|

gerardo dirié
idéias de uma cidade
I - domingo de ramos
Esta manhã pelo céu
com a determinação que dá o
eterno
desfilaram pacientes
os elefantes de nuvens
repetindo filas
até a borda do firmamento.
II
Hoje, os barcos estão vazios,
as velas são cuidadas somente
pelos pássaros
que as vêem chamando com
seus farrapos de tecido fatigado
a costa longínqua.
IV - O número que você não
chamou
A festa nunca pára na secretária
eletrônica da Mulher-Gato...
Mulher-Gato em
Batman o retorno
Amiúde ao voltar para casa
dou uma espiada, para checar.
E ali está
Olhando-me fixo
sem pestanejar, congelada
com seu único olho
de loura alucinada.
V
Os campanários e o ouro
que não se perderam
detrás das nuvens de pombos,
se acumulam no sol
das tardes,
e com o azul
infinito deste céu,
desenham um nome no ar.
Desde teu nome me olhas.
Eu te respiro
no ar,
de memória.
VII
Conta-me essa história
sobre o lago de costas congeladas
e da neve repousando em sua fralda
e de como o vento removia dunas
de brilho branco
varridas pelas luzes dos carros.
Conta-me de como o lado norte
das árvores se tornava branco
e o pára-brisa pálido,
conta-me das risadas que
entreteciam-se no cicio
que as rodas velozes faziam soar sobre
o pavimento nevado.
E do contorno dos edifícios altos,
lembrando casas de povoado
decoradas para o natal
—sketches de casas, dizem.
Estas,
ideas de uma cidade.
Conta-me sobre o chefe índio que
com o bronze do seu peito desafia
a nevasca noturna.
E do sopro
que do lago vem
como um
continuum
dizendo “aaahhhhg”
com sua garganta de marfim, engastando
lágrimas de quartzo
nos olhos dos pedestres
noctâmbulos,
arrebatando-lhes a respiração
agrilhoando-lhes as extremidades
com os braceletes de gelo
que o regedor de todos os ventos
e guardião de todos os suspiros,
beijos e espirros,
abrirá, tomara,
ao despontar a primavera.
IX
—“Quero arrancar esta casa
de cima de mim!
melhor tê-la em terra firme
apontando ao sol ou ao mar
ou ainda uma espiga de janelas
povoadas de caras estranhas
ou da escuridão dormente
que custódios e amantes conhecem.
(Uma mesa de tamanho generoso
com a esperada floreira).
Quero que as folhas do outono
se juntem em um canto do meu toldo
e saber que eu as deixei ali
para que o vento as sacuda.
e sentir ‘esta casa
é minha casa’”.
(E uma
mesa de tamanho generoso,
patas firmes
e a esperada floreira).
Porém,
para a multidão
que espera de pé debaixo da chuva
este é
um desejo a mais
atirado
na fonte
profunda
dos suspiros eternos.
—“Quero arrancar esta casa de cima de mim!” — disse o caracol.
—“Melhor a teria sob os meus pés
e toda ao meu redor
onde meus braços possam se estender
e minhas mãos tocar os ladrilhos
tirar o pó
e imediatamente
girar a fechadura
e minha porta
abrir-te”.
Natureza Morta Holandesa
Essas vagas copas
—quiçá disso sabias
seriam o mórbido
espelho onde os cavalos
de horas prematuras se fundiam
com toda uma multidão
de vaidades.
Dois poemas eventuais
I
Um poema que se chame Aeroportos
deveria falar do trânsito como um estado de alma
deveria falar de aviões migrando como baleias
que lançam gentes a costas distantes.
E deveria listar os beijos deixados,
os buscados e os imprevistos.
Deveria conjeturar sobre negócios promissórios
e sobre fugidas com fortunas ilegais.
Deveria, se fosse o caso, citar as esperas longas
e tediosas e os olhos que se alargam
no horizonte.
Poderia haver algumas linhas (não muitas) sobre os mercadores
de livros de capas brandas, confetes locais e perfumes caros.
Poderia haver uma palavra,
uma idéia,
furtivamente introduzida, que
sugerisse um risco detonante, ou o suspenso
de um seqüestro. Claro,
porém mais que tudo, o
suposto
poema
deveria ser una alegoria
do encontro e do
esquecimento,
do destino
e da lonjura.
II - Café
Este mármore que não é
aquele do eterno repouso
poderia ser como um álbum de fotos
visível somente aos meus olhos
—porque as tarefas que agendo a esta hora
se misturam com lembranças
que me acorrem sem demora:
os minutos intensos em Manhattan
o arco ominoso da ponte Crane
vindo com passo de gigante sobre Brooklyn
o abraço terno e confiado
de uma amizade que leva mais dias
que os que conta o almanaque
o silêncio dos pássaros dormidos
na noite de Bloomington.
Este mármore com seus garranchos
sedimentários poderia
ser um mapa preciso
das viagens que me restam
e dos dias que me aguardam.
Não sei que símbolos registram os abraços
que me recebam ou me despeçam
nem que isóbaras traçam e conectam
ternuras de encontros que se avizinham.
É isto que investigo com curiosidade desconfiada
porque quisera mais estar agora
no destino seguro
dos teus braços que não neste penoso
trânsito incerto
desfazendo marés antigas.
Se a lua saísse sobre
esta mesa modesta...
***
Há dois poemas nesta página:
um fala de mim,
o outro fala de ti.
O meu é como um eletrocardiograma
que sobe e desce trepando
e caindo em bordas afiadas.
Tem todos os T e os P,
os K e os C.
O teu
é suave e se ondula
como as bailarinas com seus umbigos.
O teu
tem todas as vogais.
O meu só crepita.
Leio o meu
Com uma bolacha em minha boca,
O teu
com uma uva em
meus lábios.
tradução de Lucas Magdiel
GERARDO DIRIÉ, nascido em Cordoba, Argentina, é poeta, compositor,
regente, professor e diretor do World Music Ensemble Queensland
Conservatorium, Austrália, com obras apresentadas em grandes casas de
concertos dos Estados Unidos, Europa, América Latina e Ásia. Ganhou, entre
outros, o prêmio da National Tribune of Electroacoustic Music na
Argentina, além de receber sucessivas menções do Standard Awards da
American Society of Composers, Authors and Publishers Esta é sua
primeira seleção de poemas em português. Ele também participa da trilha
sonora desta edição, com a composição Villancico al Nacimiento. Sua página
é: www.gerardodirie.net
voltar ao índice |
imprimir
|