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índigo
lombriga em
rodelas
Eles disseram que se eu não
gritasse, não doeria. Então, um deles pegou um estilete e mandou eu
levantar a camiseta.
— Nem por um milhão de dólares.
Cortaram minha camiseta. Riram do meu sutiã de ursinhos e disseram que eu
era um desserviço à humanidade. Respondi que eu tinha primos. Aos montes.
Comecei a gritar. Um deles tampou minha boca enquanto o outro riscou minha
barriga com um marcador verde. O risco ia do elástico do sutiã até o
umbigo. Então, o que parecia ser o cirurgião-chefe me abriu com um
estilete e eu desmaiei. Quando despertei, não sei quanto tempo depois, uma
lombriga verde havia se enrolado no pescoço do anestesista. Seus olhos
estavam vermelhos e nem por isso ele chorava. A cabeça da lombriga estava
dentro da sua boca e ele lutava com o corpo dela, para que o resto não
entrasse. Os outros haviam desaparecido. Procurei pela minha camiseta.
Pelo menos eles tiveram a consideração de me costurar de volta. Assim que
eu chegasse em casa eu tiraria os pontos e pediria para vovó fazer um
arremate melhor. Tive que amarrar a camiseta na frente, feito
pirata-mulher. Minha mãe ficaria louca da vida. Ela tem muito medo que eu
me torne uma mulher vulgar, quando crescer. Encontrei minha mochila jogada
num canto molhado do porão. Aquele era o laboratório mais porco em que eu
já havia pisado na vida. Nunca mais, nunca mais eu voltaria àquele antro.
Maldita hora em que fui me apaixonar por André Martins, o energúmeno!
Ah... Eu estava me sentindo com um rato branco. Ele só queria saber de mim
enquanto organismo. Pois ele podia tirar seu cavalinho da chuva. Ele que
arranjasse outra cobaia. Eu precisava de um espelho. Meu cabelo devia
estar todo em pé. Em algum lugar no meio daquela bagunça devia haver um
espelhinho. Queria sair logo dali.
Agora o anestesista estrebuchava, tentando arrancar a lombriga de dentro
da garganta, puxando-a com as duas mãos. Nojento. Tive a impressão que ele
queria minha ajuda. Era impossível entender o que ele estava falando.
— PELO AMOR DE DEUS!
Durante dois segundos ele conseguiu ficar com a boca livre enquanto lutava
com a lombriga, que agora tentava furar seus olhos. Mas logo em seguida
ela mergulhou de volta na boca aberta. Quem mandou ele gritar comigo? É
óbvio que ela ia mirar na boca aberta. Ela é como um peixe, por assim
dizer. Vai fazer de tudo para voltar para dentro de um organismo humano,
que é seu habitat natural. Finalmente encontrei o espelho. Estava coberto
de lactobacilos vivos. Limpei a gosma e arrumei meu cabelo. Ao sair para a
luz encontrei o resto da equipe médica de olhos esbugalhados. Passei por
eles sem nem olhar para André Martins.
— Não deixem ela escapar! — gritou André Martins.
Inferno! Será possível que minha mãe estava certa? Eu não conseguia tirar
André Martins do pensamento. Tombei a cabeça para trás e fiquei com falta
de ar. Deixei que seus homens me capturassem e fui arrastada de volta ao
laboratório. Amarraram-me com silver tape numa cadeira.
— Olha só o que você fez! — gritou André Martins.
Eu não sabia do que ele estava falando, e além do mais, minha boca estava
grudada. O assistente puxou o silver tape da minha boca e eu mandei todos
eles ao inferno, onde seriam devorados por larvas sanguinárias em
caldeiras de ácido sulfúrico. O assistente fez o sinal da cruz e André
Martins disse que só havia uma solução. Pediu uma faca de cozinha. Comecei
a rezar e pedir perdão por tudo. Jurei que nunca mais diria aquelas coisas
e que se eu escapasse daquela, seria boa para o resto da vida. Totalmente
boa, na essência. Fechei os olhos e me encolhi na cadeira. Jurei nunca
mais amar André Martins. Ele podia casar com quem quisesse. Eu o deixaria
em paz. Senti respingos gelados na perna e depois tudo ficou quieto. Abri
os olhos pouco a pouco. Se era gelado, não era sangue. Era o que eu temia.
Gosma de lombriga.
André Martins segurava a cabeça da lombriga. O resto do seu corpo,
dividido em rodelinhas, estava espalhado por todo o porão. A cabeça ainda
balançava de um lado para o outro.
— Está vendo isso aqui?
Creio que, na chacina, a língua da criatura tenha sido arrancada, pois ela
estava tão perto do meu rosto que temi levar uma lambida de lombriga e
isso seria o ápice da nojeira. Fiz que sim com a cabeça. "Sim, André
Martins... Estou vendo".
André Martins jogou a cabeça contra a parede e disse:
— É parte de você!
Seus assistentes caíram numa gargalhada histérica e começaram a rebolar na
minha frente. Lambisgóia lombriguenta. Lambisgóia lombriguenta. Lambisgóia
lombriguenta. Era tudo o que diziam, como num mantra sem fim. Eu mordi
minha língua com toda força e não ouvi mais nada.
No dia seguinte, na escola, eu sabia exatamente o que ia acontecer. Eles
também. Venceria quem fosse mais veloz. Antes da terceira aula fomos
chamados à diretoria. Ambas as partes haviam trabalhado rápido. Diretora e
Orientadora Pedagógica pediram nossas versões. André Martins desmentiu
tudo. A essa altura falava-se em transplante de medula.
A Orientadora Pedagógica também queria casar com ele. Ela usava calça
branca. Era uma mulher vulgar, tal qual eu viria a ser, se algo de bom não
acontecesse na minha vida no próximo ano. Mary Kay Letourneau é o nome da
professora americana que fez sexo com seu aluno de doze anos de idade. Daí
ela foi presa e ele ia visitar ela na cadeia. Ela ficou grávida do aluno e
foi solta. Fez outro filho com o aluno e foi presa de novo. Mas Mary Kay
Letourneau jurou por Deus que, assim que ela saísse de vez, a primeira
coisa que ela ia fazer é levar o aluno para um cartório e casar com ele. A
Diretora perguntou o que eu tinha a dizer. Eu disse a verdade omitida por
André Martins.
— Ele cortou minha camiseta no meio e eu fiquei só de sutiã.
O sorrisinho da Orientadora Pedagógica murchou automaticamente e ela
perguntou assim para André Martins.
— É verdade isso, André?
André Martins não respondeu, o que foi o mesmo que dizer que era verdade.
Ele pegou suspensão e eu fui enviada para a psicóloga da escola. Passei a
ser respeitada. Nunca mais se falou de lombriga verde e quando eu passava,
todos calavam a boca. Eu mudei de turma de meninas. Fui para as mais
velhas, que me ofereceram cigarro. André Martins demorou três anos para
conseguir olhar para mim novamente. Quando o fez, foi para pedir cigarro.
Mas aí já era tarde demais.
ÍNDIGO
é autora de Saga Animal, Festa da Mexerica e Caixinha de Madeira. Índigo é
também uma das 25 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira.
Sua página é
www.jhendrix.net/indigo
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