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igor fagundes
escrito sobre a minha cara
Um dia será o mundo com sua impessoalidade soberba
versus a minha extrema individualidade de pessoa
mas seremos um só.
Clarice Lispector,
Uma aprendizagem ou O livro
dos prazeres
O desafio consiste em escrever sobre um rosto, o meu, quando a preposição
sobre – no sentido de a respeito de – pode inicialmente implicar um
distanciamento, um estar fora da cara para vê-la, reconhecê-la, pensá-la.
Mas, apartada de mim, como ainda chamar minha esta cara que só posso
pensar sendo-a? O mesmo é ser e pensar, disse e ainda diz certa voz
originária. Em busca desse mesmo e desse é, entreolham-se eu e meu
espelho. Vetores de força interpelam-se entre o que os olhos vêem e o que
a boca diz a respeito do que vejo. Na possível – e sutil – fenda entre ver
e dizer, rascunha-se uma completa afinidade ou instável negociação? Ver já
é... pensar!? Dizendo, também não penso? O pensamento emerge nesse hiato,
nesse interstício dos verbos, na iminência e eminência de qualquer ação?
Não obstante, só posso pensar e ver o meu rosto, porque, antes e
sobretudo, ele está diante de mim. Porque, primordialmente, já estou
projetado. Sou um percebido antes e no momento de perceber. Antes de minha
consciência e antes do reflexo, existimos eu e meu rosto.
O que vejo-percebo-digo é um
movimento, uma respiração, um re-criar de mim na medida em que, a cada
pausa, gesto, palavra, sou outro a surpreender o que antes havia sido
percebido e dito sobre... quem? Descrever minha cara é poupá-la. Congelar
seu sentido é perdê-lo. Resta-me, apenas, a aventura, a experiência da e
na linguagem. Concretizada em mim, ela conta sua saga e a própria saga de
dizer. Como caminho, escrever é isto que me permite alcançar o que me
alcança, o que me lança uma intimação (cf. HEIDEGGER, 2004: 154-5). Um
escrever de Clarice persiste, em mim, alcançável: “Eu tenho à medida que
designo” (LISPECTOR, 1986: 172). A memória resgata, em complemento: “mas
eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. (...) É do buscar e
não achar que nasce o que eu não conhecia e que instantaneamente
reconheço” (Id., ibid). Pasmem! Clarice também parece escrita sobre minha
cara.
Que o pensamento sobre o rosto seja participante do rosto e não sua
representação. O rosto não é meu objeto e, assim, escrevo sobre ele na
simplicidade de um sobre concebido como por cima. Escrito sobre/por cima
da cara, inscrito nela, conto-a, conto-me, sou contado. A cara se conta.
Meu texto – o tecido, lugar de sua (nossa) existência.
Lugar onde o homem se confronta com sua realidade originária é a arte.
Nela, anuncia-se um rosto “não mais objeto, mas possibilidade de expansão
e realização do poder constituidor de sentido” (SANTORO, 1994: 52). Da
arte de um poeta, aceito o convite para o embate com o que me faz emergir.
