|
|

|

witold
gombrowicz
Philimor, alma de criança
Em fins do século XVIII, um camponês parisiense teve uma criança; a
criança, por sua vez, teve uma criança, que teve uma criança por sua vez.
Depois, houve outra criança... e a última criança, que se tornara campeã
mundial, disputava, certo dia, nas quadras do Racing Club de Paris, em
ambiente tenso e sob torrentes de aplausos, uma partida de tênis.
No entanto, (oh, que traições horríveis nos reserva a vida!) um certo
coronel dos zuavos, que estava sentado na tribuna lateral, tomou-se de
inveja pelo jogo assombroso e impecável dos dois campeões. E, subitamente,
querendo mostrar sua capacidade aos seis mil espectadores presentes, — e
também à amiguinha que o acompanhava — sacou do revólver e deu um tiro na
bola, no momento em que ela voava entre as duas raquetes. A bola estourou
e caiu. Privados da bola, os campeões continuaram, por algum tempo, a dar
raquetadas no ar, mas, exasperados pelo absurdo daquele movimento sem
sentido, caíram nos braços um do outro. Uma torrente de aplausos sacudiu a
assistência.
O caso poderia ter-se resumido nisso, é claro. Mas, circunstância
imprevista, o coronel, em sua excitação, não prestou atenção suficiente
(oh, como é preciso ser atento!) aos espectadores que estavam sentados na
tribuna em frente. Imaginara, não se sabe por que, que o projétil, depois
de ter atravessado a bola de tênis, terminaria sua trajetória; mas
infelizmente isso não aconteceu... e, prosseguindo adiante, a bala atingiu
o pescoço de um espectador. O sangue jorrou da artéria seccionada. A
mulher do ferido quis atirar-se sobre o coronel e arrancar-lhe o revólver,
mas vendo que isso seria impossível, pois estava cercada pela multidão,
contentou-se em esbofetear seu vizinho da direita. Isso porque não havia
outro meio de expandir sua indignação e porque, segundo uma lógica muito
feminina, achava (no mais íntimo recanto de seu subconsciente) que, sendo
mulher, podia permitir-se qualquer coisa.
Mas, evidentemente, as coisas não se desenrolaram como ela imaginara. Pois
o esbofeteado (ah, como nossos cálculos são incertos e imprevisíveis
nossos destinos!) era nada mais nada menos que um epilético em estado de
latência. Com o choque do bofetão, o infeliz jorrou de si mesmo um gêiser.
A pobre mulher viu-se entre dois homens, um dos quais cuspia sangue e o
outro espuma. A multidão explodiu numa torrente de aplausos.
Foi então que, num acesso de pânico, um senhor que estava sentado ali
perto atirou-se em cima da cabeça de uma senhora, sentada mais embaixo.
Esta se levantou, tomou impulso e pulou para a quadra, carregando-o nas
costas, em doida corrida. A multidão explodiu numa torrente de aplausos. E
tudo poderia ter-se resumido nisso. Mas aconteceu ainda (tudo! seria
preciso prever tudo, pensar em tudo!) que a alguns passos dali estava
sentado um pobre-diabo, um obscuro sonhador aposentado que, havia anos, a
cada vez que assistia a um espetáculo público, ardia de vontade de pular
em cima da cabeça das pessoas sentadas mais embaixo, e só a muito custo
conseguia controlar-se. Estimulado pelo exemplo, atirou-se sem mais tardar
sobre seu vizinho de baixo que (era uma funcionariazinha chegada havia
pouco tempo de Tanger) pensou que era assim mesmo, que era moda, e que
essa era a maneira certa de comportar-se nos meios elegantes... Assim
sendo, atirou-se também para a quadra, atenta a que seus movimentos não a
traíssem, denotando alguma timidez.
O setor mais culto do público pôs-se a aplaudir diplomaticamente, para
dissimular o escândalo aos olhos dos representantes das embaixadas e
delegações estrangeiras. Mas deu-se um mal-entendido, pois outros
espectadores menos cultos tomaram esses aplausos como sinal de
aprovação... e cada um pôs-se a cavalgar sua dama. Os estrangeiros
demonstravam espanto crescente. Que saída restava, portanto, a gente tão
fina, diante de tais circunstâncias? Para dissimular o escândalo,
puseram-se também eles a cavalgar suas damas.
E tudo poderia ter-se resumido nisso, quase que certamente. Mas então, um
certo Marquês de Philimor, sentado na tribuna de honra ao lado de sua
esposa e da família desta, achou-se na obrigação de portar-se como um
cavalheiro.
E, vestido num terno claro de verão, surgiu no centro da quadra, pálido
porém decidido, perguntando em tom glacial se alguém, e quem era esse
alguém, desejava ofender sua mulher, a Marquesa de Philimor. E atirou à
multidão um punhado de cartões de visita, nos quais estava gravado: "Philippe
de Philimor". (Ah! Como é preciso prestar atenção, como a vida é difícil e
perigosa!) Fez-se um silêncio mortal.
Subitamente, pelo menos trinta e seis senhores, montados em mulheres de
raça, de finos jarretes, aproximaram-se da Marquesa, a passo, com a
intenção de ofendê-la, para poderem sentir-se tão cavalheiros quanto o
Marquês, seu esposo. Mas a Marquesa (oh, quão louca é a existência!),
apavorada, deu à luz — e ouviu-se, aos pés do Marquês, sob os cascos das
mulheres que relinchavam, um vagido de criança!
O Marquês, subitamente apanhado em flagrante criancice, em terrível,
completa infantilidade, quando até o presente momento agira de modo muito
amadurecido, como um cavalheiro que era, partiu, envergonhado, enquanto os
espectadores explodiam numa torrente de aplausos.
tradução de Álvaro Cabral
WITOLD GOMBROWICZ é
considerado um dos maiores escritor poloneses, tendo recebido o Prêmio
Internacional de Literatura em 1967. Em 1939, de passagem pela Argentina,
viu estourar a guerra em seu país e acabou vivendo por quase trinta anos
em Retiro, trabalhando como bancário, morando em pensões, aprendendo
castelhano e freqüentando os bordéis de Buenos Aires. O conto aqui
publicado não é inédito, mas faz parte de Bakakai, edição raríssima da
editora Expressão e Cultura, publicada em 1969. Gombrovicz é um iconoclasta, delirante e sarcástico.
Escreveu também Cosmos, Pornografia, Ferdydurke, Trans-Atlantico, dentre
outros.
voltar ao índice |
imprimir
|