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gustavo bernardo
da metaficção como agonia da identidade
A mão esquerda desenha a mão
direita que por sua vez desenha a mão esquerda. Duas mãos desenham com
zelo uma à outra, aparentemente começando por si mesmas: as mãos já estão
tão definidas que parecem sair do próprio desenho que elaboram, e elas
agora se dedicam a preparar os punhos da sua camisa (como se só então
começassem a desenhar o dono delas mesmas). O desenho dessas mãos
encontra-se pregado por tachinhas num pedaço de cortiça – mas o pedaço de
cortiça que sustenta o desenho é ele mesmo um outro desenho. As mãos que
se desenham não estão completas, se ainda não terminaram de se desenhar,
mas ao mesmo tempo compõem um quadro completo.
A imagem dessas mãos que se desenham a si mesmas é bastante conhecida. Ela
remete a paradoxos importantes, como o de representar a complexidade
através de uma idéia visual simples. Essa imagem é uma litogravura
chamada, em holandês, de Tekenenden handen – em português,
Mãos que se
Desenham. Ela foi concebida em 1948 pelo artista holandês Maurits
Cornelis Escher (1898-1972).
“As mãos de Escher” nos apresentam o enigma da metaficção. Segundo verbete
em dicionário de termos literários, William H. Gass cunhou o termo “metafiction”,
preferindo-o à expressão “anti-romance” – essa expressão antes
desqualifica do que descreve os textos literários que explicitam sua
condição ficcional. Por isso, segundo Gass, “muitos dos assim chamados
anti-romances são na verdade metaficções”.
O redator do verbete considera que a metaficção surge para superar o peso
da tradição realista na literatura americana, subvertendo os elementos
narrativos canônicos como intriga, personagens e ação, para estabelecer um
jogo intelectual com a linguagem e com a memória literária. Ele define a
metaficção como “uma ficção fundada na elaboração de ficções”. Essa ficção
peculiar promove uma separação entre a linguagem e a realidade, isto é,
explora a idéia de que a linguagem não representa ou “diz” a realidade,
mas antes a inventa ou a reinventa. Se essa idéia vale para toda
linguagem, com maior razão deve valer para a linguagem ficcional, que
desde sempre se define como a linguagem da invenção.
Todavia, a definição parece insuficiente. Gass cunhou o termo
“metafiction” a partir da noção de metalinguagem desenvolvida pelos
lingüistas Hjelmslev e Saussure, mas aquilo que o termo designa
provavelmente existe desde o primeiro poema, o primeiro drama, a primeira
narrativa: “signos metanarrativos são traços inerentes à narrativa em
geral, e não meramente características de romances metaficcionais”. O coro
e o “deus ex machina” das tragédias gregas são soluções metaficcionais. Há
quatrocentos anos atrás, o personagem Dom Quixote já criticava a narrativa
das histórias de... Dom Quixote. A metaficção não é, portanto, uma
invenção da literatura anglo-americana contemporânea.
Também não esclarece muito defini-la como uma ficção fundada na elaboração
de ficções. Talvez fosse melhor definir “metaficção” como uma ficção que
explicita, de diferentes maneiras, sua condição de ficção, quebrando assim
o contrato de ilusão entre o autor e o leitor. Esse contrato de ilusão,
porém, é mais recente do que faz parecer o verbete, datando do século que
José Ortega Y Gasset chamou de “centúria realista”, ou seja, do século
XIX.
Marcado pela crença positivista no progresso, o século XIX acreditava que
graças à ciência se estava chegando muito próximo da certeza final sobre a
realidade. Parte substancial da ficção desse período emulava os
procedimentos científicos na sua prática discursiva a ponto de fingir que
não fingia, isto é, de fingir que não fazia ficção mas sim que dizia “toda
a verdade, nada mais do que a verdade, somente a verdade”. Por essa razão,
seria mais adequado chamar de “anti-romances” ou de “anti-ficção” os
textos desse período, e não os textos metaficcionais.