De um poema desconhecido (ou seja, não publicado em livro), escrito por um
poeta também desconhecido (ou seja, pouco publicado), uma cara se dá a
conhecer e pensar, sem a dicotomia entre corpo e alma, sentimento e razão:
sou mesmo esse cara que aparece na minha cara, ainda que nem sempre
apareça, por vezes me ausento, vou dar uma volta
não pense, porém, que fico do lado de dentro da cara, amarrado,
carrancudo: a cara não presta para separar dentro e fora, eu e outro, meu
e alheio
à cara, esse lugar como outro lugar, acontece mudar ao sabor de muitas
coisas do mundo, visíveis, invisíveis, não necessariamente pertencentes a
alguma intimidade
e quando digo a minha cara, talvez nem mesmo minha, ou minha porque
andamos juntos, vou aonde ela vai, na maior parte das vezes
a cara, pelo menos essa minha cara, tem a vantagem de ser a coisa menos
metafórica do mundo, não sendo outra coisa que não seja ela mesma, nem
maior, nem menor, nem pior, nem melhor
por isso a cara não mascara nada, nunca mente, só mentiria se de fato,
descarada, houvesse um único habitante nesse corpo que chamo meu corpo, se
uma só pessoa viesse olhar através do cristalino dos meus olhos
a cara tem a cara que tem e nunca outra cara que não seja a cara que tem,
matriz mutável de todas as caras daqui até o fim de tudo o que vier
acontecer em sua superfície
seus trinta e tantos músculos, o ângulo duro de seus ossos e um punhado de
paisagens e zunidos compõem e descompõem as facetas que uso para encarar o
mundo
na lata, com essa cara de lata, resisto aos sopapos e beijo o que é vivo
Por uma questão de direito autoral, concedo o crédito: o poema, chamado
“escrito sobre a minha cara”, pertence a Caio Meira. Também por uma
questão de direito, ainda autoral, deformo e reformo a assertiva: o poema
não pertence a Caio, mas a todos que, no título, “escrito sobre a minha
cara”, lêem-na como sua. Um escrito sobre nossa cara é o que resulta em
genérico direito, na abertura de um campo de possibilidades e
universalidades que uma obra funda.
Soma-se a tudo isso o fato de que um poeta não descreve uma cara: coloca-a
diante de nós, já que, por obra da imagem, produz a reconciliação entre a
representação e a realidade. Um lugar “onde os nomes e as coisas se fundem
e são o mesmo: a poesia, reino onde nomear é ser” (PAZ, 1982: 129). Logo,
a cara escrita é, na inevitável tautologia, a cara que se escreve, esta e
aquela que, na escuta da linguagem, permanecerá latente, patente, potente:
“Auscultando não a mim mas ao logos, é sábio con-cordar: tudo é um”. O que
se diz na linguagem como logos – o “dizer-que-reúne” – é, “de modo
privilegiado, simultaneamente aquilo que em dizendo se nomeia” (HEIDEGGER,
2006: 21).
Ao anunciar “sou mesmo esse cara que aparece na minha cara”, o poema tem
em vista que o homem é uma manifestação – um ente (to on), isto é, parte
da totalidade do real (ta onta, physis) – e, como tal, pertence ao ser, ao
mesmo tempo que o ser dá-se no ente, em uma “cara”. O homem, diz
Heidegger, resulta desta relação de correspondência entre os verbos que
abrem o poema (ser e aparecer) e entre substantivos que, nele, já surgem
co-pertencidos em sua homonímia – o masculino “cara” (aquilo que é: o ser)
no feminino “cara” (naquilo que aparece).
Autêntico o cara na cara, se entendo por autenticidade tudo aquilo que
algo contém e que é transmissível, ou seja, tudo aquilo que é segundo a
maneira como aparece. No movimento da imagem concebida ritmo, sou a
procura de seu devir, de sua duração, já que “nada, exceto ela, pode dizer
o que quer dizer” (PAZ, 1982: 133). Daí que a imagem de um rosto não o
explica, convida-me a recriá-la e a revivê-la. Por isso, sou esse cara
“ainda que nem sempre apareça”, pois a abertura ao ser abrange o eclodir e
o velar concomitantes: “o que sempre surge apropria-se no velar-se”, eis
outro fragmento originário. É nesse sentido que meu corpo é um fazer a
partir de seu desmoronamento incessante. Aristóteles também escreveu: “o
sendo-ser (o ente) se manifesta de muitas maneiras”. Para que eu possa
eclodir, ausento-me, desapareço em prol de um (novo e remoto, vário e
mesmo) aparecer: “vou dar uma volta”. O lance do fora-de-si, o salto
mortal, a experiência da outra margem, implica um nascer (presença) e um
morrer (ausência). O homem é na manifestação, mas, experiencial, também é
como fenômeno. Em “Ser e Tempo”, Heidegger (2002a: 59-60) diferencia os
termos. Fenômeno equivaleria a um modo privilegiado de encontro, enquanto
manifestação seria uma espécie de referência, que anuncia algo que não se
mostra como algo-que-se-mostra. Em “vou dar uma volta”, sugiro-me ao
encontro de. Talvez por isso Heidegger traduziria a passagem já citada de
Aristóteles por “o sendo-ser torna-se, de muitos modos, fenômeno”.
