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nei lopes
Bart Escher, escravo na Jamaica, traficante na
Bahia
Bart navega nesses pensamentos
quando à bela manhã de maio vê entrar, imponente, no porto de São Salvador
da Bahia, a corveta Santíssimo Sacramento. Traz a bordo, além da
tripulação, três africanos em situação completamente diferente daquela em
que normalmente chegam os africanos ao porto da Bahia. Não estão nus nem
chagados; quase não fedem; têm o porte altivo, apesar dos olhos
avermelhados daqueles que se dedicam ao vício abjeto do rum; vestem mantos
rubros transpassados sobre o peito deixando um dos ombros nu; calçam
sandálias; e um deles, o mais imponente, traz na cabeça, sobre a carapuça
de estilo, um chapéu europeu de abas largas e fuma um cachimbo de uns
quatro palmos de pito.
Os negros do cais se alvoroçam. Mas logo vem a explicação: são dois
embaixadores do Dada Tegbessu, mais um língua, intérprete e secretário, o
qual já é conhecido na Bahia. Chama-se Luiz Caetano, escravo fugido,
tempos atrás, do Forte de Ajudá, tido em péssima conta.
Esse Caetano, dizem, é viciado como o pior dos africanos: sodomita,
alcoólatra e dado em demasia ao fumo-de-angola. E é manhoso, ganancioso e
falso como o mais reles português.
A embaixada deve ser recebida protocolarmente. Mas o governador da Bahia,
pelas informações que recebe, fica meio sem saber o que fazer com a
estranha embaixada. Recorrendo, entretanto, à memória de fato precedente,
ocorrido à época de um de seus antecessores, manda hospedá-los, às
expensas da Real Fazenda, no Colégio da Companhia de Jesus.
Agora: como recebê-los; como tratá-los; qual o traje? De novo, a memória
do cerimonial resolve parte da questão. Manda-se cortar-lhes, com urgência
urgentíssima, às custas do erário régio, trajes baratos mas adequados à
audiência. Eis então que na hora mais ou menos aprazada, cá estão os três,
de cetim mas encasacados, de couro reles mas calçados, sem luvas, meias ou
perucas mas de pés, mãos e caras lavadas, para a audiência com o
governador.
Os embaixadores trazem duas cartas, uma para o próprio governador e outra
destinada a Sua Majestade a Rainha ou ao Príncipe Regente, que governa em
seu lugar. Ambas as missivas, escritas em péssimo português, quem sabe
pelo padre brasileiro Pires Ferreira, têm o mesmo teor arrogante,
insolente e até agressivo: o Dadá Tegbessu quer porque quer, e sem
oferecer nada em troca, que os luso-brasileiros assinem um contrato cuja
minuta integra a carta. O contrato, leonino até não mais poder, garante a
Tegbessu exclusividade, em toda a Costa da Mina, no fornecimento de
mão-de-obra escrava a todos os portos do Brasil.
Sem saber o que fazer, naquela verdadeira enrascada – a jurisdição de
Tegbessu estende-se apenas de Porto Novo a Lomé e não a toda a Costa da
Mina – o governador, para ganhar tempo, resolve erguer um brinde à velha
amizade Brasil-Daomé. A aguardente não é das melhores mas tira os
embaixadores do sossego. Eufórico só em ver o atàn gô (a garrafa da
manguaça), Caetano, antes amuado e sonolento, pede “kófò elô gozin” (copo
cheio). E, no comando, faz erguerem um, dois, três, cinco, dez, muitos
brindes. O Migan, um dos embaixadores, com um gesto expressivo e dizendo
“lan hihi” (carne defumada) pergunta pelo “tira-gosto”. Ao que o outro
secunda perguntando por “lenlenkún”, a pimenta.
A primeira batalha está ganha, pensa o Governador, diante da embaixada
escornada nas almofadas do salão. E, aí, lembra-se de Santiago Ximenes e
principalmente de seu sócio jamaicano. Os africanos, por afinidades de
sangue, quem sabe de idioma, ou talvez até de convicções fetichistas,
certamente, eles que são pretos, vão se entender bem com ele.