Explicam-se as afirmações de Ortega Y Gasset, no início do século XX:
“toda a arte normal da centúria passada foi realista”; romantismo e
realismo, “vistos da altura de hoje, aproximam-se e descobrem a sua comum
raiz realista”. Por essa perspectiva, pode-se considerar tanto o
romantismo quanto o realismo como um único estilo de época: o estilo
burguês. Esse estilo se caracterizaria pela denegação da ficção (mesmo
quando faz ficção), graças à confiança arrogante do burguês em sua própria
capacidade de descobrir e revelar a verdade (nada mais do que a verdade).
Continuamos burgueses, mas a nossa autoconfiança se enfraqueceu bastante.
O século seguinte ao XIX pode ser chamado de “centúria da incerteza”
graças ao retorno das dúvidas políticas e epistemológicas, em função de
decepções históricas e impasses científicos. É emblemático do século XX o
conhecido “princípio da incerteza” de Heisenberg, pelo qual a observação
de um fenômeno altera o próprio fenômeno, impedindo que se saiba ao certo
como seria o fenômeno antes de ser descrito. Junto com as dúvidas e as
incertezas, retorna, com toda a força, a metaficção: “a metaficção
funda-se numa versão do princípio heisenberguiano da incerteza”. De acordo
com Forrest-Thompson, “na verdade não há outra realidade que não nossos
próprios sistemas de medir a realidade”. Reagindo à denegação realista da
ficção, a metaficção se define melhor como uma ficção que não esconde que
o é, obrigando o leitor a manter a consciência clara de estar lendo um
relato ficcional e e não um relato “verdadeiro” – obrigando o leitor,
portanto, a manter-se em suspenso, ou seja, em estado permanente de dúvida
e incerteza.
A obrigação da ficção não é a de dizer a verdade mas sim a de firmar uma
verdade – a diferença é sutil mas importante. O ato de “dizer a verdade”
supõe uma e somente uma verdade prévia à ação de expressá-la, enquanto que
o ato de “firmar uma verdade” supõe uma verdade possível entre outras,
verdade esta que se constrói no momento mesmo em que se a expressa. Nas
palavras ligeiramente jocosas de William Gass, “a verdade, eu estou
convencido, sente antipatia pela arte. É melhor quando um escritor tem uma
profunda e persistente indiferença por ela, embora como pessoa a verdade
possa ser vital para ele”.
A verdade “mesma” é cinzenta, sensaborosa e, em última análise,
inacessível, ao passo que a verdade do escritor é colorida, suculenta e
intensa: “isso ilustra um princípio básico: se eu descrevo muitíssimo bem
o meu pêssego, é o poema que fará a minha boca aguar... enquanto o pêssego
real se estraga”.
A característica principal da metaficção é a autoconsciência, mas uma
autoficção socrática que sabe o quanto não sabe: de acordo com David Lodge,
“metaficção é uma ficção sobre ficção: romances e histórias que chamam a
atenção para o seu status ficcional e para os seus próprios procedimentos
de composição”. Suas passagens “reconhecem a artificialidade das
convenções realistas mesmo quando as empregam; desarmam a crítica,
antecipando-a; adulam o leitor tratando-o como intelectualmente igual,
suficientemente sofisticado para não ser derrubado pela assunção de que um
trabalho de ficção é antes uma construção verbal do que uma fatia da
vida”.
A ficção que chama a atenção sobre a sua própria condição ficcional
termina por levantar questões relevantes sobre as relações entre ficção e
realidade e, em última análise, questões decisivas sobre a a realidade
mesma. De acordo com Patricia Waugh, “ao criticar seus próprios métodos de
construção, tais escritos não examinam apenas as estruturas fundamentais
da ficção narrativa, eles também exploram a possível condição ficcional do
mundo externo ao texto ficcional”. A reflexão teórica sobre a literatura
se amplia, nesse caso, para uma reflexão filosófica sobre o mundo e a
nossa existência nele: a metaficção “também tem oferecido modelos
extremamente acurados para entender a experiência contemporânea do mundo
como uma construção, um artífice, uma rede de sistemas semióticos
interdependentes”.