Os gregos viviam identificados com esse fora, com o exterior, em oposição
ao cristão da interioridade e à modernidade subjetivista. Na voz do poeta,
advirto: “não pense (...) que fico do lado de dentro da cara, amarrado,
carrancudo”. Movo-me, sinto-me arrastado, movido por um grande vento que
me leva para fora, ao mesmo tempo que me empurra para dentro. (Cf. PAZ,
Op. cit.: 123.). Mas a “a cara não presta para separar dentro e fora, eu e
outro, meu e alheio”.
Nesse espanto, olho meu rosto com despreparo, apesar de há muito
preparado, “amarrado” para ser lugar de um eu, para ter uma idéia do que
sou e para conceber tudo como idéia, ponto de vista e objeto de minha
subjetividade (ou “carranca”). Ao querer compreender algo, tenho de
antemão alguma compreensão da qual preciso me livrar. Necessário,
portanto, um esvaziamento dos mecanismos que imponham ao rosto um
conceito. Necessário não congelar a cara em formatos nem aprisioná-la em
conhecimentos adquiridos. Aceito o desconhecido – “o outro”, “o alheio” –
como dimensão que cuido e me cuida sem que se saiba o porquê, sem a razão
que “presta para separar”.
Em ritual metamórfico, o eu se perde para ser de novo um eu, mas em
experiência, sem o subjetivo que submete o acontecimento a uma análise e a
uma predição. Assumo o contingente como necessário. Não se trata de mudar
o mundo ou se conformar a ele. Dentro dessa experiência poética de ser,
ativo e passivo não são a medida. Sigo aprendendo e aprendo com Paz (Op.
cit.), para quem a experiência do outro recupera a experiência da unidade.
Nela, a repulsa e tremor co-existem com a atração. Imobilidade pode ser
movimento. A queda, um ascender.
Sacrifico o intimismo da subjetividade para que surja o eu-obra da vida.
Aceito o convite de assumir a medida da terra no fazer do mundo. Ao
comentar versos de um poema de Hölderlin – “poeticamente, o homem habita
esta terra” –, Heidegger (2002) discorre a disputa entre mundo e terra. A
medida do mundo, diz ele, é a do homem: a matemática. A da terra, não está
sob seu controle. Inclui algo que o mundo pode velar, mas não medir:
abrange o céu, o incomensurável. A essa terra, assim resguardada, o poeta
vela, faz o seu apelo e converge o dizer, o manifestar, o lugar e o fazer:
logos, physis, ethos, poiesis.
Abro-me, então, ao ser no e com o mundo, ao sentimento da terra-corpo, que
independe de conhecimento, poder e querer humanos. A convivência dá-se
neste constante movimento de reunir e separar. Não há eu sem outro, não há
eu fora da experiência do encontro com. O ser não é um ser-para em um
homem em-si-mesmado, impositivo. Se não me projeto, se não me jogo junto
a, não me diferencio e não me completo. Não chego ao instante “cuja
dualidade atravessa da discórdia para o ânimo suave de uma duplicidade
simples.” (HEIDEGGER, 2004: 40).
Simples assim, a cara: “esse lugar como outro lugar”. Apesar de não fazer
sumir minha história pessoal; apesar de não eliminar a face vivencial da
existência, com seus andaimes intelectuais e emocionais; apesar de não
apagar do espelho as rugas de expressão e as marcas físicas, percebo-me em
movimento do eu ao não-eu, do não-eu ao eu. Como possibilidade da
possibilidade do real, sou “lugar” das coisas, em vez de as coisas se
limitarem a ser um lugar para mim. No poema, leio que a cara “acontece
mudar ao sabor de muitas coisas do mundo, visíveis, invisíveis, não
necessariamente pertencentes a alguma intimidade” e faço, mais uma vez
presente, alguma aprendizagem colhida em Clarice, a contar-me que o corpo
de uma personagem “se transformava num dom. (...) era um dom porque estava
experimentando, de uma fonte direta, a dádiva indubitável de existir
materialmente” (LISPECTOR, 1973: 147). Ao narrar a travessia de Lóri, o
livro dos prazeres me diz deste sentir tudo o que existe – pessoa ou coisa
– como um respirar e exalar este “finíssimo resplendor de energia. Essa
energia é a maior verdade o mundo.” (Id., ibid.).
