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      charles kiefer 
 
      simetrias e leves anacronismos em O Sul  
        
       
      
      No prólogo à edição de Artifícios, de 1944, Jorge Luis Borges afirmou que 
      “O Sul” era, talvez, o seu melhor conto e preveniu os leitores de que 
      tanto podia ser lido como “direta narração de fatos novelescos” quanto “de 
      outro modo”, o que indica a consciência que tinha o autor da existência de 
      uma história cifrada no interior da história visível. O estranhamento, 
      essencial para a irrupção do fenômeno estético, como ensinou Victor 
      Choklovski, é produzido pela tensão e distorção entre as duas narrativas.
 
 Examinemos, pois, os fatos novelescos, a história visível, simples e 
      linear de “O Sul”, e que não ultrapassa os limites do que se convencionou 
      chamar de “realismo”, e, ao mesmo tempo, tratemos de encontrar as pontas 
      dos fios da trama secreta, que instaura o “fantástico”.[1]
 
 Juan Dahlmann, neto de Johannes Dahlmann – o pastor protestante que 
      desembarcara em Buenos Aires em 1871 –, é secretário de uma biblioteca 
      municipal no momento em que a narração se inicia, em 1939, e sente-se 
      “profundamente argentino”. No entanto, para o neto de terceira geração de 
      imigrantes, a certeza de sua argentinidade não é assim tão pacífica, já 
      que precisa construir um passado que lhe dê uma identidade, além de 
      ignorar a história que o ligava à Europa. Por isso, elege o avô materno, 
      Francisco Flores, que teve “morte romântica” – foi furado por lanças 
      indígenas na fronteira de Buenos Aires –, como representante de sua 
      linhagem. Como isto não basta, e certamente por que isto o divide – 
      esqueceria o sangue do outro avô que também lhe corre nas veias? –, cerca 
      o passado que escolheu para si mesmo de ícones de identidade: um 
      daguerreótipo antigo, uma velha espada, certas músicas, o hábito de 
      declamar estrofes do Martín Fierro. Este gauchismo, embora voluntário, 
      nunca foi ostensivo, afirma o narrador.[2] Homem da cidade, o 
      bibliotecário esforça-se por conservar uma fazenda no Sul, herança de seus 
      antepassados. A certeza de que a casa, já desbotada, o esperava no pampa, 
      alegrava-o verão após verão, mas o trabalho e a preguiça faziam com que 
      permanecesse em Buenos Aires.
 
 Certo dia, ao chegar à casa, excitado com a descoberta de um volume das 
      Mil e uma noites, de Weil, Dahlmann não espera o elevador e põe-se a 
      correr escadaria acima para examinar o raro exemplar. O destino não perdoa 
      essa pequena distração do personagem e algo, no escuro, roça-lhe a fronte. 
      A mulher que abre-lhe a porta vê o sangue em sua testa e só então, ao 
      passar os dedos na ferida, Dahlmann percebe que a quina do batente de uma 
      janela recém-pintada o atingira. Naquela noite ainda consegue dormir, mas 
      para acordar-se de madrugada e ingressar num inferno de febre e dor. As 
      ilustrações das lendas árabes decoram-lhe os pesadelos. Depois de oito 
      dias, que lhe parecem oito séculos, é levado pelos médicos a fazer uma 
      radiografia na Rua Equador. Dahlmann sofre com estoicismo o destino dos 
      enfermos, comunica-nos o narrador. Ao saber que estivera a ponto de 
      morrer, chora. A intensidade de uma semana de misérias físicas não lhe 
      permitiu pensar na abstração da morte. No outro dia, o médico anuncia-lhe 
      que pode convalescer na estância.
 
