revista

 

editorial

e créditos

outros

números

envio

de material

editora

cartas

dos leitores

links

contato

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

jason campelo


testamentos

   


 

A mordaça de Emerson, sugerindo que dizer é citar, condensa várias idéias. Primeiro, linguagem é herança. Palavras são antes de mim; são compartilhadas. Segundo, a questão de eu falar ou citá-las – dizendo como se fosse pela primeira ou segunda vez –, o que significa estar pensando ou imitando, é a mesma questão de eu existir ou não como ser humano e é matéria que exige prova. Terceiro, a escrita, que é parte da mordaça, é expressão da evidência de dizer “eu”, em conseqüência da afirmação de que a escrita é um assunto, digamos decisão, de vida e morte, e ao que se chega é à herança da linguagem, uma possessão de palavras, que não as tira de circulação, antes retorna-as à vida. (Stanley Cavell, Being Odd, Getting Even)

Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que Narrar é Confessar. Confessando demonstro meu poder sobre as palavras, retorno-as à vida, não como senhor delas, mas como desautorizador de mim. Possuí-las e delas dispor para confessar é executar o mais desapegado cogito cartesiano. Pois é, ao mesmo tempo, alegar a vida destas (demonstrando que alguém viveu tempo suficiente para este fim), e mostrar-se longe de sua própria vida, uma vez que, infundir nelas novamente a vida, é despregar a vida de quem as infunde. Assim, confessar é demonstrar o poder das palavras e sobre elas, e notar que, isto feito, perde-se a própria vida no progresso.

O que ele tinha que fazer era fácil. Tudo quanto tinha que fazer era, quando o jantar houvesse acabado e saísse no seu turno, continuar andando. Mas só que não devia sair do corredor; subiria as escadas à direita, que levavam ao castelo. Não tinha que fazer mais nada senão isso: dobrar à direita e subir firme as escadas; e em meio minuto estaria no estreito e baixo corredor que conduzia à sala do reitor através do castelo. E todos os colegas haviam dito que não fora direito; até o aluno do segundo de Gramática, aquele que tinha dito aquilo a respeito do senado e do povo romano. (James Joyce, Retrato de um artista quando jovem)

Quando Stephen confessa, é apenas para tentar atestar o seu poderio por sobre todas as imagens e memórias que o cercam. Forçado, a jeito de quase não querer, Stephen, que houvera quebrado seus óculos graças a uma brincadeira de seus colegas e vira-se impossibilitado de fazer os exercícios na sala, foi pego assim de surpresa pelo padre Dolan, que lhe aplicou injustamente a palmatória. Independentemente do direito romano, ou das noções éticas a respeito do certo o errado, Dedalus confessa. A narração se estende mesmo contra a vontade do personagem. O que se nos configura, neste momento, é que o processo narrativo é um jogo de gato e rato, onde não se sabe a identidade de nenhum dos dois. Assim, tentar atestar o poder sobre a escrita é o mesmo que tentar mostrar-se senhor do mundo preso em grilhões dentro de uma cadeia. Ao mesmo tempo em que te narro, literatura, sou narrado por ti.


E, de fato, confessar um crime e simplesmente narrá-lo são a mesma coisa. Um corpo físico decididamente morto e estendido no chão não significa nada para uma narrativa. Assim, confessar um crime e não confessá-lo também são a mesma coisa, se narro a um ou a outro, não há mudança na escala de valores, simplesmente uma troca de fatores. Exemplo: quando Stephen é acuado por Heron. Este, por sinal, com um nome que parece levemente com algo grego, que tinha cara e nome de pássaro, podendo ser muito bem uma águia sobre o ombro de Zeus ou a coruja que assombra Atena. É interessante notar que Heron, ao acuar Dedalus, usa uma bengala, que ele sempre carregava consigo. A oposição entre a tradicional sobriedade sábia que a bengala carrega consigo e a juventude de Vincent Heron é bem interessante:

Em todo o caso, Byron foi um herético e, além disso, um imoral.


Pode ter sido lá o que quisesse – exclamou Stephen desassombradamente.


Quer isso dizer que tanto se te dá, como não, ter ele sido herege? – ponderou Nash.


Que é que você sabe do que está aí a dizer? – gritou Stephen. – Você nunca leu uma linha de coisa nenhuma, na sua vida, a não ser traduções. E Boland muito menos!


Mas sei que Byron foi um homem à-toa – reajeitou-se Boland.


Agora agarrem esse herege! – ordenou, num berro, Heron.


Num segundo, estava Stephen preso nos braços deles.


Já no outro dia Tate te reduziu – continuou Heron – a propósito daquela heresia no teu ensaio.


E amanhã vou contar a ele esta outra.


Ah! Vai, não é? – disse Stephen – não terá coragem nem de abrir os lábios.


Não terei coragem, eu?


Você, sim. É um medroso, toda a vida.


Fica muito quieto aí! – berrou Heron, golpeando as pernas de Stephen com a bengala.