Nessa respiração, a ação de entrar nas coisas à medida que elas me
adentram não se restringe ao campo do “visível”. Nas vivas águas de
Clarice, também encontro o ver como um gesto sem forma, pois o que se vê
às vezes é inefável: “Liberdade mesmo – enquanto ato de percepção – não
tem forma. (...) O pensamento dito ‘liberdade’ é livre como ato de
pensamento. É livre a um ponto que ao próprio pensador esse pensamento
parece sem autor.” (LISPECTOR, 1993: 94-5).
A visão abrange todo o pensar como corporeidade. Uso as mãos como modo de
olhar o não-visto. Os dedos apalpam, escrevem, criam e a pele parece
sempre um arrepio por estar sendo tocada por... Quando me vejo, enfim,
sozinho, percebo a presença constante de algo a trabalhar sem barulho. O
mundo se faz presente. Essa escuta silenciosa é linguagem, é realização de
mundo. O pensamento dá-se nesse aparecer e nessa escuta. Acolhido na
linguagem, pensamento-mundo aparece, acontece. Deixo-o se dizer em mim.
Por isso, entrar nas “coisas do mundo” é estar “ao sabor” delas, sem que
eu esteja de fora e sem que elas tenham um dentro. O pensar poético recusa
tal dicotomia e concebe-as sem um profundo, sem um íntimo, sem uma causa:
apenas o mistério de serem elas mesmas. Nem tudo em um corpo está sob meu
controle. Nem tudo o que é real precisa antes passar pelo crivo
explicativo de minha inteligibilidade. O mundo está aí antes que eu lhe dê
qualquer sentido. Há muito escreveu o poeta Alberto Caeiro: “A realidade
não precisa de mim” (PESSOA, 1974: 236). Há pouco reescreveu Clarice, na
voz de Lóri: “Se não houvesse humanos na terra, seria assim: chovia, as
coisas se ensopavam sozinhas e secavam e depois ardiam secas ao sol e se
crestavam em poeira” (LISPECTOR, 1973: 32). Conforme no poema de Caio (o
meu poema), as coisas não são “necessariamente pertencentes a alguma
intimidade”. Acolho as diferenças de cada uma ou que há, nelas, de céu,
terra, mortal e sagrado em reciprocidade , na aproximação do distante sem
violá-lo e preservando, mesmo no acolhimento, essa distância. A coisa não
é só produzida para ser; ela é também produzida por ser algo (HEIDEGGER,
cf. 2002: 144-49). Daí que não posso ser proprietário de nada. A coisa é
dona de si, embora os seres humanos queiram ser donos dela.
Quando o poema refere-se ao acontecer do rosto, fá-lo por meio de uma
locução verbal. Nele, a cara não “acontece ao mudar”. Leio simplesmente:
“acontece mudar”. As duas ações, como que fundidas, acionam-se
simultâneas. Acontecer já é um mudar. E a mudança, o acontecimento. Por
esse motivo, o rosto não é um estereótipo ao qual posso colar adjetivos.
Insatisfatória qualquer descrição morfológica do que vejo. Minha cara se
funda e se refunda e sempre se constituirá como experiência inaugural.
Fundar um rosto, repito, não é representar uma realidade e assumi-la como
verdadeira. Diz engolir o tremor que a agita, a correspondência ao apelo
de seu vigor, entregando-me a ela na linguagem que nos tem. O fundante é o
zelador do destino do rosto. Faz a vigília do que é dado, no presente, mas
também do que foi, antes, e do que será, no porvir. Todo acontecer é
sempre um começo: “e quando digo a minha cara, talvez nem mesmo minha, ou
minha porque andamos juntos, vou aonde ela vai, na maior parte das vezes”.