Para fazê-lo, o texto metaficcional incorpora o diálogo no seu monólogo,
fazendo o escritor, os leitores e os críticos conversarem entre as
metáforas: “a metaficção assimila todas as perspectivas críticas dentro do
próprio processo ficcional”. Entre os esquemas metaficcionais,
encontramos: romances sobre uma pessoa escrevendo um romance; contos sobre
uma pessoa lendo um conto até se ver de repente dentro do conto que está
lendo; histórias que comentam as convenções da própria história, como
capítulos, títulos, parágrafos ou enredos; romances não-lineares que
possam ser lidos não apenas do princípio para o final; notas de rodapé que
continuam a história enquanto a comentam; romances em que o autor é
personagem do seu próprio romance; histórias que conversam com o leitor,
antecipando, frustrando ou ironizando suas reações à história; personagens
que se preocupam seriamente com a circunstância de se encontrarem em meio
a uma história de ficção; trabalhos de ficção que saem de dentro de outros
trabalhos de ficção; histórias que incorporam aspectos e referências de
teoria ou crítica da literatura; obras que criam biografias de escritores
imaginários; enredos que sugerem aos leitores que eles se encontram em
mundos tão ficcionais quanto aquele dos enredos.
O romance metaficcional confronta, sem a eles se opor totalmente, o
romance realista do século XIX e sua variante no século seguinte, o
romance não-ficcional ou histórico. No romance histórico pessoas “reais” e
personagens históricos interagem com personagens “de verdade” (ou de
mentira, dependendo do ponto de vista). Algumas vezes esse tipo de ficção
é chamado de “não-ficção” justamente porque, ao usar personagens
históricos em meio a personagens-personagens, reforçaria a ilusão realista
de representação do real ponto a ponto. No entanto, o efeito pode ser
semelhante ao da metaficção estrita: “romances não-ficcionais sugerem que
fatos são, em última análise, ficções, e romances metaficcionais sugerem
que ficções são fatos. Em ambos os casos, a história é vista como uma
construção provisória”. A História maiúscula que conhecemos é marcada
pelas molduras textuais que a narram e se mostra um mundo alternativo
dentro de um conjunto de vários mundos alternativos.
Intensificando esse efeito, há uma variante contemporânea do romance
histórico conhecida como “metaficção historiográfica”. Esse tipo de
metaficção critica ou até mesmo falsifica a narrativa histórica
tradicional, revisitando ironicamente as convenções da memória cultural e
manifestando clara desconfiança quanto as grandes narrativas, em
particular quanto a narrativa da História. Segundo Currie, “a importância
da metaficção historiográfica é definida por sua habilidade de pôr em
dúvida as pressuposições do romance ‘realista’ e da narrativa da história,
de questionar a ‘conhecibilidade’ absoluta do passado e de especificar as
implicações ideológicas das representações históricas passadas e
presentes“.
O advento da metaficção historiográfica foi analisado por Linda Hutcheon,
que mostrou como as disciplinas Literatura e História eram consideradas no
século XIX dentro do mesmo campo de aprendizado. Elas se separam no século
XX por força da hiper-especialização, mas também por força da
multiplicação das dúvidas epistemológicas. Entretanto, essas mesmas
dúvidas acabam por reaproximá-las num determinado aspecto: “na ficção e na
história escritas hoje, nossa confiança nas epistemologias empiricistas e
positivistas tem sido abalada – abalada, mas talvez ainda não destruída“.
A lição comum a ambas é a de que o passado existiu um dia, mas nosso
conhecimento sobre esse passado só pode ser transmitido por meio de signos
verbais e visuais. Questiona-se dessa maneira o conhecimento positivo, mas
não se pode e não se quer destruir a possibilidade desse conhecimento.
Logo, no lugar de uma destruição iconoclasta das formas anteriores de
saber, promove-se uma espécie de ceticismo suspensivo. Esse ceticismo
marcará igualmente a metaficção mais ampla, quando ela se dedica, como
veremos um pouco mais adiante, a revelar as convenções do realismo sem,
todavia, ignorá-las ou abandoná-las.
Se a presença do personagem histórico em um trabalho de ficção não torna a
a ficção mais “histórica” mas sim contamina de ficção a história, de modo
equivalente a realidade do autor como pessoa, quando ele se torna
personagem de suas próprias histórias, se esfuma: “quanto mais o autor ou
autora aparece, menos ele ou ela existe. Quanto mais o autor ou autora
alardeia sua presença no romance, mais notável é sua ausência fora dele”.