Era o sinal para o ataque. Nash prendeu-lhe os braços nas costas enquanto Boland apanhava uma tira de palha que estava na sarjeta. Debatendo-se, dando pontapés sob as bengaladas e chicotadas da tira, Stephen foi arremessado contra uma cerca de arame farpado.


Confessa já que Byron não prestava.


Não confesso.


Confessa!


Não confesso.


Confessa!


Não confesso, não confesso.

A confissão já havia sido feita. O teor dela pouco importaria. Narrativa é poder e engano. Enquanto ando por estas ruas, urbanas, calçadas, narro-as. E elas já não as são mais. São minhas e ao mesmo tempo não. Engana-se quem pensa nas ruas como tais. Dedalus simplesmente confessa, narra, sem concordar com a confissão. Se Dedalus concordasse, seria por condescendência ou ironia. Uma vez que um discurso, por si só é erro (erro no sentido de errante, descaminho). Se fosse por condescendência, enganaria a todos, a personagem condescendente não é digna de nada, pois deixa passar por cima de si o poder dos outros, da narrativa e de tudo mais. Se confessasse por ironia, enganaria aos outros, pois o ironista é acima de tudo um sincero completo, engana a todos menos a si mesmo. O jovem Stephen Dedalus era ingênuo demais para ser irônico, poderoso demais para ser condescendente. Se ele confessasse, perderia o domínio da única coisa que é sua, a narração.


Brincar no jogo da confissão é morrer um pouco. Por isso, ao mesmo tempo em que vivo e morro ao sabor de minha narração, passo a ter com a morte uma relação de familiaridade. E é nesse momentos que, ao perder a morte e a vida ao sabor da narração passa-se a conhecê-la como quem vê um parente a cada seis meses. E é nesta relação de intimidade extensa, em que aquele a quem se conhece lhe é apartado espacialmente (estradas ou linhas) que a morte e a vida passam a exercer ao mesmo tempo fascinação e apatia. Tanto a fascinação de viver para dominar a narrativa (ou de narrar para dominar a vida – a tautologia é só aparente) quanto a apatia da constante expectativa e presença da morte, veja-se, por exemplo, a apatia que toca Stephen quando da morte de Parnell: Mas não morrera naquela ocasião, não. Parnell, esse sim, tinha morrido. Não tinha havido missa na capela pelo morto e nem procissão. Ele não tinha morrido, se esvaíra como uma névoa ao sol. Tinha-se perdido, ou errava fora da existência, pois já não existia mais. Que estranho que era pensar nele saindo da existência desse modo, não pela morte, mas se desvanecendo ao sol, ou se perdendo e ficando esquecido nalgum lugar do universo! Seria estranho ver o seu pequeno corpo reaparecer por um momento que fosse: um garotinho com um terno pardo com um cinturão; estaria com as mãos nos bolsos dos lados e as suas calças estariam apertadas, à altura dos joelhos, por elásticos. Ou quando acompanha apaticamente a tristeza de seu pai em descobrir que seus antigos amigos de juventude haviam morrido. Na verdade, em uma narrativa só há mortos. Da mesma forma que meu vizinho morre quando sua presença se esconde detrás da porta que se fecha. Do mesmo modo, Parnell voltara a vida. Ele realmente reaparece no momento em que é narrado, com suas mãos nos bolsos das calças apertadas. Stephen sabe que a diferença entre o vivo e o morto está no foco da claridade do sol e no vislumbre do narrador. E tão estranho quanto isto é ver Parnell vivo, em toda a sua significância como personagem, ao longo de duas meras linhas de narração. E para sempre vivo nestas duas linhas, que tornam-se ao mesmo tempo registro e reanimação do pequeno Parnell. Assim, vida é presença e na tentativa de manter sua fugacidade de brasa de carvão, ele narra. Largando para a literatura o que o espaço não mantém e a memória pode perverter.


Quando narro ou confesso não tenho mais tempo. O tempo é todo das palavras, elas vieram antes de mim e vivem uma vida que não é a minha. Infundir nova vida nelas através de uma nova confissão-configuração, roubar delas a vida que elas já tinham, requer o seu próprio tempo. E cada palavra, cada frase confessa, tem um tempo próprio, suspenso, ínfimo porque não mensurável. Se há o poder da ressurreição do mundo nas palavras (Parnell aparece quando bem entendo), e se há um único tempo possível, é o dos olhos que percorrem as linhas escritas. E mesmo este tempo é mutável (certas linhas e frases fascinam ou deprimem mais do que outras e demora-se tempo demasiado grande nelas).


