sua conta no banco. Sem
encontrar sinal de cinismo ou brincadeira em sua fala, respondi: ah,
sim, já estão implantando isso no meu país, só que anotamos o valor em um
pedaço de papel de caderno e carimbamos com gordura de camelo.
Para se redimir da gafe, Claire me levou, no dia seguinte, para conhecer
alguns lugares em seu entender turísticos: o bairro chinês, lojas
de especiarias, lojas de bolos de casamentos exóticos, pinacotecas,
cenários de filmes famosos e livrarias especializadas em material raro.
Passávamos em frente a um prédio em obras quando ouvi um pedreiro chamar a
outro, aos berros, por Lulu. Comecei a rir e Claire não compreendeu, pois
nada podia convencê-la de que a um ouvido não francês Lulu fosse
realmente afeminado para um pedreiro - sempre os mesmos problemas de tradução cultural. Os mendigos da cidade, como sempre,
eram engraçados e chatos, gritando coisas às vezes poéticas às vezes xenofóbicas aos turistas. Jantamos em um minúsculo restaurante chamado
Chez Mae, que era na verdade o ateliê de costura que a senhora chinesa
adaptava durante a noite para vender comida com molho agridoce.
Cabiam mal oito pessoas e era curioso como a Sra. Mae criava um ambiente
de descontração onde todos os presentes passavam a conversar entre si.
Stephen, por sua vez, me levou para conhecer Pigalli. Queria mostrar-me
alguns bares que segundo ele eram freqüentados por gangsters e
algumas ruas onde poderíamos ver as mulheres da vida. Nada que se
comparasse à sucursal do inferno no Rio, a Vila Mimosa. Foi quando ele me
contou sobre alguns bordéis em Paris no Séc. XVIII que ofereciam o
petit chaud, iguaria refinada e bizarra do universo do sadismo sexual.
Essa prática consistia em induzir meretrizes à febre, com alguma infecção
ou virose, para que a felação fosse feita com a temperatura ideal de 39
graus centígrados. Consigo imaginar poucas coisas mais sórdidas que isso.
Na escadaria da Sacré Coeur havia uma multidão de jovens tocando violão e cantando as músicas bregas de seus países.
Resolvemos sentar ali com eles e ficamos até tarde vendo a Torre Eiffel se iluminar como um farol. Conversamos sobre arte e sobre nossas vidas e ele me falou do filho que havia perdido anos atrás. Pois bem, ali estavam um jovem
poeta de 30 anos e um velho poeta de quase 70, de realidades extremamente
diferentes, cada um com sua história e suas possibilidades, em um momento
que imagino ter sido singular para ambos. O confronto era entre o
imaginário e o não realizado dos dois. De alguma maneira, o que contava
sobre literatura, música brasileira e carnaval, fora dos estereótipos, o
fascinava, da mesma forma que me fascinavam suas histórias de caronas com
Jack Kerouac.
Passei os meus dias na cidade a caminhar e a pesquisar livros. Paris é uma cidade cara, mas não é preciso muito para ter algum prazer. Apesar de pequena, aglomera o maior número de jovens, turistas e coisas para ver. Fumar um cigarro largado na calçada já é alguma coisa. Puxar uma conversa com alguém já é um grande avanço. Sentar em um café ou simplesmente andar ou flertar podem parecer meio clichê, mas fazem muito bem ao espírito. Naturalmente é um tipo de prazer específico, meio narcisista, para quem gosta da vida boêmia ou cultural. Eu gostava de seguir aleatoriamente pelas ruas, observar as pessoas e as lojas, tomando notas de coisas que me interessavam. No fim das tardes eu sentava na beira do Sena, bem no finzinho da Ile de la Cité, e organizava tudo. Quando o sol se punha , ficava lendo e batendo papo na Shakespeare & Co. Depois comprava garrafas de vinho e terminava a noite no ateliê, conversando e fumando com Stephen. Por umas duas vezes, depois que Stephen dormia, eu ainda saía e andava pela cidade de madrugada – o que não deixava de ser um pouco arriscado, mesmo para quem vive no Rio de Janeiro. Em uma ocasião, cheguei a pernoitei ao relento na borda do Sena, após sentar e beber lentamente duas garrafas de vinho barato. Todos precisam ter o seu instante romântico – aquele foi o meu.
Certa vez, no mercado, fui abordado por uma senhora muito simpática. Ela começou a falar de como gostava de todo mundo do bairro e de como conhecia todos desde pequenos. Disse que não avaliava as pessoas pela cor, mas pelo caráter (seja lá o que isso quisesse dizer) e que todos eram seus filhos. Disse que eu era muito simpático e educado. Por fim disse je t’embrasse e me beijou e me abraçou e se foi sorrindo.