O que essa passagem ressalta é a vigência do agir, da ação – “vou aonde
ela vai” – como um contínuo apropriar-se do que me é próprio, um venha ser
o que tu és cantado por Píndaro, a própria travessia que é minha na medida
– e apenas na medida – em que a percorro, isto é, na medida em que “vou
aonde ela vai”, no livre-arbítrio de atender ou não ao seu – a meu –
chamado. De recusá-lo, de escapar ao que me constitui como pró-cura , na
aceitação da incerteza e da dúvida quando das escolhas. O advérbio
“talvez” e a expressão “na maior parte das vezes” ressaltam que, entre o
não e o sim, há sempre uma decisão a intimar, a intimidar, a insistir em
ultimato. No movediço de ser-me e não (de ser o não!), o princípio do
poema perdura: “sou esse cara que aparece na minha cara, ainda que nem
sempre apareça, por vezes me ausento, vou dar uma volta”.
Este, o risco de ir seguindo o pensamento: assumir o exercício de
mergulhar no caos e não conseguir sair mais ou, então, trazer comigo algo
ainda disforme. As vivas águas de Clarice articulam melhor: “Ir me
seguindo é na verdade o que faço quando te escrevo e agora mesmo: sigo-me
sem saber ao que me levará. À vezes ir seguindo-me é tão difícil. Por
estar seguindo o que ainda não passa de uma nebulosa. Às vezes termino
desistindo. (...) Sei porém que só andando é que se sabe andar e – milagre
– se anda.” (LISPECTOR, 1993: 71; 73).
Diante desse “milagre” engendro meu corpo como obra, como isto que
pertence à ação e a ela dá um sentido. Obra, pensa Carneiro Leão (Cf.
1991: 156-7), é presença provocante e não se restringe ao âmbito da ação
humana. Na obra, o já feito e o que faz-opera vêm juntos (a obra “acontece
mudar”) como realidade que é presença mas também ausência/latência de ato.
Poder ou não andar junto com minha cara já desencadeia ação, movimento,
condição humana. A possibilidade radicaliza o real, pois tudo o que ele é
só é a partir dela, concomitante ao fato de ela já o integrar e dele ser
parte.
De início lançado no abismo aberto pelo espelho (aquele que me desfez e
desfaz sujeito e objeto), outro impasse agora me inunda: por tudo o que
disse, meu rosto é, então, obra e coisa? Afinal, a despeito de seu obrar,
leio que “a cara, pelo menos essa minha cara, tem a vantagem de ser a
coisa”. No ensaio “A coisa”, Heidegger (2002) repensa o ente e a obra
dentro de um mesmo horizonte e fundamento. O pensador propõe uma complexa
questão do ente-como-obra-e-coisa. Pois à matéria, à forma e à finalidade
de algo (isto é, suas “causas”) precede o vazio, ou melhor, a tensão entre
ele e o configurado (o ente). Para que se dê o figurar, um não-figurado se
doa e o recebe, embora ainda mantenha com ele uma disputa e persista como
um in-figurável – o que resiste à figuração. Heidegger une coisa e obra na
medida em que a realidade (on, res, coisa) tem, em alemão, o sentido de
agir, operar. Operando, a obra é o sendo do ser, sua verdade. A idéia de
ente como algo individual, substancial é deslocada para o horizonte do
vazio em que se manifesta a totalidade dos entes e a própria vida. A obra
abre um mundo e a abertura ao mundo impulsiona o ser do corpo como obra
(Cf. CASTRO, 2005).
A disputa entre obra e coisa é o que torna este escrito sobre minha cara
alheio a qualquer tentativa de reduzi-la ao aspecto coisal (suas causas
materiais, formais, finais, eficientes; ou conforme os predicativos que a
constituiriam como sujeito; ou, ainda, como simples reunião de sensações).
Minha cara é “a coisa menos metafórica do mundo” porque não pode ser
reduzida a uma figura de linguagem, seja retórica ou gramatical e sob a
qual haveria um fundo, um significado – isto é, uma abstração – a partir
de uma operação representacional sobre o significante. O rosto, ele mesmo,
dá-se em uma ambigüidade poético-ontológica instauradora de tempo e mundo.