Bart Escher não fala a língua do Daomé. E muito menos sente qualquer tipo
de afinidade com aquela gente bárbara, feiticeira e sanguinária de Ajudá e
vizinhanças. Afinal, Bart anda perfumado, escanhoado, laço rendado no
pescoço, casaca de seda, corselete de metal e, agora, até peruca branca. E
é assim que se apresenta no palácio do governador, ante os olhos
ressaqueados e espantados dos daomeanos, que nunca tinham visto um negro
assim.
Durante todo o tempo, Bart fala com os daomeanos sem olhar-lhes nos
rostos, como se eles não estivessem ali nem existissem. Envia-lhes seu
recado, em português mas dirigindo-se ao Governador. Que, visivelmente
constrangido, media a conversa, através do infame Luiz Caetano, secretário
e intérprete da embaixada. E, apesar do desconforto, a audiência termina
bem.
Os embaixadores apõem seus alosú, polegares, no documento que o governador
mandou redigir e assinou. Segundo seu inteiro teor, a Bahia se comprometia
a só adquirir escravos do rei do Daomé; e, em cada lote resgatado, a
administração da província se obrigava a fornecer – tudo adquirido nos
bem sortidos armazéns e empórios da “Companhia de Melhoramentos do Brazil
e da África, Importação e Exportação”, empresa recém fundada por Bart
Escher (ou Nketsia) na bela e hospitaleira cidade de São Salvador – a
quantidade correspondente de aguardente, tabaco e armas de fogo.
Os embaixadores permanecem na Bahia cerca de oito meses, aguardando os
trâmites de seu retorno ao Daomé. E durante esse tempo causam ao
governador toda sorte de dissabores e tribulações: metem-se a todo momento
em desordens, bafafás, bololôs e charivaris. E isto pelo hábito de se
embarafustarem por tascas de ínfima categoria e até senzalas, atraídos
pelo bodum das negras, pelo inhaca da cachaça e pelo ritmo bárbaro dos
batuques, sempre conduzidos pelo canalha Luiz Caetano. O governador nada
pode fazer, pois são negros, sim, mas com imunidades diplomáticas.
Outras vezes, os três metem-se horas a fio no palácio, perturbando o
expediente, cobrando providências, apontando falhas, reclamando da
morosidade da máquina burocrática, interferindo na administração, querendo
ver a todo custo satisfeitos os interesses do seu rei... sem saber que ele
os espera nada contente com o resultado, que já lhe chegou aos ouvidos, da
confusa missão.
Até que, finalmente, numa sombria tarde de outubro, parte do porto de São
Salvador da Bahia a corveta Santíssimo Sacramento, levando a bordo três
infelizes condenados a serem passados a fio de espada, sem a mínima
consciência de terem vivido, em terra brasileira, os últimos e melhores
momentos de suas curtas existências.
Nesses momentos, Bart Escher jogou as cartas. Blefou talvez. Mas jogo é
jogo e ele é um jogador. Seu nome é dinheiro, como toda a Bahia já sabe. E
quer cada vez mais, o axante jamaicano.
Quer muito dinheiro, sim. Mas ao invés de guerra, o que esse negro safado
quer mesmo, e muito mais, é amor. E foi para isso que comprou, por bom
preço, o documento falso que traz sempre consigo; que fez abortar a
rebelião de Tacky; que embarcou no bergantim inglês sem saber bem para
onde ia; que pulou fora na Bahia sem ter a mínima idéia de onde estava.
Bart Escher, máscara negra sob a qual se esconde o astuto, orgulhoso,
velhaco e agora rico Kofi Nketsia, o que quer e mais precisa, com
urgência, é de um colo branco como o alabastro que não conhece; de lisas
madeixas cor de mel; de coxas lisas e alvas como a neve de que nunca ouviu
falar. O que Bart-Kofi realmente quer, porque é bom mesmo, é mulher,
fêmea. E mulher branca, como aquela Escher, filha do patrão gorducho que
ele deixou esvaída em sangue, cabeça zonza de ganja, corpo moído de dor e
talvez de saudade na casa-grande da plantation jamaicana.