Fiquei impressionado com a espontaneidade daquela senhora e como aquilo se distanciava da imagem do parisiense mau humorado e xenofóbico. Em minha estadia, fui excessivamente bem recebido. Aliás, foi lá que percebi como o Brasil é de um pragmatismo capitalista e violento. Lá era bem tratado em qualquer loja que entrasse, ainda que fosse visível que eu não estava interessado em nada. Ficava horas sentado no chão das livrarias da Rue Danton lendo sem ser incomodado. Passava tardes inteiras nos cafés sem que o garçom ficasse me perguntando a cada cinco minutos se eu iria querer mais alguma coisa. Não havia loja que eu não saísse que o atendente não me tratasse com um sorriso e um bonne journée. Certa vez comprei um livro de 1 Euro e paguei com uma nota de 50. O balconista, simpático e cínico ao mesmo tempo, perguntou se eu só tinha aquela. Eu respondi que não, mas que ele me faria um grande favor em trocar para mim – com o sorriso mais simpático do mundo, ele foi lá dentro e trouxe o troco. No Rio talvez a polícia fosse chamada por tal insolência.
E foram comuns as vezes em que comecei um papo com alguma pessoa na rua, no mercado, na padaria. No metrô eu e Stephen iniciamos uma reunião literária com os passageiros em volta de nós. Em um restaurante conversei longamente com um casal que me expunha como Paris tinha ainda algo de socialista, que algumas áreas foram reformadas para manterem classes diferentes na cidade e não só transformá-la numa cidade modelo. Em todo lugar havia uma pré-disposição à cultura e ao debate e isso é fascinante.
Mas talvez o que mais tenha me impressionado na cidade foi o seu clima libertino. As mulheres parisienses, aliás, por si só, já dariam um texto à parte. Ao contrário das mulheres londrinas, elas gostam de flertar, não importando a idade, se estão acompanhadas ou com os filhos. Elas não resistem a retribuir um olhar de admiração. Às vezes são elas que iniciam o flerte e só se percebe depois de algum tempo. Cheguei a flagrar até mesmo algumas policiais trocando olhares com rapazes.
E são incrivelmente charmosas e tão diversas quanto as brasileiras. Impressiona o meticuloso cuidado na vestimenta e na maquiagem. Mais de uma vez, vi mulheres no supermercado que pareciam preparadas para alguma
festa. Não há mães empurrando carrinhos de bebê que não o façam como
modelos desfilando, com vestidos decotados para o verão e o batom
combinando com a chupeta da criança. Cheguei mesmo a cogitar que talvez o
ato de empurrar carrinhos sobre saltos de 12 centímetros torne a tarefa
mais fácil. O mais sublime talvez, e aqui admito meu lado mais carioca, é
reparar no fato de que gostam de usar lingerie sumária e fazem questão de
que todos o saibam.
Imagino que tudo isso seja reflexo da própria mecânica da cidade, toda voltada para um turismo romântico e para a vida boêmia. Todos parecem bem disponíveis e abertos aos relacionamentos (como exemplo disso, cito o livro que ganhei de Claire: Où s´embrasser à Paris). Andando pela cidade, pelos bairros, em qualquer horário – de manhã ou de tarde – é possível encontrar casais simultaneamente aos amassos. Isso não parece grande coisa, mas a verdade é que não se vê cenas semelhantes com tal freqüência em cidades dez vezes maiores como o Rio ou Londres.
Em um final de semana, aproveitando minha estadia como desculpa, Stephen preparou uma festa em seu ateliê, onde conheci alguns atores e
artistas plásticos americanos que viviam na cidade, tudo muito chato e
muito blasé. Duas meninas lindas dessas que destroem a vida de um homem
com seu cinismo vestiam as roupas de uma coleção de robes velhos que
Stephen matinha e se revezavam em fazer charme com os meninos. Eu já havia
passado da idade daquele jogo, mas Stephen parecia embasbacado com elas.
Em certo momento disse para mim estar apaixonado pela de olhos verdes e me
pediu para não dar em cima dela – longe de mim, eu disse. Ele me olhou
muito seriamente por uns segundos, depois foi embora imitando Marlon
Brando no Poderoso Chefão: não se meta comigo.
Era engraçado ouvir o Stephen falando com a beleza dos sotaques grosseiros
das línguas mal faladas, toda vez que se arriscava no francês. Ele se
ajeitava em sua cadeira, contra a mesa de trabalho, em frente ao radinho
que ligava toda noite em uma estação de música contemporânea e, fazendo
careta, dava uma tragada no cigarro. O grupo à sua volta falava, falava,
falava e ele respondia esporadicamente em frases curtas ou com histórias
mirabolantes, fazendo, hora ou outra, algum gracejo com a americana de
olhos verdes. Travaram-se
discussões a respeito do sabor do “pêssego” falado em línguas diferentes e
de como a as palavras tinham cor. Uma das meninas escreveu num papelão:
le monde est une poésie. Elas não podiam falar isso sem algum
prejuízo. Algumas palavras são certas, mas quem as compreende por vezes o
faz de maneira errada. O mundo só podia ser uma poesia se olhado com o
ceticismo dos sábios.