A questão do sentido do humano é dita, centralizada e condensada em sua
imagem. Dizer que a cara é um símbolo, uma alegoria, seria uma traição a
ela, subtraindo-lhe a verdade. A cara, em sua simplicidade, traz um saber
imprevisível, um obrar poético, um indizível salto, “não sendo outra coisa
que não seja ela mesma, nem maior, nem pior, nem melhor”.
Quando se tece metáfora alguma assertiva na qual isto é aquilo, tanto isto
quanto aquilo parecem desaparecer em favor de uma terceira realidade, que
já não seria mais nem isto nem aquilo, mas algo resultante da
transposição. Contudo, ao ser outro, algo do mesmo permanece. Não há
síntese na dialética entre identidade e diferença. Isto é aquilo, mas isto
ainda é isto e aquilo não deixa de ser aquilo. (Cf. PAZ, 1982: 121).
Nessas combinações envolvendo isto e aquilo, o que de, fato, apenas e
sempre comparece é o é. A essa dinâmica Deleuze (1997: 92) chamaria devir,
entendido como busca de um desvencilhar-se das formas em proveito de uma
matéria mais intensiva, o campo dos afectos, onde só há relações de
movimento e repouso, velocidade e lentidão, no encontro com o acaso, com o
novo, com o diferente, e suscitando, a partir daí, uma linha de vizinhança
e indiscernibilidade com o que se foi, é, não é e será. Apenas nesse
sentido minha cara pode ser metafórica: não como consolidação de um
artifício alegórico verbal, mas na etimologia originária do meta (entre) +
fora (conduzir, levar). Meu rosto ergue-se metafórico enquanto conduzido
pelo entre, ao entre, no entre: esta linha de vizinhança, terceira margem
onde se engendra o devir.
Na compreensão tradicionalmente figurativa e retórica de metáfora, meu
corpo cai na armadilha do olhar que se derrama e nunca vê o que é, na
procura por adivinhar um algo atrás, seja a partir de nossa razão, ou a
partir de nossa sensibilidade, ou de nossa imaginação. Mas meu viver, meu
ver, meu pensar irrompem subitamente e, nessa experiência do repentino, do
imediato, vida é o “movimento que se move a si próprio a partir de si
próprio, pois não há nada para “fora” ou para “além” disso e que viesse a
ser a causa disso.” (FOGEL, 2004: 50).
Alberto Caeiro me acompanha neste percurso: “Há em cada cousa aquilo que
ela é que a anima” (PESSOA, 1973: 245). O verso poderia dar a entender que
existiria, enfim, um profundo, um atrás e além da coisa. No entanto, é
possível que isto que a anima seja na superfície e esta não possa ser
medida como dentro ou fora. Desse modo, quando falo em entrar nas coisas,
busco me dar conta disso que as anima, disso que elas são. Animar diz: dar
ânimo, dar alma, dar vida. Alma, ou anima, do grego psyché, é “o movimento
que se move a si mesmo a partir de si mesmo”. (FOGEL, 2004: 48). Conforme
encontro em Gilvan Fogel, isto que anima a coisa não pode ser entendido
como um acréscimo, um a mais que desencadeia a coisa e que nela está
guardado: “A coisa, isso que aparece como isso ou como aquilo, é o mesmo
que sua vida, ou seja, coisa é o modo de ser que é insistentemente
fazer-se e tornar-se, desde si mesmo, isso que é” (Id., ibid.: 49).
O poema continua: “por isso a cara não mascara nada, nunca mente, só
mentiria se de fato, descarada, houvesse um único habitante nesse corpo
que chamo meu corpo, se uma só pessoa viesse olhar através do cristalino
dos meus olhos”. Essa noção de mentira está diretamente relacionada com os
princípios epistemológicos a partir dos quais se chega ao real: pela
identidade elimina-se o dionisíaco (a perda de limites) para que tudo seja
verdadeiro (definível, delimitável, identificável); pela representação,
elimina-se a verdade para que tudo passe a ser discurso; pela
historiografia, o real é pensado somente como dinâmica evolutiva binária,
de causa-efeito. Os três, juntos, encaixariam a realidade em sistemas, mas
a vida recusa ao encaixe que lhe propõem.