 Se tudo, num conto, é significativo, como ensinou Edgar Allan Poe, o nome 
      da rua em que Dahlmann fez a radiografia – Calle Ecuador – reveste-se de 
      grande importância. Qualquer manual de geografia apresenta a linha do 
      Equador como a coordenada que separa Norte e Sul. A visita à Rua Equador 
      divide o conto, temporalmente, em um antes e um depois, e, espacialmente, 
      em um Sul, misterioso e mítico, e um Norte, urbano e cosmopolita. O 
      indício plantado pelo narrador de Borges assemelha-se àquele outro, de 
      Poe, que se encontra em “A queda da Casa de Usher”. No meio do conto, o 
      narrador do Norte cita um poema, “O solar dos espectros” que, como 
      observou Lúcia Santaella, corta o fluxo narrativo e desenha-se na página, 
      a formar uma fissura em ziguezagues, exata réplica icônica da rachadura na 
      estrutura da mansão.[3] Analogamente, embora sem a força da representação 
      icônica tão bem explorada pelo escritor de Boston, podemos dizer que a Rua 
      Equador é um índice ou metáfora da fronteira que separa, e une, o tempo e 
      o espaço na narrativa de Borges. A ubiqüidade da rua – capaz de ser a um 
      só tempo Sul e Norte – fornece a chave para o deciframento da história 
      secreta do conto. John Dahlmann sai da clínica e atravessa a cidade, em 
      direção à estação de trem, num carro de praça, não sem antes o narrador 
      nos advertir de que a “realidade gosta de simetrias e leves anacronismos”. 
      Resgatado da morte e da febre, “todas as coisas regressavam a ele” na 
      manhã outonal. Enquanto o automóvel cruzava as ruas de Buenos Aires, o 
      narrador lembra que todo mundo sabe que “o Sul começa do outro lado de 
      Rivadavia” e que John Dahlmann costumava repetir que isto não era uma 
      convenção. “Quem atravessa essa rua entra num mundo mais antigo e mais 
      firme”, afirma ele.[4] Se no mundo real a rua que faz divisa chama-se 
      Rivadavia e é reconhecida por todos os argentinos, no mundo ficcional quem 
      metaforiza a fronteira entre dois mundos é a Rua Equador. Uma instigante 
      inversão se estabelece: o Dahlmann-real encontra-se na clínica, na 
      fronteira entre a vida e a morte, e o fruto de seu sonho, o 
      Dahlmann-simulacro atravessa a fronteira real e se dirige ao Sul. O 
      narrador não nos diz, explicitamente, que o personagem sonha. No entanto, 
      em alguns momentos, fornece-nos pequenas pistas, no constante projeto 
      borgiano de transformar o leitor em detetive. O Sul mítico inicia-se antes 
      de Rivadavia – o Sul real – e dentro ainda dos limites do Norte 
      cosmopolita. O desajuste desmascara a ironia: é o Dahlmann urbano quem, ao 
      recusar a fronteira como mera convenção, cria para si mesmo um Sul 
      misterioso. Ainda dentro do táxi, ou do sonho, o personagem vai tentando 
      ver, entre as construções modernas, as antigas janelas gradeadas, os 
      portais, as aldravas, os saguões e os pátios internos de um “mundo mais 
      antigo e mais firme”. Na estação ferroviária, percebe que restam-lhe 
      trinta minutos antes da partida do trem. Lembra-se, então, de um bar na 
      Rua Brasil, próximo dali, onde um “enorme gato se deixava acariciar pelas 
      pessoas, como uma divindade desdenhosa”.[5] Entra no bar e toma um café. 
      Ao acariciar o pêlo negro do gato, Dahlmann pensa que aquele “contato era 
      ilusório e que estavam como que separados por um cristal, porque o homem 
      vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal na atualidade, na eternidade 
      do instante”.
 
 De volta à estação, escolhe um vagão quase vazio, acomoda-se e retira da 
      valise o livro que fora o causador de sua desgraça, As mil e uma noites. O 
      narrador faz o personagem refletir que viajar com aquele livro era “uma 
      afirmação de que a desgraça tinha sido anulada e um desafio alegre e 
      secreto às frustradas forças do mal”. Lê pouco, no entanto. A manhã e o 
      simples fato de existir parecem-lhe mais fantásticos que os “milagres 
      supérfluos” de Sherazade.
 
 E então, no meio da narrativa, o narrador afirma: “Amanhã despertarei na 
      estância, pensou, e era como se a um tempo fosse dois homens: o que 
      avançava pelo dia outonal e pela geografia da pátria, e outro, encarcerado 
      num sanatório e sujeito a metódicas humilhações. Viu casas de tijolos sem 
      reboco, esquinadas e compridas, a mirar infinitamente a passagem dos 
      trens; viu cavaleiros nas estradas empoeiradas; viu sangas e lagoas e 
      fazendas; viu grandes nuvens luminosas que pareciam de mármore, e todas 
      essas coisas eram casuais, como sonhos na planície”. O uso do itálico, por 
      Borges, indica, com sutil maestria, que aquele é um pensamento duplicado: 
      na clínica, o Dahlmann real pensa que amanhã poderá despertar na estância, 
      e, no interior do sonho, o simulacro o repete, num jogo de elegantes 
      simetrias. A oração tem a mesma função ubíqua da Rua Equador. Como afirmou 
      Rosa Pellicer,[6] a respeito de “El Zahir” e “El Aleph”, também em “O Sul” 
      os planos real e imaginário se fundem, para dar passagem ao fantástico. 
      Para ela, o que define a obra borgiana é ser uma escritura no espelho, 
      escritura que não apenas inverte, mas duplica e multiplica a realidade.
 