Entre nós o caso mais emblemático é o de Machado de Assis (como veremos
adiante): quanto mais intervém como autor nos seus romances,
confundindo-se com seus narradores, menos conhecida e mais misteriosa se
torna a sua vida pessoal. Teríamos aqui uma espécie de retomada do
Paradoxo do Mentiroso, quando um cretense dizia que todos os cretenses são
mentirosos: se ele estivesse dizendo a verdade, ele estaria mentindo,
logo, não estaria dizendo a verdade; entretanto, se ele estivesse
mentindo, ele estaria dizendo a verdade, logo, não poderia estar mentindo.
Pela reconfiguração moderna do Paradoxo, um metaficcionista afirmaria, com
toda a sinceridade: “todos os romancistas são mentirosos”.
As definições que Lodge e Waugh nos oferecem para a metaficção são
elogiosas, sugerindo que ela se constitua em uma característica
sofisticada da literatura contemporânea. Suas definições também mostram a
importância da metaficção para compreender não somente a literatura, mas o
mundo em que se faz literatura. No entanto, é preciso lembrar que há
controvérsias. Tom Wolfe, por exemplo, vê esse tipo de escrita como
sintoma de uma cultura literária narcisista e decadente: “Outra história
sobre um escritor escrevendo uma história! Outro regressus ad infinitum!
Quem não prefere arte que ao menos imite abertamente alguma outra coisa,
preferencialmente a seus próprios processos?”
De fato, são muitos os escritores, editores e professores que continuam
defendendo o contrato de ilusão e verossimilhança entre autores e
leitores, reagindo ao que entendem como a moda (ou a overdose) da
metaficção. Escutam-se comumente declarações desse tipo: “ser Machado de
Assis não é para quem quer, só para quem pode”. O elogio a Machado (nosso
escritor metaficcional por excelência, como adiante tentarei demonstrar) é
na verdade um elogio-restrição à metaficção e ao próprio escritor,
praticamente sugerindo que ele permaneça quieto na sua condição de estátua
canônica de maneira a não dar mau exemplo para os jovens escritores.
Manifesta-se dessa maneira a saudade do realismo simples e direto que
Machado tanto criticou – quando afirmou, por exemplo, que “a realidade é
boa, o realismo é que não presta para nada” , ou quando solicitou:
“voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o realismo”. A saudade
do realismo implica, enfim, a saudade do tempo das certezas burguesas.
A importância para compreender a literatura e o mundo em que se faz
literatura ressalta quando se estuda a linguagem cotidiana. Essa linguagem
endossa e sustenta estruturas de poder que naturalizam, isto é, tornam
invisíveis diferentes formas de opressão. Para Waugh, o equivalente
literário da naturalizante linguagem cotidiana é a linguagem do romance
realista e suas convenções de verossimilhança: “a metaficção se ergue em
oposição não ostensivamente contra os fatos objetivos no mundo real, mas
contra a linguagem do romance realista que tem sustentado e endossado tal
visão da realidade”.
Como o realismo pretende descrever “a vida como ela é”, o que subentende a
idéia de que a vida só pode ser de um jeito, a saber, o jeito com que o
realismo a descreve, faz parte das suas convenções a figura do narrador
onisciente que tudo sabe porque, no seu mundo ficcional que supostamente
representa o mundo real, tudo pode ser sabido. O narrador onisciente a que
personagens e leitores não têm o menor acesso atua como invisível alter
ego do próprio escritor, por sua vez representação em miniatura do próprio
Criador. Em contrapartida, “romances nos quais o romancista apaga a si
mesmo criam mundos sem deuses”, isto é, mundos livres de causas
suficientes, onipresentes e onipotentes.