Desta forma, narrar é ao mesmo tempo apoderar-se do mundo e marcar o seu próprio tempo. Assim, à medida em que Stephen segue seu caminho até a sala do reitor, uma narrativa incidental é concretizada. Os passos de Dedalus até o escritório são marcados pelo número de parágrafos entre o início e o fim da ação. Stephen envelhece porque há pequenos indícios ao longo do livro atestando tal coisa. A saída de Conglowes. Acompanhar seu pai envelhecido de volta a terra natal, notando o desapontamento do mesmo no desaparecimento dos homens de seu tempo. Ouvir de sua mãe que é um universitário. Envelheço junto com Stephen porque percorro as linhas do texto no espaço da página, e o tempo da leitura é a vida dele que se levanta e voa pelos olhos. Assim, ao apoderar-se da narrativa, Dedalus é senhor do próprio tempo, sendo assim vida completa, visto que se encerra quando é preciso. Se este Homo Literatus, esta nova espécie de ser é dono de seu próprio tempo (ou pelo menos tem uma consciência mínima de que o tempo é mais uma instância a se perverter), é preciso declarar a morte ao tempo literal. É preciso figurar que, sucumbir ao tempo dos outros é contemplar sua face morta, olhar para esta cara de caveira, morta por antecipação, uma vez que ciente de que seu tempo passará ao fim de várias rodadas do relógio.


Ao mesmo tempo, a memória também tem cara de caveira para Stephen.

De repente chamou-lhe a atenção qualquer coisa à entrada. Um crânio surgiu suspenso na obscuridade do portal. Uma criatura frouxa como um macaco estava lá, atraída para ali pelo som das vozes e pelo fogo. Uma voz cortante veio da porta e dizia:


É a Josefina?


A velha atarefada respondeu alegremente do fogão:


Não, Ellen, é o Stephen.


Oh!!! Oh! Boa noite, Stephen.

Tanto a senhora quanto o velho Johnny Cashman, amigo de seu pai são portadores da memória da cidade em que vivem e são tratados com indiferença. Da mesma forma, o próprio reitor da antiga escola onde Stephen estudara na infância:

Viu o reitor sentado a uma secretária escrevendo. Havia um crânio sobre a escrivaninha e um estranho e solene aroma na sala, algo assim feito cheiro de couro velho de cadeiras.


O seu coração estava batendo apressado por causa do lugar solene em que se achava, e por causa do silêncio da sala; e então olhou para a caveira e para o rosto de expressão bondosa do reitor.”

Sorrisos à parte, tanto a caveira quanto o diretor são memória. Visto que se sentam sobre a autoridade que esta lhes outorga. Tanto a caveira como a autoridade de uma vida passada, quanto a autoridade do reitor dada por uma memória convencionada. Tanto o tempo convencional mata por antecipação quanto a memória convencionada mata por atraso. Assim, este excesso de memórias que vivem somente por si mesmas, sem mais nenhuma razão, além do próprio conjunto solene do escritório, memória de algo que nunca houve, apavoram Stephen, que teme a isto como ao sono.
 

Assim como a morte, o sono destrói a perspectiva de se dominar uma memória que por si só já é perigosa.

Em Maryborough, adormeceu. Quando acordou, o trem tinha já passado por Mallow, e o pai estava estirado num banco, dormindo. A luz fria da manhã estendia-se sobre a região, campos despovoados e cabanas fechadas. O terror do sono excitava o seu espírito à medida que observava a região silenciosa ou ouvia, de quando em quando, a respiração profunda ou algum súbito movimento do pai durante o sono. A vizinhança de pessoas invisíveis adormecidas enchia-o de estranho pavor, como se o pudessem prejudicar, e rogava que o dia chegasse logo. Tais rogos, dirigidos não a Deus nem a nenhum santo, começaram com sobressaltos de arrepio, visto a gelada brisa matinal entrar pelas frestas da porta do vagão para os seus pés, e acabaram numa enfiada de palavras sem nexo, que proferia ajustando-as ao ritmo insistente do trem. Silenciosamente, com intervalos de quatro segundos, os postes telegráficos riscavam o galope das notas de música, intercalando-se nos compassos pontuais. Essa música furiosa acalmou o seu temor e, apoiando-se contra a borda da janela, deixou que os seus olhos se fechassem outra vez.

Stephen tem consciência de que o sono e a morte aparecem porque o pensamento se detém. E o terror também é deter-se. No momento exato em que ele olha pela janela do vagão, e, através dos calafrios que tanto vêm da perspectiva do sono quanto da brisa na janela, ele se detém. Aterrorizar-se é deter-se perspectivando o objeto. E Stephen, mais que ninguém, detém a gelada brisa matinal na narração; e o fato de ela estar lá, entrando pela janela tateando seus cabelos com agulhas nos dedos enquanto ele abre os olhos demais com medo de fechá-los, torna esta brisa a mais terrífica. Porque nela se reconhece o frio do desamparo, identifica-se com o frio do esquecimento, da morte. E ele corre o risco de, adormecido, ficar invisível. Por isso ele fala. Mesmo que sejam palavras sem nexo. Novamente marcando a confissão, que dissimula a vida, a morte e o tempo, marcando o ritmo das sílabas ao som dos postes de telégrafos. Ele se posiciona no espaço, e sabe que, no exato momento em que se escuda nas palavras desencontradas, ele resiste à efemeridade.



JASON CAMPELO é escritor e tradutor. Concluiu, em 2006, mestrado em Literatura Portuguesa na UERJ. Atualmente desenvolve sua tese de doutorado em Literatura Comparada pela UFF.

 


 

voltar ao índice | imprimir

 

 

confraria do vento

 

 

counter customizable free hit