 Aceitar, pois, a história de Dahlmann como uma narrativa realista, linear, 
      de meros “fatos novelescos” é reduzi-la a uma insignificância, mas lê-la 
      de “outro modo”, como o autor o desejava, é ingressar nos mistérios da 
      ubiqüidade de um universo de simetrias e reverberações, de paralelismos e 
      alteridades, em que o mito recobre irremediavelmente a realidade.[7] Na 
      medida em que o trem se desloca (metáfora do tempo) em direção ao Sul 
      (metáfora do espaço e do passado perdido), todas as coisas se transfiguram 
      e como que adquirem uma aura onírica: “Já o branco sol intolerável do 
      meio-dia era o sol amarelo que precede o anoitecer e não tardaria a ser 
      vermelho. Também a cabine era diferente; não era o que fora em 
      Constituição, ao deixar a gare: a planície e as horas a haviam atravessado 
      e transfigurado. Fora, a sombra móvel do trem se encompridava até o 
      horizonte. Não perturbavam a terra elementar nem povoações nem outros 
      signos humanos. Tudo era vasto, mas ao mesmo tempo íntimo e, de alguma 
      forma, secreto”. Assim, diante dessa paisagem insólita, mítica e/ou 
      onírica, Dahlmann “pôde suspeitar que viajava ao passado e não somente ao 
      Sul.[8] Imerso neste outro universo, e noutro tempo, já não o espanta a 
      súbita parada do trem, nem pede explicações ao cobrador – o que certamente 
      faria na vida real –, “porque o mecanismo dos fatos não lhe importava”.[9] 
      Caminha devagar, aspirando o ar da noite que vem descendo sobre a 
      planície, até o armazém, que dista dez ou doze quadras da pequena estação 
      perdida no meio do campo, onde, disseram-lhe, conseguiria alugar um carro 
      que o levasse até a estância.
 
 Prisioneiro de um imaginário constituído de figuras literárias, afinal, 
      mais que bibliotecário Dahlmann era leitor, até a arquitetura do armazém 
      lhe traz à lembrança uma gravura vista numa velha edição de Paulo e 
      Virgínia. Ao entrar, tem a impressão de reconhecer o dono do armazém, mas 
      percebe o engano: ele era parecido com um dos empregados da clínica! 
      Depois, o homem se dispôs a mandar preparar uma charrete para levar 
      Dahlmann à estância. Mas este preferiu ficar e comer alguma coisa, para 
      “agregar outro fato aquele dia e para passar o tempo”.
 
 Alguns arruaceiros comiam e bebiam, ruidosos, numa mesa qualquer. Dahlmann 
      não lhes deu muita atenção. O que o impressionou foi um “homem muito 
      velho”, acocorado no solo, apoiado no balcão, “imóvel como uma coisa”. A 
      descrição é magistral: “Os muitos anos haviam-no reduzido e polido como as 
      águas a uma pedra ou as gerações dos homens a um ditado. Era escuro, 
      pequeno e ressequido, estava como fora do tempo, numa eternidade”. 
      Imediatamente o paralelismo com o gato, divindade desdenhosa, se instaura. 
      A simetria entre os bares também é digna de nota. E Dahlmann registra com 
      satisfação a indumentária típica do gaúcho, desses que só existem ainda no 
      Sul. Depois, acomodou-se junto a uma janela e quedou-se a fitar o campo e 
      o anoitecer. O bolicheiro trouxe sardinhas, carne assada e vinho tinto. 
      Como que a espera de alguma coisa, o bibliotecário deixou-se ficar no 
      armazém, sentindo ainda o “áspero sabor” do churrasco e do vinho na boca, 
      errando os olhos sonolentos pelo local. De repente, sentiu “um leve roçar 
      na face”. Alguém, da outra mesa, jogara-lhe uma bolinha de miolo de 
      pão.[10] Tudo não teria passado de uma brincadeira inconseqüente se o dono 
      do armazém não tivesse chamado Dahlamnn pelo próprio nome. Nomear é fazer 
      existir e isto altera tudo. Ele não se impressiona que um desconhecido 
      saiba seu nome, mas o anúncio desse nome transforma a brincadeira numa 
      questão de honra. Dahlmann, subitamente cioso de valores esquecidos ou 
      ignorados pelos homens do Norte, como a coragem e a honra, toma satisfação 
      com os nativos embriagados. Um deles, um peão indiático, depois de 
      injuriá-lo com pesadas obscenidades, saca um grande punhal e o desafia a 
      duelar. O dono do armazém, trêmulo, recorda que Dahlmann está desarmado. 
      Então, o velho gaúcho, “símbolo do Sul”, atira-lhe uma adaga, que cai-lhe 
      aos pés. Ao apanhá-la, Dahlmann compreende que esse gesto sela o seu 
      destino: terá de lutar e a arma na sua mão inábil mais que defendê-lo será 
      uma justificativa para sua morte. Os conhecimentos do bibliotecário sobre 
      duelos são, mais uma vez, literários: que os golpes devem ser dados de 
      baixo para cima e com o fio para dentro.
 