Identifica-se a saudade do realismo, ainda, na ênfase obsessiva dos media
e das próprias editoras na pessoa do escritor: “de fato a recepção de um
novo escrito provavelmente nunca foi tão obsessivamente centrada no autor
quanto hoje”. Semelhante obsessão não se traduz na multiplicação de
resenhas e críticas, mas sim na multiplicação de entrevistas, perfis,
prêmios, leituras públicas e lançamentos performáticos de livros. Os
livros que mais vendem não são necessariamente os mais lidos, simplesmente
porque eles são comprados menos por causa deles mesmos e mais graças à
persona do autor. Se os autores contemporâneos desconfiam tanto da
realidade quanto de si mesmos, seus críticos e leitores resistem a essa
desconfiança com todas as suas forças cognitivas: insiste-se em ver no
autor a origem “real” do seu texto bem como a representação fiel daquele
Criador que criou um mundo só (e não vários mundos, muito menos várias
verdades).
A linguagem realista é basicamente metonímica: “as descrições são
apresentadas como recortes de um todo que seria o mundo real”. Romances
metaficcionais, entretanto, quebram a metonímia e rejeitam aquela noção
divinizante do escritor, entendendo-o como uma construção social tal qual
o leitor: “a metaficção torna explícita a problemática implícita ao
realismo”. Desconfiando da sua própria história, a metaficção promove a
desconfiança em relação à realidade, conseqüentemente, em relação a todo
tipo de realismo. Desconfiando do seu próprio narrador, a metaficção
promove a desconfiança em relação à ciência e à onisciência do escritor.
Desconfiando ironicamente de ambos, a metaficção promove a desconfiança do
leitor em relação à sua própria identidade.
Todavia, cabe uma ressalva importante: “a metaficção explicitamente revela
as convenções do realismo; ela não as ignora nem as abandona”. O combate
ao realismo não supõe a construção de um texto anti-realista ou
completamente surrealista que siga sem peias os prazeres narcisistas da
imaginação. O que o texto metaficcional faz é reexaminar as convenções do
realismo para descobrir, através da sua própria auto-reflexão, um formato
ficcional que seja relevante e compreensível para os leitores
contemporâneos: “ao nos mostrar como a ficção literária cria seus mundos
imaginários, a metaficção nos ajuda a entender como a realidade que
vivemos dia a dia é, de modo similar, construída e escrita”.
Mais do que isso, a metaficção nos ajudaria a viver nesta realidade. Os
textos metaficcionais revelam a indeterminação e a referencialidade
propositalmente incompleta da ficção, sua existência como mundo feito de
palavras: “tais textos, entretanto, enfatizam que a habilidade para
manipular e construir mundos hipotéticos, alternativos ou ontologicamente
distintos é também uma condição da existência social, da vida fora dos
romances”.
Porque ainda somos burgueses, logo ainda relativamente presos à concepção
realista da verdade e do mundo como únicos, a metaficção se dedica a
desequilibrar esta nossa condição e as certezas dela derivadas com boas
doses de ironia. Se a característica principal da metaficção é a
autoconsciência, importa lembrar que via de regra a autoconsciência é
irônica e auto-irônica. Logo, uma característica secundária da metaficção
é a ironia. A ironia se justifica porque a consciência-de-si leva,
paradoxalmente, à dúvida existencial mais profunda. O movimento de
autoconsciência conduz ao beiral de diferentes abismos. Quanto mais me
pergunto quem sou, com o providencial auxílio da história, da biologia, da
psicanálise ou da filosofia, menos sei quem sou, quem fui ou quem serei
nos próximos instantes.
A catarse literária também mostra esse paradoxo da identidade. Quando
Fulano sente se identificar com um personagem ou com uma de suas falas,
imagina que aquele personagem faz ou diz algo que ele sempre quis fazer ou
dizer, como se o autor estivesse pensando especificamente em Fulano para
criar seu personagem e seus diálogos. Uma auto-reflexão um pouco mais
atenta e menos auto-referente, porém, reconhecerá que antes de ler aquele
livro Fulano nunca desejou fazer ou dizer o que o personagem fez ou disse,
simplesmente porque isso não poderia ter lhe ocorrido. A vulgar sensação
de identificação que chamamos de catarse não se deve definir como uma
igualdade primária e prévia entre leitor e personagem, mas sim como o
processo do reconhecimento de si mesmo como alguém que há pouco não se
era, isto é, como o processo de produção de si mesmo.
