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adriana bebiano


 a língua escande o nada no escuro

 

 

 

Ensandeceu
porque quis dar um nome
a todos os dias da sua vida.

 

1.
 

à porta da casa e da rua
Luna não sabe nem de uma
nem de outra
o nome
todo o lugar é rua todo
casa

2.
 

do tempo nada
sabe a hora do caixote marcada
pelo decreto das entranhas
não há horas
inconvenientes no relógio dela – quando
há visitas ou quando alguém morre
no meio
da conferência do cientista do centro

4.
 

ataques de imodéstia apenas dizem
que está em toda a parte em aconchego
no caixote à lareira qualquer canto
é casa
se te enroscas fechas um dos olhos
deixas
que a tua sombra coincida
contigo

5.
 

só a sombra dorme – ela
encosta-se à sombra com os pés de lã
sem o nome a saída
de emergência é apenas a entrada
para o possível

6.
 

escolhe a catástrofe –
não sabe
se estão abertos ou fechados
os olhos

7.
 

o abismo é um hábito – tira-o
da algibeira
quando bate o vício
da vertigem.

 

 

As coisas miúdas

As coisas miúdas também têm lugar,
nem sempre tudo é sexo ou poder, morte
ou mudança, e os outros nomes todos do afogo
de viver; nem sempre tudo é só desvendamento –
às vezes, é mesmo só apenas ver. Apenas o arquivo,
o sofá, a máquina do café, o copo, mais os papéis
e os tapetes a crescer, coisas tangíveis,
miudinhas e reais, pormenores vagabundos que atrapalham
a fidelidade das unhas e cabelos ao coração das coisas.
Coisas miúdas, também precisam de uma língua
que as diga, uma sintaxe que dê forma e sossego
ao pó do caos. A língua é sempre um risco:

e os animais de sangue quente sabem
que a língua é mais rápida do que a língua,
e a própria luz é lenta e vem depois – ilumina
o que passou, o que foi dito, a ferida já depois de aberta.
Para o futuro, a língua escande o nada no escuro;
veloz a terra abranda, mas não abranda a língua,
que diz ligeira das coisas miudinhas: sofá, arquivo,
livro roubado, estore, tapete, papel timbrado, a flor
do gelo e as jóias bárbaras, os ouros quentes e vermelhos;
às vezes, as ervas; às vezes, a porta por fechar
às vezes, também, uma janela
que abre para os dois lados.
 

 

O louco


A lua é um planeta falhado.
Italo Calvino
 

 

Todos os dias o cruzar de umbrais, um desperdício
de amor; abandonadas unhas, fios de cabelo, vestígios
de sangue, crostas de cicatrizes deixadas pelos cantos
à espera dos respigadores, os que vivem de restos;
cá dentro, dorida e frágil a paisagem mutante
forma novas constelações de esbanjamentos –
corda quebrada pendendo do arco, lua tímida,
carvalho desenraizado, caixa de novo calada;

Na taberna onde se cruzam todos os destinos
o Acaso dispensa as cartas; um Cupido louco bate as asas
em fuga, levando consigo o que resta da razão
para o Vale das Razões Perdidas, o centro do Tarot,
ponto de encontro das opções possíveis –
toda a opção um reverso, uma renúncia e um preço;

o corpo é um tinteiro seco à espera da violência do fogo,
pronto a atear-se, a devorar o coração aberto
a presságios, esquecido o sangue leviano
na enciclopédia fechada dos desejos, onde
a tinta em que o passado está escrito muda de novo
de tom – uma paixão acabada de estrear logo é convertida
em afecto tépido de irmã, apagado o lume
que ateaste pelos caminhos cobertos de palha seca
que percorreste com os teus pés descalços;

dócil, limpas o suor e o pó ao que resta do lençol,
mas os pés serão inutilmente sacudidos – entre os dedos
resistem grãos, poeira de luz; nem toda a água do mar
poderá lavar os teus pés cansados das viagens
através de todas as alcovas, que te trouxeram
até aqui, o centro de um horizonte vazio;

esgotado o tempo lunar, a lua exala um hálito de noite anterior
– vodka, tabaco, coisas por dizer, sufocos; o corpo continua
a ter vinte anos, mas o olhar é muito mais antigo e diz coisas de nada,
coisas sem peso, enquanto à cautela se desvia do fio de lua
para que não tenhas de acolhê-lo nas manhãs dos teus domingos.

Rebelando-se num fremir de crinas
o corpo relincha e empina-se – a mão
reintroduz o desejo.

 

Depois do verão

a viúva desconsolada de sementes e afectos,
as vértebras ciclicamente ofegantes, o sono
a entrar devagarinho, os insectos
a descobrir-lhe o corpo mapeando
novos continentes

o flectir das pernas
entre relações

o cigarro

um fogo de artifício miúdo semeando
cometas luzidios na relva carregada
de noite o verde carcomido
pelo castanho abrindo a fenda
no oceano fundo o copo húmido a roçar-lhe o peito

tornando o sofrimento mais meigo
o silêncio seco e abafado, o coração que abranda
para o ritmo sincopado de um coma
o raspar triste das sandálias na relva
e a noite carcereira.

O rastilho do fogo d’artifício
apodreceu.

Depois do verão,
os devoradores de olhos.
 

 

Epigrafia
 

a especialista em ossos fala
a língua franca das docas

 

ouvida na taberna fora d’horas
a frase abre uma história triste –
convergências epidérmicas excesso
de corpo escrito na areia ossos
ora cansados ora acesos
a ferocidade da nuca frágil à espera
do cutelo a criatura faz-se dócil
o exacto momento antes do grito

fazedoras-de-anjos conhecedoras
de ervas e agulhas pedaços amputados
conservados em vinagre em velhas talhas
o choro manso no limiar da dor explicações
insuficientes actos de contrição demónios
prontos-a-usar superstições bem-fundadas
na nuca o graffiti um epitáfio
deixado pela língua passageira


Lei pregada à porta da igreja:
o desespero é apenas o início.

 

 

ADRIANA BEBIANO é professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, doutora em literatura inglesa contemporânea. É membro da organização dos Encontros Internacionais de Poetas de Coimbra. Verteu para o inglês poemas de Sophia de Melo Breyner Andresen e de Ana Luísa Amaral. Também traduziu poemas de Charles Bernstein. Esta é a primeira vez que publica seus poemas.

 


 

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