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      adolfo montejo navas 
 
      ruído de fundo II   
      
 
      Nossa primeira obrigação com 
      um título é fazer justiça a ele, pois exerce de poética, de compromisso 
      textual, sobretudo quando tem alguma dobra ou ironia embutida. Neste caso, 
      assim deve ser, pois ruído de fundo é o que está em outro plano, 
      ruminando,  rumoreando ao redor. É até um exercício de ética, colocar o 
      ruído de fundo em seu lugar, adivinhar as suas arestas, dimensioná-lo e 
      intercambiá-lo, se fosse necessário, por outras espécies, matérias primas, 
      energias. Talvez por isso, nada mais obrigatório que tentar escutar o ruído de fundo 
      do tempo, a trilha perpétua que às vezes salta de estação, troca de dial e 
      aceita interferências. Vozes e barulhos sem discriminação, registros 
      vários e multiformes para uma ação que não discorre nunca paralela a 
      nossos passos. Se nós somos filhos prediletos do tempo, também fazemos a 
      sua descendência, escrevemos nele com nosso ímã de contingências, ciframos 
      seu rumor de água.
 
 
 MARÇO
 
 16. Na lua do tempo os números minguam, aumentam, renovam e iluminam as 
      calendas.
 
 17. Com o tempo o olhar se volta para dentro.
 
 18. A idade dos homens sai pelas orelhas.
 
 19. Da memória, os relâmpagos.
 
 20. A eternidade como velho poço da memória.
 
 21. Primeiro, de muito se tira pouco; depois, de pouco, muito.
 
 22. Ninguém renuncia ao tempo.
 
 23. Números romanos como resíduos da memória.
 
 24. Aí está o presente fazendo cópias para o passado.
 
 25. Vive-se sobretudo em gerúndio.
 
 26. A memória sempre volta, mas nunca fica.
 
 27. O espelho como diário.
 
 28. As datas mais paradas são as que produzem mais vertigem.
 
 29. Jornada: dedicar o dia a uma tonalidade: vestir-nos da mesma cor que 
      os alimentos que comemos.
 
 30. Somos imagens–movimento contra imagens–tempo.
 
 31. A vida canibaliza o tempo.
 
 
 ABRIL
 
 1. Sobe o agora, desce o antes, se estaciona o depois.
 
 2. O tempo está sempre apontando para nós.
 
 3. No meio do meio-dia, todo um ano atravessado.
 
 4. A morte serve para dar corda aos relógios.
 
 5. Escrito em outro espelho: s/data.
 
 6. Comemos tempo o tempo todo.
 
 7. Esse despertador sabe muito mais do que parece.
 
 8. Vive-se para acrescentar vida ao que já não é?
 
 9. O tempo é o espaço que demora.
 
 10. A morte deveria ser em cômodas prestações.
 
 11. Um destino que não envia notícias.
 
 12. O suicídio dos dias.
 
 13. Uma torneira que conta o tempo em gotas.
 
 14. O esquecimento se cobre de silêncio.
 
 15. Como um ritual, a morte sai todos os dias para passear.
 
 16. A flecha no alvo, mas de outro tempo.
 
 17. Nostalgia dos lugares que já não existem no espaço, só no
 tempo.
 
 18. O tempo é uma verdadeira bomba–relógio.
 
 19. Dói dizer, mas a vida vive de se corromper.
 
 20. A insônia ama as vésperas.
 
 21. Na estação de trem, o último viajante se parece com ninguém.
 
 22. As tardes velam por ter luz própria.
 
 23. O amor também trabalha a morte.
 
 24. Há sempre um espelho que não deixa de nos perseguir.
 
 25. Chega um momento em que as perguntas são maiores do que as mãos.
 
 26. Caça maior: corremos tanto atrás das coisas, que quando param não
 sabemos nos deter.
 
 27. Caça menor: não há motivo pequeno.
 
 28. Com o tempo, a memória se converte em algo parecido a um odor.
 
 29. Todos os anos viram caquinhos.
 
 30. Quando o espaço é pequeno, o tempo tende a se deter.
 
 
 MAIO
 
 1. Reis do instante e súditos sempiternos?
 
 2. Um projeto: dias de ruído e dias de silêncio.
 
 3. Há uma esperança que se chama segunda-feira.
 
 4. O aço do tempo se tempera com a idade?
 
 5. Somos os trabalhadores impenitentes da memória.
 
 6. Demora-se meses, às vezes anos, a lembrar um simples dia.
 
 7. O vazio do domingo está cheio do nada dos outros dias.
 
 8. A lembrança é o filho caçula da infância.
 
 9. Sempre há algo que se põe a salvo da eternidade dos dias.
 
 10. Não são poucas as vezes que a memória pede coisas impossíveis.
 
 11. Quando a vida se encontra com o tempo de frente, produz-se o
 inevitável.
 
 12. A gaveta das causas está mais cheia que a dos motivos.
 
 13. Há distâncias que vivem dentro de uma só medida.
 
 14. A vida desvive o tempo todo.
 
 15. Algum passado se disfarça de presente para se vingar.
 
 16. A vingança dos fatos é que são também interpretações.
 
 .../....
 
 
      
      
 ADOLFO MONTEJO NAVAS 
      é poeta, crítico de arte, 
      tradutor e curador independente. Nascido em Madri, em 1954, mora no Brasil 
      há 14 anos. Publicou 49 silêncios (2004), Inscripciones 
      (1999), Pedras pensadas (2002), Na linha do 
      horizonte/Conjuros (2003), Da Hipocondria (2005), entre outros. Realiza periodicamente mostras de 
      poemas-objeto e poemas visuais.
 
        
   
      
      
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