O leitor não se identifica propriamente com o personagem, mas sim este é
que oferece àquele uma identidade: “não é que nos identifiquemos com o
personagem, mas sim este que nos atribui uma identidade, nos esclarece e
nos define frente a nós mesmos”. Como nossa sensação de identidade pessoal
é difusa, tanto que gaguejaremos se forçados a responder de chofre à
pergunta “quem é você”, e como o personagem ficcional tem uma identidade
muito melhor definida, mercê de sua limitação à folha de papel, de bom
grado tomamos emprestada a identidade e o caráter do personagem que tenha
nos comovido. Dizendo de outra maneira: a leitura do mundo através da
perspectiva diferente do personagem modifica a perspectiva do leitor; ora,
essa modificação implica alteração substancial na sua própria identidade.
Ou seja: a catarse não implica uma identificação que acalme porque,
afinal, se tem uma identidade e se sabe quem se é, mas sim uma mudança de
identidade (ora prazerosa, ora dolorosa).
A própria palavra “identidade” e suas derivadas escondem esse processo.
Quando alguém diz que tem uma “identidade” (e não apenas um documento de
identidade) está na verdade dizendo que é “idêntico” a algo ou a alguém –
que é idêntico a um modelo. A identidade, nos termos da própria palavra e
a despeito de nós mesmos, não é aquilo que singulariza Fulano mas todo o
contrário: a identidade é aquilo que o torna igual a outrem. Quando outrem
é um ser que não existe, todavia, realiza-se sim uma identificação
singularizante – ainda que sempre irônica. Como dirá o matemático, “o
símbolo do eu é provavelmente o mais complexo de todos os símbolos do
cérebro”. Não é possível dizer “eu” não sendo eu, ao contrário de todos os
outros referentes possíveis. Logo, não é possível sair de mim para saber o
que sou – então, só me resta fazer uma pirueta mental e aninhar-me em mim
mesmo através de um meta-movimento equivalente ao da metaficção.
Logo, a metaficção representa a busca da identidade, mas a define como
essencialmente agônica: dizer quem sou é uma necessidade que me exige sair
de mim para poder me ver, o que é uma impossibilidade. Corro atrás da
minha própria imagem como o cachorro corre atrás do seu próprio rabo e
como o uróboro corre desde sempre atrás da sua própria cauda para
devorá-la e devorar-se.
Robert Scholes, no artigo em que procura definir a metaficção a partir da
obra dos escritores americanos John Barth e Donald Barthelme, considera-os
“os cronistas do nosso desespero: desespero por sobre as formas exauridas
do nosso pensamento e da nossa existência.”. O desespero de que se fala
remete diretamente à agonia, isto é, aos momentos de dor que antecedem a
morte, por extensão quaisquer momentos de sofrimento extremo.
Entretanto, o termo grego “agonía” significava antes “luta” do que dor.
Associando os dois sentidos temos que estabelecer algo como uma identidade
não é fácil – no caso artístico, depende da autoconsciência irônica
facultada pelos processos de metaficção. Por isso, a hipótese que será
trabalhada doravante é a de que o enigma da metaficção remete diretamente
ao enigma e ao drama da identidade humana.
O que é bem representado pelo auto-retrato do desenhista argentino Joaquín
Salvador Lavado, mais conhecido como Quino, o autor da Mafalda. No
retrato, Quino parece caprichosamente encarcerar a si mesmo no quadrado
que desenha com o lápis, de modo a ficar preso como numa solitária muito
apertada. O quadrado pode ser visto como um quadrinho, das histórias em
quadrinhos, ou como a moldura de um quadro, o seu recorte definitivo. O
desenho é cômico, decerto, mas, como todo o cômico, fala de nossas
tragédias cotidianas e da estreita margem de esperança que temos. Essa
margem estreita também se encontra representada no desenho: como vemos, o
desenhista ainda não fechou o quadro em torno de si mesmo.
Todavia, falta pouco.
GUSTAVO BERNARDO é
Doutor em Literatura Comparada e professor de Teoria da Literatura no
Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Com auxílio de uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, estuda as
relações entre a literatura e o ceticismo. Autor dos romances Lúcia (1999),
Desenho mudo (2002) e o recém-publicado
Reviravolta (2007)
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