 Honrado, embora bêbado, arruaceiro e fanfarrão, o compadrito o convida 
      para sair ao campo, pois seria uma indecência e uma injúria duelar sob um 
      teto. Os homens saem e o narrador conclui: “Sentiu, ao atravessar o 
      umbral, que morrer num duelo de punhais, a céu aberto e atacando, teria 
      sido uma libertação para ele, uma felicidade e uma festa, na primeira 
      noite do sanatório, quando cravaram-lhe a agulha. Sentiu que se ele, 
      então, tivesse podido eleger ou sonhar sua morte, esta é a morte que teria 
      elegido ou sonhado. Dahlmann empunha com firmeza o punhal, que talvez não 
      saberá manejar, e sai para o descampado.”
 
 Já sabemos que a “realidade gosta de simetrias e leves anacronismos”, como 
      nos ensinou o narrador borgiano. Nem será preciso acrescentar que se trata 
      da realidade do texto, pela qual só o narrador responde. Ativos 
      participantes desse jogo de espelhamento, podemos fazer corresponder agora 
      outros sistemas ao conjunto. Estabeleçamos, pois, um paralelo entre o que 
      disse o autor, sujeito fora do texto, de que há mais de uma forma de se 
      ler o conto, e a afirmação do narrador, sujeito no interior do texto, de 
      que a realidade gosta de simetrias e leves anacronismos. Se à “narração 
      dos fatos novelescos” correspondem as simetrias, ao “outro modo” 
      corresponderão os anacronismos? Assim, o leitor que fizesse somente a 
      primeira leitura, não ultrapassaria os limites do realismo. Prisioneiro da 
      causalidade dos “fatos novelescos”, tal leitor não poderia ignorar que as 
      mortes tolas do avô e do neto são simétricas, como o são as ruas Equador e 
      Rivadavia, o carro de aluguel que levou Dahlmann à clínica e o que o 
      conduziu à estação ferroviária, o bar da Rua Brasil e o armazém de 
      campanha, o leve roçar da janela e da bolinha de pão, o gato e o velho 
      gaúcho, etc. O outro leitor, que investigasse os “leves anacronismos”, 
      mergulharia num outro gênero de literatura, cuja causalidade comporta a 
      existência simultânea de dois bibliotecários, um na clínica e outro no 
      trem. Se o primeiro objetasse que a prova do realismo do conto e da 
      existência uma de Dahlmann é o livro que levou escada acima, e que depois 
      carregou consigo na sua viagem ao Sul, As mil e uma noites, ouviria do 
      segundo a história de Coleridge, tantas vezes citada pelo escritor 
      argentino, do homem que trouxe do sonho uma flor murcha. No conto de 
      Borges, o bibliotecário que ingressa no sonho carrega consigo um exemplar 
      do livro-símbolo dos contadores de histórias. O leitor-detetive poderia 
      ainda acrescentar outro não tão leve anacronismo: ao final da narrativa, 
      os tempos verbais passam do pretérito imperfeito ao presente e ao futuro, 
      porque o Dahlmann do duelo já vive “na eternidade do instante”, esfíngico, 
      fora da sucessão temporal e da causalidade física, divindade tão 
      desdenhosa quanto o gato do primeiro bar, intocável, separado do mundo 
      como que por um cristal, ou quanto o velho gaúcho do outro bar, reduzido e 
      polido como uma pedra pela água, mas tornados todos realidade textual pelo 
      sonho da ficção.
 
   
        CHARLES 
      Kiefer é 
      natural de Três de Maio (RS). Estreou na ficção em 1982 com Caminhando 
      na Chuva. Em 1985 ganhou o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do 
      Livro, pelo livro O pêndulo do relógio. Em 1993, com o livro de 
      contos Um outro olhar e com Antologia Pessoal o escritor 
      recebeu novamente dois prêmios Jabuti. Recebeu também o Prêmio Guararapes, 
      da União Brasileira de Escritores, por O pêndulo do relógio, o 
      Prêmio Afonso Arinos 1993, por Um outro olhar, e o Prêmio Altamente 
      Recomendável para Adolescentes 1986, pela Fundação Nacional do Livro 
      Infantil e Juvenil, para o livro Você viu meu pai por aí?. Edita a 
      revista de contos Bestiário: 
      www.bestiario.com.br.
 
   
      
      
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