Ao pensar a música como vigência do pensar poético, Antonio Jardim
salienta que, por esses paradigmas da cultura ocidental, o “real deixa de
ser o que em seu ser se mostra para passar a ser determinado pela medida,
pela identidade e pela idéia como o que é capaz de condicionar as
possibilidades para o que é ou não real, ou melhor para o modo como este
se apresenta no plano da idéia.” (JARDIM, 2006: 72; 74). O músico
assinala, a partir disso, a aceitação do verossímil como capaz de
satisfazer a dinâmica da verdade. Na ditadura da representação e da
verossimilhança, “mais importante do que ser verdadeiro, é
parecer-ser-verdadeiro. No domínio da verdade, a certeza não é suficiente.
A verdade vive do oculto, pois é este e somente este que necessariamente
tende a se mostrar, a se des-ocultar.” (Id., ibid.: 86).
Quando digo que minha cara é obra da vida, subdigo que é obra da verdade,
pois esta – como aletheia, desocultar – é tudo o que opera, em tensão com
o por operar-se, o ainda encoberto, a não-verdade (lethes). A arte que se
encontra no rosto concebido obra é o que sustenta seu dizer pelo que ele
não disse. Não obstante, alguém refutaria: impossível a autenticidade, se
no rosto afivela-se uma máscara! De minha parte, reivindicaria a tréplica:
existe um dar-se também na máscara. Afinal, a máscara é. Relembraria
Aristóteles: “o sendo-ser (o ente) torna-se, de muitos modos, fenômeno”. O
poema escreve que a cara “só mentiria se de fato descarada”. A “mentira”
estaria apenas numa cara sem cara. Numa cara que não fosse cara. Mesmo
podendo ser outra, a cara acontece: “a cara tem a cara que tem e nunca
outra cara que tem, matriz mutável de todas as caras daqui até o fim de
tudo o que vier acontecer em sua superfície”.
A contradição vale, sobretudo, para o cara da cara, para o ser do corpo
que é coisa-e-obra, tendo em vista que, sendo e não-sendo (isto é, podendo
ser, vir a ser), o homem emerge primordialmente paradoxal. Não há “um
único habitante nesse corpo que chamo meu corpo”. Ser temporal, da terra e
do mundo; ser histórico, cultural, social, afetivo – em mim falam muitas
vozes em alarido, para lembrar versos de um Gullar em torno da
co-existência entre vida e morte, da memória que faz do passado, dos
passantes, um presentificável e um presentificado. Se mais de uma pessoa
olha “através do cristalino de meus olhos”, é porque sofro os verbos do
outro, do outro vigente, do outro não-vigente mas possível, memorável,
mitopoético. Também vigente, então? Um não-vigente vigente: eis o jorro de
paradoxos que me constitui escrito sobre minha cara. Escrito e por
escrever(-me).
Obra poética, o rosto não pode se restringir ao ente, porque não se lhe
pode atribuir um limite, já que é o próprio agir, o próprio poetar do ser
doando-se como desvelamento e velamento; caminho que conduz a lugar nenhum
e é tão-somente uma experienciação: nunca este ou aquele ente, mas o real
realizando-se. No devir de Pessoa, sempre revisitado, um Álvaro de Campos
desejoso dá a (des)medida: “Viver tudo de todas as maneiras, / Viver tudo
de todos os lados, / Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao
mesmo tempo”(PESSOA, 1983, 76).
Se há uma essência humana é esta: a do cumprimento do homem com o
ilimitado – a “matriz mutável”, possibilidade da possibilidade, “o
estranho ente que é ente nenhum, mas tão-só o que pode ser” (FOGEL, op.
cit.: 51). Obra-humana: coisa nenhuma e todas as coisas; o limite e não
limite em que tudo e nada entram em disputa . E limite diz a “superfície”
da cara, este dentro e fora unificados como atrito do raso e profundo: “só
aí raso e profundo se fazem presentes, evidentes, à medida que um guarda e
resguarda o outro na diferença” (Ibid: 54).