No meu último fim de semana começaria o Marché de la Poésie, o maior evento de
poesia da França, que ocorre anualmente na Place Saint-Sulpice. Resolvi
ligar para Serge Pey e marcamos um encontro em seu hotel, um dia antes de
começar o evento. Presenteei-o com livros da Confraria do Vento e com uma
caixa de goiabada cascão. Serge era muito simpático e falador e me disse
gostar muito da literatura brasileira. Elogiou o concretismo, falou de sua
admiração pela poesia de cordel, já que, segundo ele, este remanescia
diretamente da poesia provençal, que era a tradição poética de Toulouse
e a sua própria inspiração. Disse-me também que Ginsberg (todos o conheram!) havia confessado
a ele que o repente brasileiro era a verdadeira origem da poesia beat.
Não sei até onde essa informação procede, mas que é curiosa, isso é. Por
fim, ele levou-me até um ateliê próximo ao hotel e mostrou-me alguns dos
bastões que ele pintava meticulosamente com seus poemas e prometeu que,
quando vier ao Brasil, pintará o berimbau de minha namorada.
No dia seguinte nos reencontramos no Marché de la Poésie, onde
apresentou-me alguns poetas e críticos franceses. Apresentou-me também seu
filho e sua namorada italiana de cabelos vermelhos. Acabei reencontrando
Nicolle Brossard, escritora que havia conhecido em Coimbra. Ela parecia
contente em me ver, e conversamos durante longas horas.
Mas o Marché de la Poésie não me impressionou. No fundo, sua
estrutura de funcionamento repetia o mesmo processo universal da bajulação
mútua indiscriminada. É surpreendente que o maior evento poético da França
se restrinja a uma pracinha com alguns estandes de livros e um palco. A
praça fica lotada, é verdade, mas só de poetas, com todo aquele clima de
apertos de mão e de privilégios à parte, nada muito diferente do que acontece
por aqui. A coisa se evidenciou ainda mais quando, ao sair da Saint-Sulpice, me deparei com a Fête de la Musique, que acontecia
naquele instante. E aí sim, fica-se impressionado pelo fato de uma festa
poder parar uma cidade e congestionar as estações de metrô em plena
meia-noite de sábado. A Festa da Música acontece em toda a Paris – em cada esquina,
em cada café, em cada pedaço de calçada há um grupo tocando e as ruas
ficam tão lotadas quanto as de Salvador durante o carnaval. Talvez a
explicação para esse contraste entre uma festa de poesia, restrita a
alguns profissionais, e uma festa de música, trazendo pessoas de toda a
Europa, seja muito menos complexa do que costumamos cogitar. E não há, naquele caso, a
desculpa de bandas de axé amparadas por grandes mídias, já que os grupos
que participam da festa são independentes e vão por conta própria. Talvez
a explicação esteja na postura dos próprios poetas ao fazerem justamente o
contrário do que pregam e ao que de fato a poesia se propõe. Se a poesia
surge sempre da proposição de outras realidades possíveis, um ato
indignado contra qualquer sistema estabelecido de pensamento, os poetas fazem
de tudo para se enquadrar nos mais vulgares valores estabelecidos,
reproduzindo os mesmos vícios, as mesmas politicagens, os mesmos jogos de
interesse. É aí que a própria poesia se torna um discurso, acima de tudo,
vazio.
Stephen, Claire e eu assistimos alguns grupos de música pelas ruas e
depois sentamos para uma última taça de vinho – no dia seguinte eu
partiria de Paris. O grupo de música instrumental que iria tocar no café
onde estávamos teve que interromper a apresentação porque no café ao lado
a banda era eletrificada e muito mais barulhenta. Mais tarde surgiu uma
banda de percussão multi-étnica bastante empolgante. Eu acompanhava
batucando com o garfo em taças de vinho, que Stephen ia enchendo com diferentes
níveis de água, para dar notas diferentes. Havia um clima geral de festa e até o garçom interagia com a batucada. Fomos todos para o ateliê e abrimos uma garrafa de vinho do porto super-cara que Claire
havia comprado. O vinho só não era tão bom quanto as edições da Gallimard
com as obras de Artaud, que recebi dela. Toda despedida é triste, mas
aquela foi estranha. Acabamos cochilando e Claire partiu enquanto eu
dormíamos.
Acordei cedo no dia seguinte e, sem despertar Stephen, parti de metrô para o Charles de Gaule, para pegar
o avião para a Ucrânia, onde finalmente me arriscaria na tão absurda
floresta atômica de Chernobyl. O sonho terminava e o pesadelo iria
começar.
leia os textos
anteriores
MÁRCIO-ANDRÉ é
poeta, ensaísta e editor, autor dos livros Movimento Perpétuo e Intradoxos
e coordenador do projeto Arranjos para Assobio, de texturas poéticas e realidades experimentais (http://arranjos.confrariadovento.com).
Trabalha na tradução de poesia de Arnold Flemming, Serge Pey,
Ghérasim Luca e Bernard Heidsieck. Edita a revista literária Confraria e
passou a ser bêbado depois de ir para a Europa. Sua página é
www.marcioandre.com
voltar ao índice |
imprimir
|