É assim que, neste domingo, Bart, elegante e bem vestido como convém, vai
à missa. Fingindo contrição, vê passar aquela freirinha linda, leve e
solta, toda soltinha, dentro do hábito marrom.
Nesta triste Bahia deste recôncavo século dezoito, qualquer moça com a
idade do século, a qualquer momento e por qualquer motivo, está sujeita,
às vezes sem nem saber os porquês, a ver-se enclausurada entre as frias
paredes de um convento. Como a freirinha que passa, coisa mais linda, mais
plena de graça!
Ela vê Bart também. Trocam olhares furtivos. Atração de contrários,
encontro de complementares. Olhares de sedução recíproca. Seduzem-se.
Dias depois, Bart manda os primeiros presentes, subornando um padre
residente para que leve ao Convento e traga de volta os bilhetes da
correspondência amorosa que, analfabeto, lhe escreve um empregado poeta.
Empregado que um dia, sob encomenda, lhe compõe, endereçado à freira (ou
transcreve, copia, plagia de algum árcade incauto), este soneto:
“Aninha, amada! Se este meu tormento / Se estes meus sentidíssimos gemidos /
Nesse teu peito, nesses teus ouvidos / Achar pudessem brando acolhimento; /
Como alegre em servir-te, como atento / meus votos tributara agradecidos! /
Por séculos de males bem sofridos / Trocara todo o meu contentamento // Mas
se a incontrastável pedra dura / De teu rigor não há correspondência / Para
os doces afetos de ternura; / Cesse de meus suspiros a veemência / Que é
fazer mais soberba a formosura / Adorar o rigor da resistência”
A freira adora o poema. E acede à corte, concordando em ter com Bart um
encontro naquela casa afastada da Vila, no caminho que vai dar na Vila do
Conde, onde ela e outras freiras vão, amiúde, alegres, folgazãs,
prazenteiras, prestar “serviços religiosos”.
O Convento toma por modelo o de Odivelas em Portugal, onde vivem as
amantes mais disputadas pelos nobres portugueses. Moram em celas
luxuosamente decoradas e cortinadas de veludos púrpura, entre sedas,
cetins, cambraias, pratas e porcelanas; lendo romances medievais e poemas
galantes; fazendo e degustando chás orientais; bebendo e comendo licores
exóticos, rebuçados, pasteizinhos de nata. E namorando...
Passados dois meses desse encontro e já senhor de toda a situação, Bart,
como garantia de exclusividade, manda decorar com todo o luxo a alcova de
madre Mariana – sua amada Ana, bela freira de origem italiana, sua piccola
ítala Aninha, que fora posta no convento à força, aos dezesseis anos e sem
nenhuma vocação, por contrariar uma decisão paterna sobre seu destino.
Bart manda decorar a alcova com o máximo de requinte. Veste-a com pele de
marta sobre a pele nua. Desnuda suas cambraias e sedas íntimas, panos de
extremo bom gosto e bom tato, que seus shillings mandaram buscar na
Inglaterra.
Até que explode o escândalo. Madre Mariana prenha. De um preto. Alto,
bonito, cheiroso, limpo, escanhoado. Mas preto, ex-escravo na Jamaica.
NEI LOPES é escritor, compositor, pesquisador, além de encenador e
diretor de musicais para a televisão. No samba, compôs em parceria com
Guinga, Zé Renato, Moacyr Luz, entre outros, e lançou os cds Nei Lopes
- De Letra & Música (2000), com a participação de vários convidados, e
Partido ao cubo (2004). Como escritor, prática que vem exercendo
cada vez com mais freqüência, colabora com inúmeros jornais e revistas,
além de ter participado de importantes antologias como O samba, na
realidade... (1981), e lançado os livros Guimbaustrilho e outros
mistérios suburbanos (2001) e Sambeabá, o que não se aprende na
Escola (2004).
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