O lugar da reunião, aquele em que a cara e o cara se mostram inteiriços, é
superfície, é limiar, é corpo muito além do orgânico, muito além dos
membros biologicamente definidos: “seus trinta e tantos músculos, o ângulo
duro de seus ossos e um punhado de paisagens e zunidos compõem e
descompõem as facetas que uso para encarar o mundo”. Escrevo um corpo que
habito em concretude, entendida não como algo sólido, firme, mas na
duração do que con-cresce, ou seja, arrisca-se no movimento junto a, no
“compor” e “descompor facetas”, no “tempo que se espacializa” e no “espaço
que se temporaliza” (cf. SOUZA, 1986: 44). Porém, este rosto para além do
físico e do orgânico é vítima de um mundo que o submete à reificação, à
coisificação, ao que ele é enquanto matéria, forma, finalidade e
eficiência. Seus “músculos”, “ossos”, “paisagens” e “zunidos” têm uma
utilidade, uma finalidade, uma função na teia das relações sociais,
culturais, políticas: “uso para encarar o mundo”.
Em vista disso, eu e minha cara não apenas selamos encontros com o mundo.
Sofremos também os encontrões: “na lata, com essa cara de lata, resisto
aos sopapos”. A palavra “lata” diz a conversão do rosto em utensílio, em
serventia; ou melhor, de terra em mundo; num mundo, cada vez mais, sem
terra. Uma lata não nasce do solo, não despenca das árvores, não
desabrocha em flor. Resulta de uma síntese – industrial, química – de algo
– feito de aço, alumínio etc – com alguma finalidade e que, em nome da
eficiência, deve ser seguro e resistente, mantendo suas características
originais ao proteger um produto envasado. E o material da lata é, em
geral, reciclável, ou seja, pode ser reaproveitado após o uso.
Por outro lado, uma “cara de lata” pode concentrar, naquilo que lata
suscita de sentido, apenas uma imagem-questão do que não se perde, que se
transforma, regenera-se. Nesse viés, estaria invocando, numa coisa do
mundo, o obrar da terra. Os biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela
trouxeram à ciência a noção de autopoiese para os seres vivos: corpos que
se produzem continuamente a si mesmos, resistentes e recicláveis, neste
jogo de permanecer e mudar (Cf. MATURANA e VARELA, 1995, p. 35). Este “e”
é o terceiro elemento que possibilita a convivência entre o “resistir aos
sopapos” – a destruição, a morte – e o “beijar o que é vivo” – a
construção, o autogerar-se do ser. Gerar, viver, agir dão-se pelo afeto,
pelo pathos. O verbo “beijar”, o último do poema, concretiza o impulso
amoroso como realização do único no vário, dos afetos jogados no
desconhecido para que o isolado ressurja pertencido, em entrega, na
instauração de uma ética/ethos pelo e no eclodir amoroso do homem.
Assim converge o ser em humano: não mais em uma perspectiva da qual se
observa a paisagem fora dela. Ao contrário, num pensamento-acontecimento.
Isto, o que aprendo: quando uma coisa acontece, o pensamento não se separa
do acontecimento, não se descola da textura do rosto e do mundo. Do mesmo
modo que o pensamento não se dá sem um acontecer, este se manifesta como
pensar – lugar em que vige a acontecência. Nessa abertura de um lugar onde
eu e meu rosto, assim como o rosto e as coisas podem ser, o pensamento é
physis e poiesis, a vertigem e o vigor próprio com que o ser não pára de
renascer.
IGOR FAGUNDES
é poeta, jornalista e ator. Conclui atualmente o curso de Mestrado em
Poética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e é autor de três
livros: Transversais (premiado no Concurso Literário Estudantes do
Brasil, em 2000), Sete mil tijolos e uma parede inacabada (2004) e
por uma gênese do horizonte (vencedor do IV Prêmio Literária
Livraria Asabeça, em 2005).
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